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 | Gilberto Yamamoto
| Foto: Gilberto Yamamoto

Um dos prazeres que sinto ao descer à praia e passar uns dias aqui embaixo é simples: abrir a porta e dar com um quintal, um gramado, a bola esquecida, a mureta adiante, árvores, o outro lado da rua, o vizinho passando – em vez de, como sempre, apenas encontrar a porta do elevador. Sim, vai um toque de passadismo nessa frase, a história de que "no meu tempo, sim, que era bom", o velho chavão dos antigos, cada vez mais indóceis diante de um mundo que parece dar saltos toda semana. Bem melhor, diríamos, é a lentidão rangente do carro de boi na rua de lama.Mas não caio nessa esparrela sentimental: tenho uma relação visceral com a abstração urbana, a geometria dos prédios, o mundo mental que povoa a cidade grande; gosto do conforto engavetado dos apartamentos. Adoro internet na veia, ver filmes sem hora marcada, investigar gavetas e, martelo e prego à mão, uma vez a cada três anos tirar um quadro da sala e colocar no quarto, e vice-versa; e pesquisar qual a marca confiável destas horrendas lâmpadas fluorescentes que transformam tudo que tocam com a brancura sinistra de um corredor de hospital. Mas, como ainda não me transformei num cyborg completo, daqueles de trocar bateria nas costelas, que diabos, é bom abrir a porta e encontrar terra e ar, digamos, puro. (E aqui basta sair direto à rua e caminhar 40 minutos medicinais à beira do mar, sem ter de enfrentar as calçadas curitibanas.)

Na cidade, as casas tranquilas vão ficando cada vez mais inviáveis pelo aparato de segurança que exigem no mundo hostil do espaço público, a não ser na op­­ção pelos novos fossos medievais, bairros inteiros protegidos do mundo real, verdadeiros apartamentos horizontais. Na cidade, tudo segrega.

Aqui nesta orla que até o Google Earth esqueceu, uma mancha difusa de 10 anos atrás, ainda é possível alguma tranquilidade para curtir ao velho estilo os prazeres da casa. O homem caseiro é, antes de tudo, um operário em férias – há um prazer de infância na maleta de ferramentas, um bom alicate, uma chave de fenda, a fita isolante, o formão (ainda ontem dei uma ajeitadinha na porta do banheiro, prendendo na base – agora ficou perfeita, olhe só como fecha fácil, plact!). E o preço da felicidade é a eterna vigilância: tem goteira? Não, o novo telhado resistiu maravilhoso à chuvarada inclemente dos últimos dias, mas a janela dos fundos emperrou – será que a gente encontra à venda esse encaixe de alumínio? E me lembram que uma boca do fogão não está acendendo.

Claro, às vezes batem palmas na calçada – é alguém sorridente propondo recuperar minha alma de pecador com alguma oferta infalível de bem-aventurança e salvação eterna em troca de um pequeno auxílio que vale um brinde. Tudo bem, estou perdido mesmo; e adiante apita sonoro o inconfundível aviso salvacionista do sorveteiro. Um belo dia de sol nas frestas da chuva.

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