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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

A maioria não escolhe a cidade onde mora. Apenas se deixa ficar nela. Ou porque nasceu nesse lugar ou porque é onde a família ou o emprego está. Adotar outra cidade, do nada? É uma ousadia.

Acho que muitos dos que dizem que amam a cidade onde vivem também amariam outro endereço onde fossem levados pelas circunstâncias a passar muitos anos. O tempo nos conecta aos lugares. O tempo é que é poderoso.

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O ethos de um lugar se torna o nosso ethos. Sem nos darmos conta, assimilamos aqueles valores e eles se tornam nossos. Acreditamos até que nascemos com eles. Quem muda de cidade se dá conta disso. É como perder a inocência. Para sempre se sentirá um pouco estrangeiro em qualquer lugar onde more. Os estrangeiros são mais livres, mas pagam o preço.

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Na cidade pequena se faz muita fofoca e cada pequeno evento se torna um grande evento

Ouvi de um diplomata inglês: ao encontrar um estrangeiro, é mais sensato perguntar sobre sua cidade do que sobre seu país. A cidade é uma esfera íntima onde os sentimentos perigosos, como o nacionalismo, se expressam de forma mais sutil. Para evitar desconforto – uma especialidade dos diplomatas –, não incite o estrangeiro a falar de sua pátria. Se quer sondar sua alma, pergunte sobre sua cidade.

Fiz um teste com Mario, o italiano que anda por aqui esta semana. “Mario, o que você pensa sobre Roma?” Mario me falou sobre a grandiosidade histórica da capital italiana, especialmente sobre os vestígios do Império Romano.

Acho que alguém que vive em uma cidade-monumento, como Roma, carregará sempre o peso do passado gigantesco. Penso em Orham Pamuk, que coloca Istambul, que também foi capital de dois impérios, como personagem de seus livros. O presente e o futuro de Roma e Istambul sempre parecerão menores que seu passado.

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A grande urbe separa seus moradores por classe social porque nela o mercado imobiliário é um elemento tão vivo como qualquer outro da comunidade. Cada um no seu espaço. Na cidade pequena, há mais chances de todos se acotovelarem algum dia, seja na rua, na escola, na igreja. Os orgulhos e vaidades continuam lá, os preconceitos ditam aproximações e distâncias, mas quem quiser ver o outro verá.

Foi na cidade pequena que tive um colega de classe que era engraxate. Fora do horário de escola, eu o via trabalhando em frente ao bar com a caixa de madeira. Tinha 12 ou 13 anos quando morreu atropelado por um caminhão. Marcos era seu nome. Era um bom menino.

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Na cidade pequena se faz muita fofoca e cada pequeno evento se torna um grande evento. Um acidente de trânsito pode render conversa por dois dias seguidos. Na cidade de meus tios, um serviço de alto-falante na praça avisava quando ocorria um falecimento. Parece que todo mundo morava perto da praça e que todo mundo conhecia os falecidos.

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Na cidade pequena tem muitas mulheres perdidas. Ou pelo menos as pessoas inventam perdições para as mulheres, que são obrigadas a carregá-las pelo resto da vida. Havia uma mocinha bonita na minha vizinhança. Sobre ela diziam que levava os namorados para dormir no seu quarto, no sótão do velho casarão onde morava com os velhos pais. Eram muitos namorados – comentava-se maldosamente. Os pais adoravam a mocinha e ignoravam suas aventuras. Eu não entendia de onde apareciam tantos namorados e como eles subiam as escadas sem acordar os velhinhos. Quanto daquilo era mentira? Nunca vou saber.

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