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A última vez que vi Valêncio Xavier foi na Redação da Gazeta, há coisa de dois anos. Ele já não se lembrava do meu nome, mas sabia ser um velho conhecido. No mais, fez tudo sempre igual – plantou-se do meu lado e anunciou ter uma idéia "genial, diabólica": ia filmar a passagem de Che Guevara por Curitiba, uma lenda urbana sobre a qual afirmava ter provas para apresentar aos agentes da CIA, se preciso fosse.

Em seus guardados – um verdadeiro arsenal de bicos-de-pena, livros sebentos e alfarrábios – havia o retrato de um "pinta" de terno branco e chapéu-panamá. Valêncio dizia que a foto foi sacada num boteco pé-sujo da Marechal Floriano, o Toca da Onça, onde, diz-se, um Che à paisana palestrou para a companheirada, nos idos de 60. "É ou não é o Che?", perguntava, testando a platéia.

Não era recomendado contrariá-lo. Mas cá entre nós, ele já tinha filmado uma Paixão e Morte de Nosso Senhor estrelada pelo Inri Cristo. E usou uma riquíssima aquarela de nu feminino para ilustrar um conto macabro sobre um jovem empalado num cortiço paulistano. Podia transformar qualquer desenho e anúncio de jornal no que bem entendesse. Não lhe custava nada converter o malandro da foto em Guevara. Para isso era artista.

Meses atrás, descobri a origem de sua obsessão por essa história. O cientista Oldemar Blasi lhe confidenciou ter um amigo que esteve no tal encontro com o guerrilheiro. Pois lhe atiçou as lombrigas. Não à toa, a suposta visita do Che virou uma peça de seu "álbum de figurinhas" literário, do mesmo naipe que a prostituta japonesa ou a vendedora de fósforos.

De um conto que o escritor escreveu sobre a passagem de Guevara não se tem notícia. Já a idéia do filme, como se sabe, voltou à baila quando Xavier já estava seqüestrado pelo Alzheimer. A perda da memória, contudo, lhe acentuava uma característica encantadora – o jeitão de guri desembestado. Falava de "Che em Curitiba" como se tramasse uma traquinagem de moleque em meio ao jogo das bolas de gude. Tanto é que me convocou para o papel principal.

Brinquei que foi o maior elogio que recebi: estrear no cinema já na pele do Che Guevara. Duro ia ser conviver com a inveja do Gael Garcia Bernal e do Benício Del Toro. Ele não se tocou da anedota. Desceu as escadas rumo à Rua Pedro Ivo – dou um dedo – imaginando cada plano-seqüência de seu novo trabalho. Sempre tive a impressão de que ele queria fazer filmes o tempo todo, mas como não tinha dinheiro para tanto, produzia livros com imagens. No fim da vida, não seria diferente.

A primeira vez que vi Valêncio Xavier foi numa reportagem sobre as Balas Zequinha – assunto do qual se tornou bacharel. Se não me engano, o texto aludia à sua fama de galo-de-briga. Em 1995, ao saber que ia dividir o teto com ele no jornal, tive pânico, seguido daquele pensamento fanho que solapa a humanidade: "Ih! Não vai dar certo." De fato, quase saímos no braço uma vez. Foi quando ouvi um dos seus brados de guerra: "A ditadura já acabou." Explica muita coisa.

O sujeito de coletinho de tricô e voz de Pato Donald era um libertário. E um libertário com ego de boxeur – uma de suas paixões. Sabia mais do que todo mundo – "me colocaram nos cornos da Lua", comemorava, a cada elogio. Mas não se encolhia. Em segundos, nos colocava na linha com Sylvio Tendler ou Boris Schnaidermann, para citar dois medalhões que saltavam de sua agenda escangalhada. Em tempo – ele adorava telefone e tirava os amigos da cama bem cedo. "Alô, aqui é o Valêncio..." Com aquela dicção, quem mais poderia ser. Vou agradecer de joelhos a década que passei em sua companhia.

A melhor lembrança é de quando ele chegou à Redação com os originais de Minha mãe morrendo e o menino mentido. Li de primeira mão. Fiquei sabendo naquela manhã que um "menino mentido" era um garoto que não deu certo. O próprio. Valêncio ficou órfão da mãe Maria aos 13 anos. Feito o piá do Cinema Paradiso, circulou pelo Largo da Arouche, em São Paulo, vendo filmes que não eram para sua idade, colecionando histórias sobre homicidas, prostitutas e proxenetas.

Nunca cresceu. E pagou caro pela arte de ser menino. Tinha tanto para brincar que mal parava em empregos. Só foi descoberto aos 69 anos, quando Mez da Grippe virou sensação nacional. Um dia, em minha casa, disse que quando as crianças casassem – o Carlos e a Ana – ia se mudar com a mulher Luci para um lugar pequenino como aquele. "Não ia dar certo." Em poucos metros, não seria possível ele e os filhos fazerem aquelas danças dos cossacos que os Niculitcheff – seu sobrenome menos conhecido – adoravam. Nem receber tanta gente, como faziam – essa gente toda que hoje espera um telefone dele às 8 da matina. E que jura ter visto o Che de chapéu-panamá, flanando na Marechal.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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