Cada vez mais empenhado em desempenhar o papel de defensor-mor da democracia, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, resolveu prorrogar por mais 90 dias o inquérito 4.874, batizado informalmente como inquérito das milícias digitais, e que já dura dois anos e meio. É a nona vez que o inquérito é prorrogado. A justificativa para a extensão seria a necessidade de mais tempo para cumprir “diligências ainda pendentes” – impossível saber sobre o quê ou contra quem.
Já mencionamos neste espaço as principais razões para considerarmos o inquérito das milícias digitais abusivo. Assim como o inquérito das fake news, iniciado em 2019, ele nasceu de ofício, sem provocação da Procuradoria-Geral da República ou de autoridades policiais, sem objeto definido, e no qual o STF se porta como vítima, investigador e juiz. Como se sabe, a instauração do inquérito foi determinada por Moraes após um pedido da Procuradoria-Geral da República para arquivar outro inquérito, o dos chamados "atos antidemocráticos", requerido pelo Ministério Público para investigar a atuação de militantes e parlamentares aliados do presidente Jair Bolsonaro na organização de atos que, supostamente, atentavam contra as instituições, realizados ao longo de 2020.
Desde sua instauração, o inquérito das milícias digitais tem sido usado para justificar uma série de aberrações.
Depois de um ano inteiro de investigações, a PGR argumentou não ter encontrado indícios de que deputados aliados de Bolsonaro estivessem à frente da organização e financiamento dos protestos de rua. Ora, Moraes não se deu por satisfeito e resolveu continuar as investigações, abrindo um novo inquérito, citando “fortes indícios” da existência de uma “organização criminosa” atuando digitalmente, voltada para produzir, financiar e publicar conteúdos com a “finalidade de atentar contra a Democracia e o Estado de Direito". Nascia, então, mais uma investigação totalmente questionável, cujos reais objetivos são pouco claros até hoje.
Desde sua instauração, o inquérito das milícias digitais tem sido usado para justificar uma série de aberrações, entre elas o pedido de prisão preventiva, em agosto de 2021, do ex-deputado Roberto Jefferson, então presidente nacional do PTB, acusado de integrar um grupo criminoso com objetivo de desestabilizar a democracia brasileira. Os argumentos para a prisão? Uma série de postagens e declarações de Jefferson, com críticas (algumas beirando ao insulto, é verdade) aos Poderes, defesa do voto impresso, insinuações de mau gosto ou meras bravatas, que jamais poderiam ser consideradas criminosas à luz da democracia. Mas no entender de Alexandre de Moraes, tais falas constituíram uma ameaça à democracia, e o ministro resolver determinar a prisão de Jefferson, que só foi solto em janeiro em 2022, para cumprir prisão domiciliar, sujeito a uma série de medidas cautelares impostas por Moraes.
A teimosia de Moraes não pode ser motivo suficiente para que um inquérito que nunca deveria ter existido se torne eterno.
Em outubro de 2022, ainda sob o âmbito do inquérito das milícias digitais, o ministro do STF revogou a prisão domiciliar de Jefferson. No momento da prisão, o ex-deputado protagonizou um episódio lamentável, tendo atirando e jogado até granadas contra os agentes da Polícia Federal que foram prendê-lo. Mas por mais reprovável que tenha sido o ato de violência cometido por Roberto Jefferson, isso não altera o fato de que ele foi alvo do inquérito das milícias digitais meramente por suas declarações polêmicas e destemperadas. Por conta do inquérito, ele permanece preso até hoje. Desde julho do ano passado, ele está em um hospital, devido à saúde debilitada.
Outra aberração bem conhecida no âmbito do inquérito 4.874 foi a ação da Polícia Federal contra empresários que trocaram mensagens em um grupo privado de WhatsApp. Em agosto de 2022, eles tiveram celulares apreendidos, sigilo fiscal e telemático quebrado, contas bancárias bloqueadas, e perfis em mídias sociais suspensos. Apenas depois de um ano, durante o qual os empresários continuaram sob investigação, é que Alexandre de Moraes admitiu que as conversas privadas entre os empresários não eram crime contra a democracia, o que já era claro e patente desde o primeiro momento em que as conversas entre os empresários foram divulgadas.
É esse tipo de conduta, que em situações normais não motivaria nenhuma ação por parte do Judiciário, que tem sido alvo das investigações do inquérito das milícias digitais. Manifestações privadas de ideias sobre o funcionamento das instituições, críticas a políticos e membros do Judiciário, opiniões sobre o sistema de votação mais seguro. Nada disso é crime, mas tem sido considerado motivo suficiente para investigações, operações da Polícia Federal, suspensão de contas nas redes sociais, quebra de sigilo, aplicação de medidas cautelares e mesmo prisão.
Enquanto durarem os inquéritos aberrantes do STF, apoiados em supostos crimes de pensamento que só existem em razão de malabarismos jurídicos, e que funcionam mais como um instrumento de medo e coerção do que uma investigação séria e comprometida com a apuração de fatos, permaneceremos com uma espada de Dâmocles sobre nossas cabeças: a qualquer momento, por um simples capricho de um juiz, um cidadão pode ser alvo de uma investigação por simplesmente ter dito algo que desagrade ou seja tachado de “antidemocrático”.
Se as investigações encontraram elementos que comprovam a existência da tal “milícia digital” e dos crimes cometidos por ela, os resultados já deveriam ter sido apresentados há muito tempo. Mas se nada foi comprovado até agora, que a investigação seja sepultada de uma vez por todas. A teimosia de Moraes em querer achar crimes onde não existem ou “pescar” informações aleatórias que possam ser usadas contra desafetos não pode ser motivo suficiente para que um inquérito que nunca deveria ter existido se torne eterno.
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