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Um novo regramento em elaboração, que pode ser publicado em forma de portaria ou decreto, pelo governo federal, a partir do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), vai alterar procedimentos e criar parâmetros para abordagens policiais, buscas sem mandados judiciais, uso de algemas e utilização de armas de fogo por profissionais da segurança pública. Para especialistas ouvidos pela reportagem, as mudanças que estão sendo tratadas podem prejudicar o combate ao crime e eventualmente até aumentar o risco de morte de policiais.
O Ministério da Justiça disse à Gazeta do Povo que o objetivo da mudança é modernizar normativas, incorporando novas técnicas, táticas e equipamentos, visto que o regramento atual foi publicado há 14 anos e estaria defasado. A nova regra promete tornar mais restritas ações como uso da força policial e de armas de fogo por agentes de segurança. O objetivo, segundo membros do governo disseram a interlocutores que participam do debate, seria o de diminuir a letalidade por forças policiais, tornar as abordagens mais “humanas” e limitar o uso da força.
O documento, que vem sendo elaborado desde o início deste ano, pode passar por consulta pública ainda em 2024. Suas regras valerão para as polícias penais, rodoviária federal, federal, civil, militar e guardas municipais de todo o Brasil. Os entes que não seguirem as novas regras podem deixar de receber recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). As informações são do Estadão e foram confirmadas pela Gazeta do Povo com integrantes do grupo de trabalho que participaram dos debates.
O grupo de trabalho é coordenado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, vinculada ao MJSP, e também integram o grupo representantes de associações de profissionais de segurança pública, secretários estaduais da Segurança Pública e dos ministérios da Justiça, dos Direitos Humanos e da Igualdade Racial.
Abordagens e ação sem flagrante devem ser justificadas por escrito às autoridades
As novas diretrizes prometem novos regramentos para as abordagens policiais, que terão de ser justificadas pelo ente de segurança, diante do que o documento deverá chamar de “fundada suspeita”. Se não houver a chamada fundada suspeita, um documento por escrito do agente deverá justificar os motivos para a abordagem.
“Isso significa que um policial rodoviário federal não poderá parar um condutor e fazer teste do bafômetro se o motorista não manifestar suspeita do uso do álcool? Isso me parece descabido. Essas medidas são uma aberração e podem elevar casos de morte de policiais”, afirma o especialista em segurança pública Sérgio Leonardo Gomes, que por 15 anos integrou o serviço de inteligência da PRF.
Na prática, a intenção do governo é impedir que os policiais usem a intuição e experiência de anos de patrulhamento ao escolher quem vai ser abordado. Por vezes, um suspeito não tem uma arma ou drogas à vista, mas seu comportamento, como nervosismo e forma de andar e falar, mostram ao policial experiente que ele está em situação irregular.
Críticos da polícia dizem que essa percepção seria baseada em estereótipos preconceituosos, baseados na cor da pele ou na forma como uma pessoa se veste. O documento tenta agora impor essa visão ao não permitir que abordagens sejam feitas com base em critérios "subjetivos ou não demonstráveis de maneira clara".
“Se as abordagens precisarão ser justificadas, isso inibe o tino policial ao analisar que algo pode estar errado. Isso também vai desestimular o agente de fazer a abordagem por receio de consequências, o que pode deixar em liberdade foragidos da justiça ou pessoas que estejam agindo de forma ilícita. Os presídios devem estar comemorando essa medida”, afirmou o coronel da reserva da PM no Paraná, Alex Erno Breunig, que também é advogado especialista em segurança pública.
Além disso, antes de revistar uma pessoa, o agente da lei terá que informá-la sobre o motivo da busca e garantir que o procedimento seja "o menos invasivo possível". Segundo analistas, isso pode colocar o policial em perigo no caso da abordagem de um suspeito armado que tenha a intenção de reagir.
Para Gomes, há uma gama de leis que pode ser usada para denunciar a conduta de maus policiais em abordagens, mas alterar regramentos de conduta é tornar a ação policial ainda mais perigosa e altamente restritiva. “Não estamos falando de países que têm uma segurança pública como a Suíça, estamos falando do Brasil, onde precisamos lidar com o crime organizado e o tráfico de drogas”, completa.
Os novos regramentos também prometem estabelecer que todas as ações policiais e abordagens sejam filmadas, sempre que possível.
O agente de segurança também deverá pedir consentimento do morador ou proprietário de um estabelecimento para buscas em residências nas quais não há mandados para busca ou prisão. As algemas só deverão ser usadas no caso de o suspeito oferecer risco de fuga, à integridade física de pessoas próximas ou oferecer resistência à prisão.
O uso fora desses padrões também deverá ser justificado pelo policial de forma escrita. “Muitos policiais podem simplesmente deixar de fazer as abordagens diante da burocracia e de possíveis consequências que isso possa gerar - mesmo que ele esteja correto na sua atuação. Isso é muito preocupante”, destaca o especialista.
Regra para uso de armas de fogo pode sofrer alterações
As novas regras que o governo quer impor aos policiais e guardas também dispõem sobre alterações no texto que estabelece parâmetros para o uso de armas de fogo. O novo documento diz que "o emprego de arma de fogo constitui medida de último recurso".
A Portaria Interministerial 4.226/2010 em vigor diz que o disparo de arma de fogo tem que se pautar em normas internacionais de proteção aos direitos humanos, deve obedecer "aos princípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência" e que os agentes de segurança pública não devem atirar "exceto em casos de legítima defesa própria ou de terceiro contra perigo iminente de morte ou lesão grave".
Ou seja, o texto foi reduzido, mas continua vago. Tanto a nova portaria quanto a que está em vigor trazem recomendações práticas (regras de engajamento) que não sofreram grandes alterações com o novo texto:
- Utilizar arma de fogo contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos profissionais de segurança pública ou a terceiros;
- Utilizar arma de fogo contra veículo que desrespeite ordem de parada ou bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão a terceiros ou aos próprios profissionais de segurança pública;
- Apontar arma de fogo em direção a pessoas durante os procedimentos de abordagem como prática rotineira e indiscriminada;
- Efetuar disparo a esmo ou de advertência.
Como se trata de uma minuta, os itens ainda podem sofrer alterações.
Senador teme que novas regras sejam invasão de competência
Para o coronel Breunig, que também é vice-presidente da Associação dos Oficiais da PM e dos Bombeiros Militares do Paraná (Assofepar), medidas como essa devem aumentar a letalidade, a morte de policiais, diminuindo tempo de resposta em casos de ameaças à vida dos agentes. O coronel avalia que a tramitação desse tipo de proposta sempre desperta atenção do setor.
“Lembramos que os policiais do Brasil não utilizam arma de fogo porque querem, mas porque necessitam. Ademais, os policiais não são videogame, eles têm apenas uma vida. Enfrentar a criminalidade com severas restrições à arma de fogo, significa amarrar os policiais. Acaba com a proatividade policial, com efeitos extremamente perniciosos para a sociedade”, alerta.
O senador Sergio Moro (União-PR) disse que o Senado não respeitará invasão de competências que possam constar no novo regramento.
Moro é membro da Comissão de Segurança do Senado Federal. “Estaremos atentos a esse novo documento anunciado pelo Ministério da Justiça [...] Não aceitaremos, porém, invasão da competência legislativa ou da competência dos estados, nem restrições à atuação policial que não encontrem previsão legal ou que impeçam a ação contra criminosos”, destaca.
Para o congressista, seria oportuno o prévio diálogo do governo com o Congresso antes da edição do ato.
Política de desencarceramento e problemas graves à segurança pública
O coronel da reserva da PM no Paraná, Alex Erno Breunig, que também é advogado especialista em segurança pública, faz ressalvas sobre o uso de algemas. Segundo ele, a jurisprudência já limita significativamente sua utilização, a exemplo do que preconiza a lei sobre buscas sem mandados. “No entanto, criar mais restrições pode expor os policiais e a sociedade a riscos. Isso é inadmissível do ponto de vista da segurança pública”, avalia.
“O que não nos parece viável é burocratizar essa autorização. As medidas nos parecem que vão retirar a proatividade dos policiais, redundando em menor quantidade de prisões e com a circulação mais facilitada de criminosos”, reforçou.
Ele opina que se trata de uma aparente medida de estímulo à não prisão e ao desencarceramento de presos.
Desde o período em que foi ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e mesmo depois de assumir o MJSP, o ministro Ricardo Lewandowski tem defendido a necessidade de uma reforma no sistema prisional “no sentido de um desencarceramento” e avalia que há no Brasil centenas de milhares de presos em “condições desumanas”.
Para parte dos especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, regras como as que estão prestes a sererem publicadas pelo governo podem contribuir para esse processo, estimulando queda imediata nas prisões. “E os criminosos poderão ficar nas ruas, de certo modo esnobando policiais com tantas limitações e regras que os impedem de fazer abordagens e de atuar na segurança pública”, completa Sergio Leonardo Gomes.
Gomes destaca que medidas como essas podem aumentar a criminalidade de forma geral. A não adoção desse novo manual será optativa para as polícias dos estados, mas haverá consequências. O governo que não o adotar também não vai receber verbas federais para o combate à criminalidade.
Membro de grupo que elabora documento diz que medida vai proteger policiais e população
O presidente da Associação Nacional dos Guardas Municipais do Brasil, Reinaldo Monteiro, que faz parte do grupo de trabalho que está estruturando a publicação, em forma de decreto ou portaria, tranquiliza os profissionais da segurança. Monteiro disse à Gazeta do Povo que o novo regramento vai não apenas determinar uma padronização e atualização sobre abordagens, como garantirá mais segurança aos profissionais em operação.
“Participei de todas as discussões da construção dessa proposta no grupo que tratou dos princípios e diretrizes gerais e posso garantir que se discutiu com pessoas muito qualificadas a segurança pública. Foram debates democráticos, trouxeram preocupação com o próprio policial e de informar à população sobre as regras. Vai garantir mais segurança a todos”.
Monteiro afirma que uma das principais preocupações foi a de atualizar uma norma que está vigente há 14 anos e que está ultrapassada diante das mudanças nas legislações e novas regulamentações.
“O [novo] documento não é invenção da cabeça de ninguém, foi amplamente debatido. É muito qualificado, a portaria que [hoje] trata do uso das forças dos agentes é de antes do Estatuto Geral das Guardas Municipais de 2014, é de antes do Sistema Único de Segurança Pública [Susp] que a lei é de 2018. Nesse período também houve várias alterações em diversas leis, a própria decisão do STF sobre o porte maconha, esse novo documento vem para modernizar e dar segurança à população e aos agentes”, avalia.
O Conselho Nacional de Secretários de Segurança Pública (Consesp) também participou da elaboração das novas regras, mas só deverá se manifestar após a publicação da minuta do documento, o que deve ocorrer em outubro.
O deputado federal Alberto Fraga (PL-DF), coordenador da Frente Parlamentar da Segurança Pública na Câmara dos Deputados, usou as redes sociais para criticar a edição das novas medidas. “Policial morrer pode? Vergonhoso”. Para o deputado, policiais estão sendo impedidos de trabalhar enquanto o governo tenta agir como se houvesse violência no Brasil. “Vamos reagir contra esse absurdo”.
Em nota, o Ministério da Justiça também disse à Gazeta do Povo que concluiu as atividades do grupo de trabalho responsável pela atualização das diretrizes sobre o uso da força por agentes de segurança pública.
“O objetivo é modernizar o normativo, incorporando novas técnicas, táticas e equipamentos, visto que a Portaria nº 4.226/2010 foi publicada há 14 anos. Nesse período, ocorreram avanços expressivos em tecnologia, gestão de crises, direitos humanos e mudanças no cenário da segurança pública. Assim, a atualização visa alinhar as orientações ao contexto atual e aos padrões internacionais mais avançados”, descreve.
Segundo a pasta, na última semana, o MJSP também promoveu um seminário internacional sobre o tema, onde foram feitas contribuições adicionais para a revisão do documento.
“O documento ainda está em trâmite interno, e o prazo para sua publicação, bem como a possibilidade de consulta pública, seguem em análise”, informou a pasta.