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Meu primeiro crítico literário foi um professor de ciências do Colégio Estadual, lá pelo segundo ou terceiro ano do antigo ginásio. Era um homem magro e alto, sempre de terno e gravata, com o cabelo revolto e a expressão torturada de um personagem de Dostoiévski – lembro até hoje do gesto eloquente com que ele demonstrava a lei da gravidade, alguém curvado resistindo à força tremenda que o puxava para baixo. Outra lembrança notável era o fato de levar a turma em caminhadas ao Passeio Público. Atravessávamos a rua da Casa do Estudante, então sem saída, e entrávamos felizes no parque atrás do mestre, como na cena de um filme inglês de época. Ele explicava os bichos e as plantas, avançando ao acaso e respondendo perguntas – uma aula completa ao ar livre.

Único senão aos meus olhos de criança militante, o professor era um anticomunista ferrenho. Lembro de um relato dramático que ele fez sobre uma família que havia conseguido fugir da União Soviética. Uma experiência tão terrível que o pai em poucos dias ficou com os cabelos completamente brancos, o que foi um gancho para outra aula de ciências. Como em casa eu vivia rodeado de adultos comunistas, grevistas e revolucionários, ouvindo o dia inteiro conversas dos mais velhos sobre o horror da ditadura brasileira recém implantada, não conseguia entender (matutando em silêncio, é claro) como o professor poderia ser contra a Rússia, baluarte do comunismo e porta de entrada do Paraíso.

Mas relevei essa falha e o escolhi para mostrar um dos meus primeiros poemas. O tema era o carnaval – o que mostra que o carnaval curitibano há 40 anos até que conseguia inspirar um adolescente. Bem, o texto era incrivelmente ruim. Lembro apenas os dois versos do refrão de cada estrofe: "O carnaval assim é/com muita dor no pé". Pés quebrados e horrendos, mas lá fui eu, no final de uma aula, mostrar a obra ao mestre eleito.

Atencioso, ele pegou meu poema e começou a ler. Eu sorria, tentando adivinhar o tamanho do elogio que eu iria repetir faceiro em casa, onde meu prestígio andava em queda. Mas a face do professor foi ficando séria, quase carrancuda. Num gesto brusco, virou o verso da página, como para descobrir alguma sequência ou algum segredo, voltou à poesia, impaciente, e enfim sacudiu o papel:

– Quem escreveu isso?!

Teria eu trocado a página? Não, era o poema mesmo – confessei:

– Fui... eu...

Ele devolveu o papel, acusador:

– Isso não foi você que escreveu.

Virou as costas e sumiu. Custei a entender – ele me acusava de plágio. Assim, a primeira crítica que recebi foi moral, não estética. À distância de quase meio século, não lamento. É tentadora a ideia de dar ao incidente algum sentido e decidir que, naquele instante, pressenti que o problema central da literatura seria antes ético que técnico. Talvez, mas não pelo momento, que apenas indicava que ele não conhecia nada de literatura.

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