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Detalhe da estátua da deusa Têmis, diante do prédio do STF, em Brasília.
Detalhe da estátua da deusa Têmis, diante do prédio do STF, em Brasília.| Foto: Gervásio Baptista/SCO/STF

“Violência estatal”, afirmaram mais de 90 associações empresariais, câmaras de dirigentes lojistas e sindicatos do comércio de Santa Catarina. “Em Direito Penal não se pune a cogitação (...) eu achei muito perigoso e não atende aos interesses nacionais”, disse o ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello. “Se eles não cometeram nada, estamos diante de uma arbitrariedade”, afirmou Ciro Gomes, candidato do PDT à Presidência da República. “Absolutamente irrazoável”, na descrição da Associação Comercial do Rio de Janeiro. O que essas pessoas ou entidades da sociedade civil organizada têm em comum? Não estão alinhadas ideologicamente a Jair Bolsonaro – no caso de Ciro, mais ainda: estamos diante de um forte crítico do presidente –, mas perceberam (ainda que de forma hipotética, para o pedetista) o enorme perigo causado pela operação policial ordenada por Alexandre de Moraes contra oito empresários que tiveram conversas em um grupo privado de WhatsApp publicadas na imprensa.

O Brasil precisa aprender a discernir as ameaças à democracia no país, de onde quer que venham. Mello sempre foi um crítico dos inquéritos abusivos abertos no Supremo e conduzidos por Moraes – é do ex-ministro a expressão “inquérito do fim do mundo”, referindo-se à investigação das fake news, o primeiro dos inquéritos, aberto por ordem de Dias Toffoli quando este presidia o Supremo. Mas sua voz, além de isolada, costumava cair no vazio. Boa parte da sociedade aplaudiu e ainda aplaude as prisões, as operações de busca e apreensão, a derrubada de perfis em mídias sociais, a desmonetização de YouTubers e sites noticiosos – o único momento em que uma parcela um pouco maior da opinião pública se levantou contra Moraes foi no hoje distante episódio da censura à revista Crusoé. De resto, o que tem havido é o endosso ou o silêncio cúmplice; afinal, as vítimas eram e são sempre aqueles que boa parte do mundo jurídico e midiático trata como inimigos viscerais: direitistas, conservadores ou bolsonaristas, contra os quais se decidiu que vale praticamente tudo.

O Brasil tem de escolher entre as conveniências políticas e a defesa incondicional e intransigente das liberdades democráticas para todos

Foi preciso que Moraes avançasse ainda mais sobre as liberdades individuais, trazendo para o Brasil de 2022 os ecos da União Soviética stalinista ou da defunta Alemanha Oriental – que com sua eficientíssima Stasi era capaz de identificar “inimigos do Estado” por meio de suas conversas privadas –, para que mais brasileiros percebessem que estamos às portas de um autoritarismo velado. Uma ditadura imposta não por tanques, mas por canetas, e que passa por legítima apenas porque as ordens, mesmo que arbitrárias, seguem trâmites regulamentares. Decisão do Supremo se cumpre, por certo, mas o Supremo não pode se esconder atrás deste princípio para abolir o devido processo legal, o direito à ampla defesa, o princípio do juiz natural, a imunidade parlamentar, a liberdade de expressão. No entanto, é o que a corte tem feito nos inquéritos das fake news, dos “atos antidemocráticos” e das “milícias digitais”.

Nunca é demais repetir: oito cidadãos brasileiros receberam a visita da Polícia Federal, tiveram celulares apreendidos e sigilos violados porque manifestaram opiniões de forma privada. Destes oito, cinco não disseram uma única palavra sobre golpe de Estado, e mesmo os outros três apenas manifestaram preferências hipotéticas, sem tramar nem estimular nenhum processo violento de ruptura institucional (o “ilícito” de um deles foi publicar uma imagem de uma pessoa fazendo sinal de positivo). Não há nem mesmo indício de crime que justificasse a abertura de uma investigação. Como afirmamos dois dias atrás, qualquer juiz com critérios minimamente bem definidos teria indeferido toda essa insanidade, que ainda por cima prospera em um sigilo que a Procuradoria-Geral da República está sabiamente tentando derrubar para que fique exposta, de uma vez por todas, a sanha persecutória de Alexandre de Moraes.

O Brasil tem de escolher entre as conveniências políticas e a defesa incondicional e intransigente das liberdades democráticas para todos. É vergonhoso que, até agora, entidades de dimensão nacional, que já foram luzeiros a apontar a direção correta para o país em tempos de escuridão, estejam caladas apenas porque o arbítrio está lançado contra o “inimigo comum”. Assinar manifestos é fácil; muito mais difícil é perceber o risco real à democracia e levantar a voz quando ela é aviltada. Mas é assim que se revelam os autênticos democratas.

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