| Foto: Jonathan Campos/Arquivo Gazeta do Povo
CARREGANDO :)

No dia 4 de junho, o presidente Jair Bolsonaro foi pessoalmente à Câmara dos Deputados levar um projeto de lei que materializa um antigo sonho seu: o de alterar o Código de Trânsito Brasileiro. As mudanças são extensas e tratam de diversos assuntos, desde a validade da Carteira Nacional de Habilitação até mudanças em punições para infrações de trânsito e critérios para que o motorista perca o direito de dirigir. Algumas delas causaram muita polêmica, como o fim da multa para quem não transportar crianças nas cadeirinhas feitas para este fim – permanece a obrigatoriedade do equipamento e o acúmulo de pontos na carteira.

Qual é a convicção que move o presidente da República? Por que este projeto é tão importante a ponto de ser levado pessoalmente até o Congresso, como ocorreu, por exemplo, com a reforma da Previdência? A exposição de motivos anexa ao PL 3.267/2019, assinada pelo ministro da Infraestrutura, general Tarcísio Gomes de Freitas, silencia quanto às razões de fundo pelas quais o governo acha necessário afrouxar as regras, mas o ministro alegou que o projeto iria “tornar a vida do cidadão mais fácil”, e até o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), defendeu as mudanças como parte do processo mais amplo de desburocratização da vida nacional. Enfim, seria o caso de, para usar uma expressão tão ao gosto de Bolsonaro, “tirar o Estado do cangote” também do motorista, especialmente aquele que ganha seu sustento ao volante. Faz sentido?

Publicidade

É claro que pessoas conscientes não precisam da ameaça legal de multas ou outras punições para que dirijam seguindo as regras, sem abusar da velocidade ou realizar manobras arriscadas, e usando cinto de segurança, capacetes, cadeirinhas para crianças e demais equipamentos. Elas sabem que direção cuidadosa e equipamentos de segurança salvam vidas, a começar pela própria e daqueles que estão no mesmo veículo. Mas, infelizmente, o nosso trânsito não dá o menor indício de que estamos vivendo em uma “sociedade de confiança motorizada” – pelo contrário: dezenas de milhares de pessoas morrem anualmente em acidentes, e a imprudência mata não apenas os irresponsáveis, mas também pedestres, os motoristas conscientes e os passageiros por eles transportados. Precisamos de uma regulamentação que ajude a evitar ainda mais tragédias sobre rodas – e Bolsonaro também sabe disso, pois do contrário teria ido muito mais longe em seu projeto, abolindo exigências que ele achou razoável manter.

Os maus motoristas ganham a oportunidade de cometer duas vezes mais barbaridades em comparação com o que podiam fazer até agora

O ponto central do projeto é o aumento do número de pontos que levam à suspensão da habilitação, de 20 para 40 – um sonho antigo de Bolsonaro, que em 2011 já havia proposto o PL 367/11, com esse mesmo objetivo. A exposição de motivos afirma que “a atual complexidade do trânsito brasileiro cada vez mais gera a possibilidade do condutor levar uma autuação de trânsito, ainda que não tenha a intenção de cometê-la. Alcançar 20 pontos está cada dia mais comum na conjuntura brasileira”.

Por que está cada vez mais fácil atingir 20 pontos na CNH, como alega o ministro? Será porque os motoristas estão dirigindo de forma cada vez mais irresponsável? Se for esse o motivo, então nem mesmo o limite atual está servindo para inibir os comportamentos perigosos ao volante, e aumentá-lo só serviria para abrir caminho ao aumento na irresponsabilidade no trânsito.

Mas Tarcísio Gomes também fala de autuações de trânsito recebidas mesmo por quem não tem a intenção de cometer infrações. É possível? Sem dúvida que sim. No entanto, há distrações ao volante que podem ser até mesmo fatais, como no caso de alguém que entra inadvertidamente na contramão de uma rua e causa um acidente, e também aqui o sistema de pontos funciona como um inibidor, levando o motorista a buscar estar mais atento à sinalização. Relaxar as regras de pontuação significaria ser mais tolerante com “distrações” que precisam ser coibidas tanto quanto a direção agressiva intencional.

Publicidade

Leia também: As mudanças no Código de Trânsito e a "indústria da multa" (artigo de Glávio Leal Paura, publicado em 10 de junho de 2019)

Leia também: Exames toxicológicos e a redução dos acidentes de trânsito (artigo de Tiago Peixe e Edmarlon Girotto, publicado em 21 de agosto de 2015)

Sobra, portanto, uma última hipótese: a de pontos acumulados por erros burocráticos. Seriam esses os que estão levando a suspensões de carteiras de motorista? Se forem – e o governo não apresentou nenhuma estatística a esse respeito –, por que, então, não rever as pontuações para cada infração? Como escreveu Boris Feldman em texto publicado na Gazeta do Povo, o sistema de pontos iguala erros na papelada a comportamentos perigosos ao volante. Mas o PL de Bolsonaro não ataca esse tema. Se os motoristas estão tendo a carteira suspensa por outros motivos que não a direção irresponsável, o problema não é o total de 20 pontos – outros países têm limites até mais rígidos –, mas as pontuações específicas para cada infração.

Então, qual cidadão, no fim das contas, terá sua vida facilitada, como prometeu o ministro Tarcísio? O motorista infrator. Da maneira como está proposta a mudança, os maus motoristas apenas ganham a oportunidade de cometer duas vezes mais barbaridades em comparação com o que podiam fazer até agora.

Ainda não chegamos a um estágio em que campanhas de conscientização e outras medidas baseadas na boa vontade dos motoristas bastam para termos um trânsito civilizado. É por isso que não é a hora de um projeto de lei que invista no afrouxamento das regras de trânsito, especialmente quando ele não ataca as verdadeiras desproporções existentes no Código de Trânsito. Em alguns casos, há riscos graves, como na dispensa do exame toxicológico para caminhoneiros, mesmo quando se sabe que a realidade das estradas é a de motoristas movidos a anfetaminas, o famoso “rebite”. Desburocratizar e simplificar a vida do cidadão é importante, mas, no caso do trânsito, Bolsonaro tem outros caminhos a escolher, sem precisar ser leniente com os maus motoristas.

Publicidade