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Impeachment de Bolsonaro
Bolsonaro não pode afirmar categoricamente que o problema é a “ideologização da OMS”.| Foto: Evaristo Sa/AFP

Nesta segunda-feira (8), a Organização Mundial da Saúde (OMS) informou, por meio da chefe de departamento de doenças emergentes, a infectologista Maria Van Kerkhove, que a propagação de Covid-19 a partir de pacientes assintomáticos, ao contrário do que se pensava no início, é “muito rara”.

Segundo a doutora, ainda é preciso mais pesquisas para assentar conclusões sobre o tema, mas que haveria uma “drástica redução na transmissão”, se os casos sintomáticos forem controlados e isolados.

A adoção de isolamento horizontal, que foi o modelo implementado pela China no início da pandemia e depois sugerido pela OMS, foi em boa parte decorrente da ideia que se tinha até então de que o novo coronavírus era transmissível também por pessoas assintomáticas e que, portanto, era impossível saber quem deveria ficar isolado, em quarentena.

Jair Bolsonaro discordava disso. O presidente da República, enquanto os primeiros casos começavam a aparecer e afirmava que a nova doença era “apenas uma gripezinha”, considerava o isolamento horizontal descabido e queria isolar apenas os grupos de risco, mas o descaso com que Bolsonaro abordava o tema em seus pronunciamentos e entrevistas, falando sempre em “histeria” e “interesses econômicos”, fez com que muitos governadores e prefeitos se vissem abandonados pelo governo federal e não dessem ouvidos ao presidente – que talvez pudesse ter razão.

Naquela altura, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia decidido que estados e municípios teriam autonomia para adotar medidas de isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras, independentemente de ordens contrárias do governo federal. É preciso lembrar que Bolsonaro utilizou várias vezes essa decisão para apontar como culpados os demais entes da Federação pelo que ia mal na condução da crise, afirmando que a “reponsabilidade não era dele”.

Nesta segunda-feira (8), em suas redes sociais, o presidente jactou-se, por ter estado certo: “Após pedirem desculpas pela hidroxicloroquina, agora a OMS conclui que pacientes assintomáticos (a grande maioria) não têm potencial de infectar outras pessoas. Milhões ficaram trancados em casa, perderam seus empregos e afetaram negativamente a Economia”. Felipe Martins, que recentemente foi promovido a Assessor Especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, engrossou o coro, afirmando entre outras coisas que “a submissão de nossos políticos e juízes à OMS não deixou espaço para o presidente agir [...]”.

A OMS, aliás, foi colocada em xeque por Bolsonaro, que já afirmou estar considerando a possibilidade de seguir o presidente americano Donald Trump e retirar o financiamento dado pelo Brasil do órgão da ONU.

A OMS seria um órgão “ideológico” como afirma Bolsonaro? Nesse caso, não seria o Judiciário que estaria agindo de maneira ideológica ao tentar vincular as ações do Executivo a um órgão supranacional? Ou, ao contrário, seria Bolsonaro que estaria usando as declarações da OMS aqui e ali para justificar sua falta de gestão política da crise sanitária? Deveríamos seguir a “ciência” ou a “política”?

A discussão pública polarizou-se mais uma vez. As perguntas acima são quase que pressupostos no debate público brasileiro sobre o coronavírus.

É preciso esclarecer aqui, antes de tudo, alguns pontos sobre a “ciência”. A ciência, como toda atividade humana, é sujeita a erros e falhas. Também não existe dogma numa atividade que está em constante revisão. Portanto, aqueles que pensam que “os governos precisam seguir o consenso científico” precisam levar em consideração que esse consenso pode mudar no dia seguinte.

Nesse sentido, quando o ministro do STF Roberto Barroso estabeleceu um critério para “erro grosseiro” na MP 966 (sobre a responsabilidade dos gestores públicos durante a pandemia), inserindo a inobservância “de normas e critérios científicos e técnicos” estabelecidos por “organizações e entidades médicas e sanitárias internacional e nacionalmente reconhecidas”, pode ter cometido um erro grave e restringido demais a ação de governadores e prefeitos.

Isso não quer dizer que políticos não devam utilizar as descobertas e informações da ciência nas suas decisões, mas, como ficou patente com a própria OMS, que deu vários passos em falso durante pandemia, não podem se limitar a isso.

Toda ação pública possui fins e meios. E em ambos a ciência pode fornecer boas informações. Contudo é preciso cruzar pontos de vista, elaborar projetos, convencer os vários atores envolvidos. Esses elementos foram ignorados pela Presidência. Estaria o STF completamente errado a procurar um critério objetivo tanto para servir de orientação a governadores e prefeitos, como para medida em possíveis ações judiciais? Não parece ser o caso.

O presidente jamais apresentou um plano abrangente para a contenção da pandemia e, mesmo quando talvez tivesse razão, foi incapaz de comunicar exatamente o que pretendia, ou mesmo formar uma equipe responsável e competente para isso.

Por mais que Bolsonaro possa alegar agora, com o respaldo da OMS, que sempre teve razão, deve levar em conta que a entrada em jogo do Judiciário na gestão da pandemia decorre em grande parte da própria falta de comando do Executivo desde o início da crise.

A Presidência da República não pode afirmar categoricamente que o problema é a “ideologização da OMS”, tampouco pode acusar o Judiciário de estar agindo, nesse mesmo sentido, com viés ideológico quando tenta apontar a OMS como a guia mestra para as decisões públicas na crise sanitária. A OMS é um órgão consultivo e, embora tenha errado bastante durante a pandemia, apresenta dados e informações de muitas pesquisas que servem de baliza para políticas públicas.

É claro que Bolsonaro pode apresentar soluções melhores que organismos internacionais, mas para isso é preciso comunicá-las com clareza e elaborar planos alternativos para que os entes federativos possam aderir. O que não se pode é lavar as mãos, apenas apontando para os erros alheios e louvando-se por ter tido ideias melhores que jamais foram postas em prática. Nesse momento em que a pandemia ainda não está controlada no País, o presidente deveria estar muito mais preocupado com o que pode contribuir para resolver a crise.

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