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carta pró-democracia
Carta em favor da democracia será lida no dia 11 de agosto na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo| Foto: Divulgação/USP

Da recente onda de manifestos em defesa da democracia divulgados nas últimas semanas, há dois textos que merecem um destaque especial. O primeiro deles, encabeçado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), já foi endossado por ex-ministros do Supremo Tribunal Federal, líderes empresariais e religiosos, banqueiros e juristas. Outro, elaborado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e intitulado “Em defesa da democracia e da justiça”, recebeu a adesão de inúmeras entidades de perfis bastante díspares, em um espectro que vai da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Ambos devem ser lidos em um evento previsto para 11 de agosto no Largo de São Francisco, onde fica localizada a Faculdade de Direito da USP.

De imediato, é preciso dizer que defender a democracia e o Estado Democrático de Direito nunca é demais. Que tantos setores da sociedade brasileira, abrangendo uma miríade de posicionamentos políticos, categorias profissionais e perfis socioeconômicos, se mobilizem em defesa daquele que, indubitavelmente, é o melhor sistema de governo é algo que só merece elogios, e esperamos que tal convicção democrática se torne cada vez mais impregnada em nossa sociedade. A defesa da democracia, no entanto, não pode ser seletiva; tem de ser completa, integral, e é neste aspecto que os textos merecem reparos importantes.

Critiquemos a insinuação de desrespeito ao resultado das eleições, critiquemos a escalada de ataques ao Judiciário, mas critiquemos também a relativização das liberdades e garantias constitucionais realizada pelo Supremo, critiquemos os esquemas golpistas de corrupção

Os documentos não citam nomes, mas nem é necessário fazê-lo para entender que as críticas ali apresentadas, especialmente na carta oriunda da USP, são todas direcionadas ao presidente Jair Bolsonaro. Quando o texto fala em “insinuações de desacato ao resultado das eleições”, “ataques infundados e desacompanhados de provas” que “questionam a lisura do processo eleitoral”, “ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional”, é evidente que o alvo do texto é o presidente da República.

É bastante compreensível que atos e palavras do presidente estejam sob escrutínio neste momento – no mínimo, por se tratar da autoridade máxima da nação. Descartemos, por ora, o oportunismo dos que estão assinando os manifestos apenas por ver neles uma chance de fustigar um adversário político-ideológico, e concentremo-nos em todos aqueles que estão genuinamente preocupados com a escalada de tensão entre os poderes, as afirmações sobre a possível falta de lisura do processo eleitoral e insinuações sobre um eventual desrespeito ao resultado das urnas em outubro, e veem em tudo isso potenciais riscos à estabilidade democrática do país. Sua inquietação com os rumos do país não pode ser menosprezada, e tal preocupação, aliás, é compartilhada pela Gazeta do Povo, que neste espaço já fez as críticas que julgou necessárias a posturas do presidente.

No entanto, a defesa da democracia e do Estado Democrático de Direito feita nestes dois manifestos acabou pecando pela seletividade, ainda que não intencional. Pois a democracia e o Estado Democrático de Direito não estão sob ameaça apenas quando se insinuam ou se propõem soluções de força para resolver desavenças entre os poderes da República. A democracia é atacada também de formas muito mais sutis, como quando um poder “compra” o outro – e esta foi a essência dos grandes esquemas de corrupção montados pelo petismo para atingir a tão falada “governabilidade” e perpetuar seu projeto de poder, e até mesmo alguns dos ex-ministros do STF signatários da carta da USP reconheceram o caráter golpista do mensalão e do petrolão quando julgaram seus autores.

Não se pode argumentar que esses são escândalos do passado, e por isso podem ser deixados de lado enquanto há ameaças presentes à democracia. Os protagonistas destes lamentáveis episódios da vida política nacional são também protagonistas do atual processo eleitoral, e pretendem reassumir as posições que tornaram possível a montagem desses esquemas. Aliás, não há como não concluir que algo vai mal com nosso Estado Democrático de Direito quando um dos principais nomes destes escândalos tem sua condenação por corrupção anulada sem nenhum motivo razoável que o justifique, desmoralizando todo o sistema de investigação e persecução penal, e fazendo deste ex-condenado um “ficha limpa” apto a disputar o cargo máximo do país.

E, falando no Judiciário, também não há como não enxergar ameaças à democracia e ao Estado Democrático de Direito diante de todas as violações à liberdade de expressão, ao devido processo legal, à ampla defesa e à imunidade parlamentar levadas a cabo pelos tribunais superiores, especialmente o STF, por meio dos inquéritos abusivos das fake news, dos “atos antidemocráticos” (agora encerrado) e das “milícias digitais” (que substituiu o anterior). Não vai mal uma democracia em que os guardiões da Constituição deixam a imparcialidade de lado e se tornam agentes políticos que, conscientes do fato de terem a palavra final, abusam desta prerrogativa, impondo prisões no mínimo questionáveis e instituindo a censura? No entanto, especialmente o manifesto da Fiesp se destaca pelo elogio incondicional aos tribunais superiores, “reconhecendo o seu inestimável papel, ao longo de nossa história, como poder pacificador de desacordos e instância de proteção dos direitos fundamentais”.

Sejamos democratas por inteiro. Saibamos expor o quadro completo das ameaças à democracia no país. Critiquemos a insinuação de desrespeito ao resultado das eleições, critiquemos a escalada de ataques ao Judiciário, mas critiquemos também a relativização das liberdades e garantias constitucionais realizada pelo Supremo, critiquemos os esquemas golpistas de corrupção que vigoraram no país durante mais de uma década, principalmente quando os responsáveis por eles jamais admitiram seus erros e agora tentam retornar ao poder. Sem isso, os manifestos são mais que apenas uma peça incompleta: eles acabam, ainda que não seja essa a intenção de seus autores, fazendo o jogo de quem promove aquelas ameaças que ficaram por mencionar.

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