Agentes da PF durante operação que encontrou 56 trabalhadores sem proteção para manusear defensivos na produção de arroz, em Uruguaiana (RS), no início de março| Foto: Divulgação/Polícia Federal
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A volta da esquerda ao poder, com o PT na Presidência, deu novo impulso a uma antiga reivindicação de movimentos sociais ligados à terra: a tomada, pelo poder público, de propriedades rurais onde haveria trabalho “análogo à escravidão”, para posterior destinação para a reforma agrária.

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Desde 2014, a medida é prevista na Constituição, mas nunca foi aplicada na prática por falta de regulamentação. Uma lei deve ser criada para definir as condições que caracterizam esse ilícito e as etapas do processo pelo qual a Justiça poderá expropriar as terras.

Mas, o problema é que, sem essa regulamentação, não há parâmetros objetivos para definir o que é trabalho análogo à escravidão. Em tese, uma possível consequência negativa de se adotar a prática sem fazer a lei seria enquadrar qualquer caso como trabalho análogo à escravidão com o objetivo de fazer a terra mudar de mãos. Críticos da medida dizem que ela coloca em risco a propriedade privada no Brasil.

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No dia 9, a Defensoria Pública da União (DPU) apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação para que a própria Corte autorize o Judiciário a começar as expropriações. A ideia é dar um "jeitinho": usar uma outra lei que permite a medida caso a terra seja usada para cultivo de plantas que sirvam para a produção de drogas, como a maconha, por exemplo.

Dias depois, na terça-feira (14), o PSOL reforçou o pedido, mas dentro de outra ação, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) em setembro do ano passado, com o mesmo objetivo.

No âmbito do Congresso, tramita desde 2021, no Senado, um projeto de lei dos senadores Rogério Carvalho (PT-SE) e Paulo Paim (PT-RS) propondo regras mais detalhadas, prevendo as hipóteses de trabalho análogo à escravidão e o procedimento judicial para a tomada da terra.

Na Câmara, uma proposta muito semelhante foi apresentada nesta terça (14) pela deputada federal Reginete Bispo (PT-RS). As duas proposições ainda não começaram a andar: elas não têm relator, que colhe sugestões e negocia seu avanço, nem foram distribuídas às comissões temáticas, onde passam por discussão mais aprofundada para eventuais ajustes.

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Caso das vinícolas do RS reacende debate sobre "escravidão"

O tema também ganhou vulto neste mês de março em razão de vários casos que vieram à tona. Três vinícolas de Bento Gonçalves (RS), denunciadas por trabalho análogo à escravidão, optaram por pagar R$ 7 milhões de indenização por danos morais coletivos, além de verbas rescisórias de trabalhadores terceirizados. As vítimas eram na maioria oriundas da Bahia. Segundo o Ministério Público, os trabalhadores seriam submetidos a agressões físicas, jornadas de trabalho exaustivas e não receberiam salários.

Em Uruguaiana (RS), uma operação do MP do Trabalho, em conjunto com a Polícia Federal, encontrou 56 trabalhadores em duas fazendas de arroz que trabalhavam com defensivos químicos sem equipamentos de proteção e, segundo o órgão, tinham jornadas extenuantes. O órgão argumentou que eles teriam sido obrigados a caminhar diariamente por 50 minutos debaixo do sol para chegar à lavoura. Também usariam ferramentas próprias, comeriam alimentos supostamente estragados e teriam remuneração cortada se adoecessem. Nenhum deles tinha carteira assinada; dez eram adolescentes com idade entre 14 e 17 anos.

Em Bom Jardim de Minas (MG), três trabalhadores foram achados num sítio “em situação de extrema miserabilidade” por auditoras do Ministério do Trabalho. Ganhavam de R$ 400 a R$ 500 por mês, só tinham arroz e feijão para comer, tinham de pagar R$ 1 por ovo. Dois eram irmãos e trabalhavam na propriedade desde 2015, adquirindo um lote de 200 metros, por R$ 12 mil, sem documentos. A dona do sítio fez um acordo para pagar indenizações.

Todos esses casos têm dado impulso à esquerda para iniciar um movimento em favor das expropriações, seja no Congresso ou no STF. Já representantes e entidades ligadas ao agro, no entanto, ainda não reagiram. Não há manifestações do segmento nos projetos em trâmite no Legislativo nem nas ações apresentadas ao Supremo.

O maior problema da ação da DPU é a falta de parâmetros para identificar o que seria o trabalho análogo à escravidão. O órgão não apresenta quais práticas indicariam tal condição. A PGR, autora da ação mais antiga, também não traz essas definições.

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Os dois órgãos querem que o STF faça um apelo ao Congresso para aprovar a regulamentação, mas, enquanto isso não ocorrer, querem que se aplique a lei, existente desde 1991, que expropria, sem indenização, as terras para cultivo de plantas usadas para produção das drogas.

Essa lei define basicamente o procedimento judicial, com prazos rápidos para a decisão. Recebida a denúncia, o juiz deve citar os acusados e nomear um perito em cinco dias. A perícia tem de ficar pronta em oito dias. Em dez dias, os acusados devem contestar a denúncia, inclusive com perícia própria. Em 15 dias da contestação, o juiz marca o julgamento. A tomada da terra, no entanto, só é efetivada após o trânsito em julgado, ou seja, quando há o esgotamento dos recursos, com a manutenção da decisão de expropriação, em todas as instâncias.

O que dizem as propostas em tramitação no Congresso

As propostas em tramitação no Congresso preveem um rito semelhante, mas avançam para definir o que caracteriza o trabalho análogo à escravidão. O projeto dos senadores petistas considera o trabalho análogo à escravidão sob as seguintes condições:

  • trabalho forçado, exigido sob ameaça de punição, com uso de coação ou com restrição da liberdade pessoal;
  • isolamento geográfico ou o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
  • manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho ou a apropriação de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local;
  • restrição, por qualquer meio, da locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto;
  • sujeição a jornada exaustiva, ou seja, aquela que por sua intensidade ou extrapolação não eventual, prejudique o convívio social e familiar, cause sobrecargas físicas e mentais incompatíveis com a capacidade psicofisiológica do trabalhador, expondo-o a elevado risco para a saúde ou de ocorrência de acidente do trabalho; ou
  • submissão a condições degradantes de trabalho.
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Tais conceitos são baseados no que diz o Código Penal, ao tipificar o que é o crime de escravidão: “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.

Também comete o crime o empregador que “cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador”, ou “mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais”, com a finalidade de “retê-lo no local de trabalho”.

A definição de “condições degradantes de trabalho”, por sua vez, suscita controvérsia, por ser mais aberta. No projeto do Senado, elas estariam configuradas caso se acumulem ao menos três dessas situações: falta de água potável, banheiro, local para refeições e guarda de alimentos, além de alojamento, quando necessário; pagamento abaixo do salário mínimo ou com álcool ou drogas; falta de avaliação sobre riscos à segurança e à saúde; e agressão física ou psicológica, ou assédio sexual, perpetrados por superior hierárquico.

O projeto da deputada Reginete Bispo, na Câmara, tem definições mais enxutas, mas bastante próximas do que propõem os senadores. O projeto deles andou pouco no Senado, em boa medida, por pressão do governo anterior, do ex-presidente Jair Bolsonaro, mais próximo e simpático ao agro do que o atual Presidente da República.

O atual presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado Pedro Lupion (PP-PR), diz que a pretensão da esquerda de regulamentar o tema traz preocupação, sobretudo durante o governo Lula.

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“Não podemos ter mais uma frente de batalha contra o agro. Não é por uma questão específica de vinícolas do Rio Grande do Sul que vai se condenar todo o agronegócio. Essa questão da expropriação há muito tempo é discutida, já tivemos de salvar várias vezes o direito à propriedade contra interpretações do Judiciário e do Ministério Público. Temos corpo técnicos na FPA preparados para isso”, diz o deputado.

“O governo já tem dado demonstrações contrárias ao agro, nos mais diversos setores, inclusive na inépcia para conter as invasões do MST. Isso tem causado preocupação enorme no setor. E, por isso, vamos tentar avançar com os temas na Câmara para coibir isso”, completa.

Em maio de 2021, mesmo mês da apresentação da proposta do Senado, Bolsonaro afirmou que a regulamentação não sairia durante seu governo. “Nós devemos, sim, rever a emenda constitucional 81 de 2014, que tornou vulnerável a questão da propriedade privada. É uma emenda que ainda não foi regulamentada e, com toda certeza, não será regulamentada em nosso governo, porque nós precisamos alterar isso que foi feito em 2014, tornando vulnerável, repito, a questão da propriedade privada”, disse o ex-presidente, durante participação na cerimônia de abertura da 86ª edição da ExpoZebu, em Minas Gerais.

No mesmo discurso, ele exaltou o fim das invasões de propriedades rurais pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) naquele momento e o corte de verbas públicas para ONGs ligadas a eles. Bolsonaro também defendeu a redução de multas ambientais sobre produtores e disse que conflitos com indígenas teriam sido reduzidos pelo incentivo do governo para eles também produzissem.

Para o PSOL, no entanto, houve agravamento do problema nos últimos anos pelo enfraquecimento da fiscalização feita pelo governo anterior. A Defensoria Pública da União cita dados: aproximadamente 60 mil trabalhadores encontrados em regime análogo ao escravo desde 1995, sendo 2.575 em 2022, maior número desde 2013. A expropriação das terras, defende o órgão, além de promover justiça, serviria de exemplo para prevenir a prática, em razão da gravidade da punição.

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O relator das ações no STF é o ministro Luiz Fux, que, até o momento, não despachou em nenhum dos dois processos.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]