Projeto aprovado no Senado cria certificado de vacinação que poderia ser usado para permitir acesso a estabelecimentos e serviços.| Foto: Michael Reynolds/EFE
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O Brasil está mais próximo de ter o seu próprio “passaporte de vacina”. O Senado aprovou, no dia 10, o Projeto de Lei 1.074/2021, que cria o Certificado de Imunização e Segurança Sanitária (CSS) – a opção pelo termo “certificado” deveu-se à intenção de não criar confusão com o documento de viagem. Um texto que tem pontos positivos e que pode ser tábua de salvação para vários negócios, mas que infelizmente tem uma redação suficientemente ambígua a ponto de também poder ser usado como punição para quem não se vacinar.

O artigo 3.º do PL 1.074 afirma que “o CSS poderá ser utilizado pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios para suspender ou abrandar medidas profiláticas restritivas de locomoção ou acesso de pessoas a serviços ou locais, públicos ou privados, que tenham sido adotadas, na forma da Constituição Federal e da lei, com o objetivo de limitar a propagação do agente infectocontagioso causador do surto ou pandemia”. Isso significa que, caso determinadas restrições estivessem em vigor, as pessoas vacinadas não estariam sujeitas a essas proibições. Para evitar o argumento de que a vacinação segue a passos lentos no país e que este critério excluiria muitas pessoas que ainda não tiveram a chance de vacinar embora queiram fazê-lo, o PL 1.074 ainda incluiu no CSS a possibilidade de atestar resultados negativos em testes laboratoriais recentes.

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Na prática, pode-se até mesmo afirmar que o projeto do “passaporte de vacina” enterra de vez as restrições absolutas que obrigam o fechamento de estabelecimentos

Por este ângulo, o CSS serviria até mesmo como a chave para se reativar alguns setores que a pandemia atingiu de forma mais severa. Eventos como shows ou festas, por exemplo, seguem totalmente proibidos em muitas cidades e estados brasileiros, mas poderiam voltar a ocorrer desde que os frequentadores tivessem o CSS. Na prática, pode-se até mesmo afirmar que o projeto enterra de vez as restrições absolutas que obrigam o fechamento de estabelecimentos. Afinal, se “o titular do CSS (...) não poderá ser impedido de entrar, circular ou utilizar qualquer espaço público ou privado”, como diz o inciso I do parágrafo 1.º do mesmo artigo 3.º, prefeituras e governos não poderão mais proibir completamente determinadas atividades, já que elas estarão permitidas a quem tiver o CSS.

O certificado, assim, funcionaria como um nudge – o termo usado pela economia comportamental para descrever um incentivo a determinada atitude, premiando os que a realizam em vez de punir quem prefere se recusar. Em muitas situações, aliás, os nudges deveriam ser a primeira escolha dos gestores interessados em promover certos comportamentos. Eles criam uma diferenciação, é verdade, mas o fazem acrescentando benefícios, e não retirando direitos. No entanto, por mais positiva que seja a intenção dos criadores do CSS, é preciso também fazer outras perguntas: é oportuna, no momento atual, uma iniciativa como essa? Há riscos?

Incentivos como nudges costumam ser mais comuns quando se quer promover certo comportamento entre um grupo que tende a não adotá-lo. Mas não é o caso da vacinação: pesquisas de opinião demonstram que parcela bastante significativa da população tem, sim, a intenção de se imunizar, e o Brasil só não conseguiu ainda uma cobertura vacinal maior contra a Covid-19 porque não há doses suficientes; do contrário, muito mais brasileiros já teriam se vacinado. Neste contexto, incentivos seriam desnecessários, ainda que não façam mal. Mas o problema, aqui, é outro: a forma como o CSS foi concebido, ainda que na meritória intenção de acelerar a reativação de vários setores da vida econômica e social e de incentivar a vacinação, permite também a discriminação contra os não vacinados.

Isso pode ocorrer de duas maneiras. Na mais explícita, municípios e estados que hoje determinam, por exemplo, que restaurantes ou o transporte coletivo funcionem com certa capacidade, independentemente de os clientes ou passageiros estarem ou não vacinados, no futuro podem limitar este ingresso apenas aos portadores do CSS. Veríamos a proliferação do aviso com os dizeres “O ingresso neste local está condicionado à apresentação do Certificado Nacional de Imunização e Segurança Sanitária (CSS)”, previsto no artigo 3.º, parágrafo 1.º, inciso II do PL. E isso permite que tanto o poder público quanto entes privados passem a impor restrições baseando-se unicamente no status vacinal dos indivíduos.

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A forma como o CSS foi concebido, ainda que na meritória intenção de acelerar a reativação de vários setores da vida econômica e social e de incentivar a vacinação, permite também a discriminação contra os não vacinados

Mas há uma outra forma, mais sutil, de punição aos não vacinados: prefeitos e governadores podem estender desnecessariamente as restrições mais severas, já que os vacinados não serão afetados por elas. Em outras palavras: ainda que os indicadores sanitários – ocupação de leitos, taxa de contágio, número de novos casos e mortes – estivessem baixos ou em queda, um governante poderia prolongar medidas restritivas de modo que apenas os portadores do CSS tivessem acesso a estabelecimentos, serviços ou eventos. Mesmo em um cenário de baixo risco para toda a coletividade, incluindo os não vacinados, estes seguiriam banidos de inúmeros ambientes. Isso prejudicaria não apenas os não vacinados, mas também todos os negócios que poderiam ter clientela maior, e no entanto continuariam obrigados a atender apenas as pessoas imunizadas.

Em ambos os casos, estaríamos diante de uma discriminação nociva e completamente desproporcional, fazendo dos não vacinados verdadeiros cidadãos de segunda classe, como já lembramos neste espaço – afinal, certos direitos que se pretende vedar a este grupo podem ser exercidos normalmente até mesmo por criminosos condenados cumprindo pena em regime aberto. Ainda que o PL 1.074 não proponha absurdos completos como impedir não vacinados de emitir documentos ou participar de concursos, como já se chegou a cogitar, ele deixa possibilidades abertas a gestores não muito afeitos às liberdades individuais, especialmente considerando a autonomia concedida pelo STF a estados e municípios na elaboração de regras para conter a pandemia. Também preocupante é o fato de o projeto não prever salvaguardas para pessoas que, por vários motivos, não podem se vacinar, ou que não desejam fazê-lo exercendo a objeção de consciência.

É possível que um prefeito ou governador use apenas a parte “positiva” do PL 1.074, impedindo que os não vacinados tenham direitos diminuídos enquanto permite aos já vacinados (ou portadores de teste negativo recente) o acesso a locais e eventos afetados por restrições definidas de forma honesta e racional. Mas, da maneira como o texto está redigido atualmente, ele abre uma caixa de Pandora impossível de fechar no futuro – e o faz desnecessariamente, já que, à medida que mais e mais brasileiros se vacinem, a tendência é de que a pandemia finalmente seja controlada, livrando também os que não podem ou mesmo os que não querem se imunizar, mas que nem por isso devem ter tolhidos seus direitos básicos.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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