A decisão do corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luis Felipe Salomão, de afastar, nesta segunda-feira (15), a juíza Gabriela Hardt das suas funções foi considerada por juristas consultados pela Gazeta do Povo como excessiva e baseada em argumentos fracos ou imprecisos.
Além de acrescentar um capítulo ao desmantelamento da Lava Jato e de avançar na perspectiva de criminalização dos seus protagonistas, o afastamento da magistrada, que substituiu o ex-juiz Sergio Moro (atualmente senador pelo União Brasil no Paraná) à frente da 13ª Vara de Curitiba, também revoltou membros do Judiciário e despertou o receio de entidades para novas retaliações.
A medida contra Gabriela Hardt foi tomada a partir dos resultados de uma investigação conduzida pelo próprio corregedor em 2023, a pedido do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre a condução dos processos na Lava Jato.
Para justificar o afastamento da juíza substituta, Salomão citou “infrações administrativas graves”, sobretudo acerca da atuação dela ao homologar um acordo de 2019 entre o Ministério Público Federal (MPF), Petrobras e autoridades dos Estados Unidos, com a previsão de destinação de verbas da estatal para um fundo de combate à corrupção.
Pelo acordo homologado, que foi questionado por parlamentares petistas no CNJ, R$ 2,5 bilhões de multas e indenizações a serem pagas pela Petrobras a órgãos americanos seriam destinados a uma fundação privada que seria encarregada de gerir os recursos.
O acordo foi suspenso ainda em 2019 pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, que determinou o bloqueio dos valores depositados, a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR).
“Quem, em sã consciência, concordaria em destinar dinheiro público para uma fundação privada, de maneira sigilosa e sem nenhuma cautela?”, questionou Salomão ao pedir o afastamento de Hardt.
Desembargadores e juiz punidos por suposta afronta a ordem do STF
O corregedor também decidiu afastar, por supostamente descumprir ordens do STF, os desembargadores federais Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz e Loraci Flores de Lima, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), e o juiz federal Danilo Pereira Júnior, atual responsável pela Vara da Lava Jato. Isso porque eles teriam driblado determinação da Corte ao aprovar a suspeição do então juiz da Lava Jato, Eduardo Fernando Appio. A suspeição foi determinada por Loraci e referendada pelos outros dois. Na época, Danilo Pereira Júnior era juiz convocado na 8ª Turma do TRF-4.
Quando esteve à frente da 13ª Vara de Curitiba, Appio foi responsável por uma série de decisões prontamente contestadas. Uma delas foi a ordem de abrir uma investigação contra Moro, fundamentada no depoimento do advogado Rodrigo Tacla Duran, que afirma ter sido vítima de extorsão pelo ex-juiz. Devido ao mandato de senador de Moro, o caso foi encaminhado ao STF. Tacla Duran nunca forneceu evidências; suas alegações foram investigadas e posteriormente arquivadas.
Ambas as decisões do corregedor deverão ser analisadas na sessão de terça-feira (16) do CNJ. Também está pautada para o mesmo dia a análise da correição da Lava Jato e a reclamação disciplinar aberta contra Gabriela Hardt e Moro. O relatório preliminar da correição na 13ª Vara Federal de Curitiba e nos gabinetes dos desembargadores da 8ª Turma do TRF-4, que cuidam dos processos da Lava Jato, apontou “gestão caótica” nos valores dos acordos de leniência e delação premiada relacionados à operação.
Para Salomão, houve “possível conluio” de servidores do Judiciário para que a Petrobras pagasse acordos no exterior e seus valores voltassem para emprego exclusivo da força-tarefa. Moro afirmou, na ocasião da divulgação do documento, que nenhum desvio de recurso foi identificado em 60 dias de correição pelo CNJ. Ele também disse que os acordos de leniência, antes da homologação, sempre foram aprovados previamente pelo MPF, e repudiou termos que não fazem justiça à operação.
Especialistas apontam ausência de provas e argumentos frágeis
Para membros do Judiciário e operadores do direito, as acusações do corregedor estão carregadas de "falhas temerárias" e ausências de evidências para sustentar hipóteses de peculato, prevaricação e corrupção privilegiada de Gabriela Hardt.
A primeira delas está em ter iniciado o procedimento por sua própria iniciativa, decidindo pelo afastamento individualmente, sem considerar o plenário do CNJ. Depois, ele explorou uma teoria duvidosa e sem provas sobre o suposto “desvio” de multas para uma fundação privada que sequer foi criada. A suspeita se baseia na ausência de documentos sobre tratativas entre a força-tarefa e a Justiça americana, com implicações para Moro. Além disso, há desconhecimento do papel da Transparência Internacional na gestão da fundação.
O ex-procurador e ex-deputado Deltan Dallagnol (Novo-PR), considerou a decisão do afastamento dos magistrados “frágil” e afirmou que o CNJ está perseguindo politicamente juízes e servidores públicos que “corajosamente combateram a corrupção” e incutindo medo em todos os que “contrariaram interesses dos poderosos”. O ex-coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba acrescentou que o CNJ, órgão de autocontrole do Judiciário, não tem competência para avaliar o mérito de decisões dos juízes e que os afastamentos não poderiam ter sido determinados monocraticamente.
“É inacreditável que o corregedor tome uma decisão tão grave com base em argumentos tão débeis, trazendo à tona a hipótese de que as punições desproporcionais, sem provas reais de irregularidades graves contra juízes e desembargadores, ocorram unicamente a fim de agradar um presidente da República que foi condenado e preso pela Lava Jato e que já manifestou publicamente o desejo de se vingar dos agentes da operação”, disse.
Decisão comprova a orquestração contra a Lava Jato, diz jurista
A professora de direito constitucional Vera Chemim considerou “lamentável que um membro do CNJ decida de forma isolada sobre o afastamento de magistrados”, além de “remeter a fatos extemporâneos e sem elementos de prova suficientes para uma reprimenda dessa gravidade”.
Para ela, a punição imposta aos magistrados, além de extrapolar o bom senso, deveria ter sido tomada pelo plenário do CNJ, “com as devidas fundamentações e apresentação de fortes indícios de cometimento de atos irregulares ou ilícitos e não de meras suposições”.
A jurista ressalta ainda que qualquer sanção de natureza disciplinar prevista pelo Estatuto da Magistratura e o Código de Ética são aplicáveis aos fatos presentes e não passados, além de obedecerem a uma gradação, desde a mais leve para a mais grave, conforme se comprove a conduta do juiz.
“Fora esses fatos, o combate à Lava Jato foi meticulosamente planejado há alguns anos, quando se declarou a incompetência da vara de Curitiba e a suspeição do juiz Moro. Agora temos a jogada final: extirpar definitivamente os seus protagonistas para eliminar ameaças ao velho status quo”, disse.
Quanto ao afastamento dos desembargadores do TRF4 Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz e Loraci Flores de Lima e do juiz federal Danilo Pereira Júnior, todos julgadores da Lava Jato na segunda instância, a decisão de Salomão "copia e cola" trechos da decisão que afastou a juíza Gabriela Hardt, mesmo sem qualquer relação com o caso deles.
Os magistrados do TRF4 foram afastados porque, ao anular, por suspeição, todos os atos do juiz Eduardo Appio – que substituiu Moro na 13ª Vara de Curitiba – teriam contrariado decisões do STF, dos ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, que haviam paralisado algumas ações que tramitavam na primeira instância. Ainda assim, Salomão reproduziu, na decisão sobre os magistrados do TRF4, trechos do relatório relacionado ao suposto desvio de recursos da Petrobras.
Na decisão sobre os desembargadores, o corregedor inseriu citação sobre “articulação desses mesmos atores, direta ou circunstancialmente, autoridades americanas, para promover o retorno de valores ao Brasil por meio da PETROBRAS, no interesse privado de alguns agentes públicos”.
Juristas também avaliam que os textos trazem pouco contexto sobre o que embasou a tomada de medidas radicais. Para o procurador federal Hélio Telho, trata-se de um "caso clássico de fundamentação genérica, que não apresenta motivação concreta e específica para o caso em julgamento".
Ele também afirmou, em sua conta no X (antigo Twitter), "não se pode aplicar pena antecipadamente, com base em um simples relatório de auditoria unilateral, sem processo, defesa e contraditório, por autoridade que não tem competência constitucional para punir, só para apurar".
O investigador Enio Viterbo apontou ainda como “perigoso precedente” o corregedor alegar intenção de crime da juíza Gabriela Hardt a partir de uma petição do MPF não ter “muitas informações” e a decisão ter sido “muito rápida”.
Entidades condenam decisão e veem ameaça à livre atuação de juízes
Juízes procurados pela Gazeta do Povo preferiram dar respaldo às manifestações oficiais de entidades da classe para fortalecer a união do grupo. Em nota, a Associação Paranaense dos Juízes Federais (Apajufe) externou confiança na integridade e correção do trabalho de Gabriela Hardt ao longo de quase 15 anos de trabalho na Justiça Federal, sem a ocorrência de qualquer suspeição em contrário.
A entidade se disse surpreendida e indignada pelos afastamentos dela e de Danilo Pereira Júnior, além dos dois desembargadores, ressaltando “anomalias do procedimento administrativo” já expostas pelo presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, em sessão do órgão em 20 de fevereiro último.
Ao também estranhar a decisão de o afastamento ter ocorrido um dia antes de nova sessão ordinária do CNJ, a diretoria da associação convocou uma paralisação dos magistrados para esta terça-feira (16), exceto nos casos de audiências já marcadas, em protesto contra as decisões do corregedor.
Em defesa “da dignidade e o livre exercício da jurisdição dos juízes”, a entidade considerou inaceitáveis “argumentos genéricos, sem o apoio de fatos concretos e bem delimitados” para sustentar as punições.
A nota sobe o tom ao dizer que “juízes subservientes ao sistema político e sem independência funcional plena não têm condições de livremente assegurar os direitos dos cidadãos, especialmente contra os interesses dos poderosos”.
Em apoio, também manifestaram em nota as associações de juízes federais de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e do Piauí.
Com colaboração de Renan Ramalho.
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