Paralisação da coleta dominada pela máfia napolitana provocou a “crise do lixo” na Itália| Foto: EFE/Ciro Fusco
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Mesmo sem o estilo hollywoodiano dos Corleones com ternos, chapéus e o ósculo entre os irmãos da máfia italiana, o Primeiro Comando Capital (PCC) importa o modelo mafioso para a organização criminosa com objetivo de se infiltrar no poder público, por meio da prestação de serviços concedidos pelo Estado. Na vida real, as semelhanças são bem maiores que no cinema com o objetivo da lavagem de dinheiro, proveniente do crime organizado, principalmente do tráfico de drogas.

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O resultado é a transformação dos recursos ilícitos em dividendos para aquisição de bens, imóveis e carros de luxo, como apontou a operação Fim da Linha, deflagrada nesta semana pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP), em parceria Secretaria de Segurança Pública, Receita Federal e Polícia Militar.

As empresas Upbus e TransWolff, responsáveis pelo transporte de quase 700 mil passageiros, diariamente, na cidade de São Paulo, foram alvos da operação que prendeu quatro pessoas e bloqueou R$ 596 milhões, além da apreensão de veículos de luxo, lanchas e motos aquáticas. Ao todo, as duas companhias receberam R$ 800 milhões para prestação do serviço da prefeitura da maior capital do país em 2023.

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Promotor de Justiça do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), Lincoln Gakiya afirma que o resultado da operação é uma comprovação que o PCC passou a adotar o modelo para os negócios da facção com base na doutrina mundial sobre as máfias.

“Todos os requisitos para que você considere uma organização criminosa como mafiosa, infelizmente, essa facção paulista já atingiu. O primeiro deles, a ausência do Estado. Temos a infiltração no poder público como ficou bem evidente na operação. Isso aconteceu na Itália com o domínio de outros ramos do serviço público”, aponta o promotor.

No ano passado, Gakiya participou de um seminário internacional de combate às organizações criminosas transnacionais e foi alertado pelas autoridades italianas. “O chefe de polícia de Palermo me disse exatamente isso: o que está acontecendo hoje com o PCC no Brasil, vivemos na Itália nos anos 80”, recorda. Palermo é uma das principais cidades da Sicília, berço da Cosa Nostra, a máfia siciliana que inspirou a criação dos personagens do “O Poderoso Chefão”.

Mas foi a Camorra que mostrou até onde os tentáculos da máfia podem chegar com consequências nefastas. Além do controle de empresas na área têxtil e de empreendimentos na construção civil, a máfia napolitana foi responsável por um esquema ilegal de coleta de lixo com impactos no meio ambiente e na saúde pública no Sul do Itália.

Com o vazio do Estado na área e o alto custo para o setor privado na destinação correta de resíduos, a máfia napolitana dominou o serviço com a prática de lixões a céu aberto em aterros clandestinos, nas terras de camponeses e em áreas de proteção ambiental. Em 2008, o serviço de coleta de lixo parou em Nápoles pela saturação dos aterros e desencadeou protestos na "crise do lixo" italiana. Em 2014, o setor de agricultura também pagou o preço. Uma área na região da Campania, entre as cidades de Nápoles e Caserta, entrou em quarentena pela contaminação do solo na “Terra do Fogo”, que recebeu o nome por causa da queima de resíduos, entre eles, materiais tóxicos.

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No Brasil, Gakiya alerta para a infiltração perigosa das organizações em serviços essenciais para a população. “Se você participa do certame de uma licitação pública e recebe essa concessão, você ganha a possibilidade de explorar um serviço público essencial, então, de certa maneira, a empresa acaba se infiltrando no poder público.”

Engenharia financeira para lavagem de dinheiro tem assessoria de contadores

O promotor do Gaeco Lincoln Gakiya também destacou a “expertise no branqueamento de capitais”, provenientes do tráfico de drogas, com a consultoria de profissionais especializados em ocultação de patrimônio e lavagem de dinheiro. “Não estamos tratando de casos envolvendo 'laranjas', de maneira simplória como existia no passado. O dinheiro, normalmente, não tramita no mercado financeiro formal. É usado uma engenharia financeira com assessoria de contadores, que são profissionais para indicar os caminhos, além da criação de dezenas de empresas”, informou Gakiya, que lembrou que mais de 28 empresas estão ligadas ao esquema para poder dificultar o rastreio dos bens.

Segundo a superintendente da Receita Federal, Marcia Cecília Meng, um dos alvos da operação possui imóvel avaliado em R$ 10 milhões, mas que foi declarado com o valor de R$ 800 mil. "Ficou demonstrada também distribuição indevida de dividendos das empresas, que são isentos do pagamento de impostos. Um dos sócios recebeu R$ 14,8 milhões sem recolher tributos", revela. Ela também aponta que o grupo criminoso usou compensações fraudulentas para concorrer em licitações públicas e usou holdings com a intenção de dissimular a propriedade de bens.

Meng ainda ressalta a dificuldade enfrentada pelo poder público para controlar a entrada e saída de drogas nos portos e aeroportos no Brasil. Segunda ela, entre 2022 e 2023, duas toneladas de drogas foram apreendidas no aeroporto de Guarulhos de São Paulo, usado para o tráfico internacional com uso de “mulas”, pessoas que escondem ou engolem as cápsulas de cocaína ou “malas contaminadas”, em que os pacotes de entorpecentes são enviado por meio das bagagens de terceiros sem envolvimento com o crime organizado.

“No aeroporto de Guarulhos, funcionários fizeram uma rebelião por causa de uma norma de alfandegamento imposta. Perceba que não é uma ação única e localizada. Estamos descrevendo aqui um pedaço do todo que mostra que esses grupos acabam saindo da completa ilicitude e se encaixando em situações para acessar o poder público por meio de uma licitação ou eles impedem uma prestação de serviço adequada, como foi no aeroporto, onde não se tem apenas funcionários insatisfeitos”, comenta.

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Entre 2019 e 2023, a Receita Federal e parceiros apreenderam 201 toneladas de drogas, principalmente cocaína, sendo que 52% do volume total foi localizado no Porto de Santos (SP), o maior do Hemisfério Sul.

“O lado de lá é muito organizado, então precisamos ser mais organizados ainda”

Superintendente da Receita Federal, Marcia Cecília Meng

Grilagem do PCC e controle de milícias no Rio em máfia imobiliária

Associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o professor de segurança pública na Fundação Getúlio Vargas (FGV) Alan Fernandes lembra que o serviço de transporte funcionava, clandestinamente, na periferia de São Paulo, por meio das peruas, o que deu know-how ao crime organizado para a atividade.

“As pessoas que trabalhavam com esses serviços como transporte em peruas clandestinas no final da década de 90, início dos anos 2000, já viviam à margem da lei, não necessariamente faccionadas. Com a expansão, essas pessoas que trabalhavam com a exploração de peruas, começam a ser arregimentadas [pelo crime organizado]”, explica o professor, que ainda ressalta que a prestação não é vista pela facção apenas como uma fonte de lucro mas, principalmente, como um meio para lavagem de dinheiro do tráfico de drogas.

No setor imobiliário, Fernandes comenta que existem informações de frentes do PCC para grilagem de terras à base da força para se estabelecer no mercado imobiliário nas zonas norte e sul de São Paulo. No entanto, na avaliação dele, a facção é menos estruturada em relação às milícias do Rio de Janeiro, alvos de investigações no controle de territórios por meio das moradias com fins eleitorais.

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Ele acredita que as investigações ainda podem avançar e esclarecer se existem relações entre o PCC e lideranças políticas, assim como no caso Marielle Franco no Rio de Janeiro. Após a prisão dos irmãos Brazão como mandantes do assassinato da ex-vereadora, a principal suspeita é que o crime possa ter sido motivado pela oposição de Marielle ao projeto do então vereador Chiquinho Brazão (sem partido), hoje deputado federal, para regulamentação de áreas que poderiam beneficiar a expansão imobiliária sob o controle e exploração de milicianos no Rio.

“Você não tem organização criminosa ou mafiosa se não tiver corrupção policial, o que não é suficiente dependente do tamanho do negócio. O passo adiante é ter representantes dentro das estruturas estatais”, alerta.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]