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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Shrek é um ogro ranzinza que ama a solidão de seu cantinho na floresta. Ele se apaixona e muda de vida para ter a amada Fiona por perto: com o casamento vêm os filhos, visitas e parentes. Shrek adapta-se bem à rotina doméstica, mas as festas familiares acabam com ele porque, nelas, tem de agir como um ser social. E porque em festas familiares as pessoas estão sempre questionando sua forma de viver. E, se não es­­tão questionando nada, ele próprio se sente induzido a fazer isso: como vim parar aqui? Por que não sou mais o ogro selvagem e independente? Agora sou pai de família – e mais nada? E tudo aquilo que me caracterizava (no caso do ogro, a capacidade de assustar os outros e parecer perigoso) acabou?Jeff viveu muitos anos antes de Shrek ser criado pela Dream Works. Ele vive em Nova York, mas passa a maior parte do tempo viajando por lugares exóticos e inóspitos, como a Caxemira e o Paquistão. Jeff ama sua vida de solteiro independente. Só está preso em casa porque quebrou a perna. Ele também ama Lisa, que o ama também. Ela é maravilhosa (vamos resumir assim: ela é Grace Kelly). Para continuar com Lisa, Jeff sabe que terá de abandonar o trabalho que adora. Também terá de acompanhá-la em festas e almoços com amigos que gravitam em torno da chique Park Avenue. Jeff (James Stewart) é como Shrek: ele teme que a adaptação a uma vida fa­­miliar signifique uma traição a si mesmo.

Alfred Hitchcock (a esta altura, você já deve saber que estou falando de Janela Indiscreta) pega o fotógrafo que gosta de desbravar o mundo e o prende em casa, com a perna quebrada, tendo como único passatempo observar a vida doméstica dos vizinhos, pela janela. Vidas do­­més­­ticas que giram em torno não de desejos individuais, mas da combinação das ex­­pectativas de quem vive sob o mesmo teto. No caso que está no centro da trama, as ex­­pec­­tativas não se harmonizam e ocor­­re a tragédia, quando um homem mata a esposa.

A amostragem do mundo que Jeff vê pela janela comprova seu temor de que comprometer-se com a formação da família significará uma existência cercada por picuinhas. Mas ele também tem mostras de que a solidão extrema empobrece a vida, privando-a de doçura e companheirismo. Hitchcock não crava um final para a dupla Lisa & Jeff, mas existe uma promessa de futuro para os dois. Minha opinião? Se aquilo fosse vida real, os dois teriam muita dificuldade para conciliar seus estilos de vida.

Jeff e Shrek fazem pensar na realidade do casamento entre amores e vida possível. Não apenas amor ao outro, mas também amor ao trabalho e a um estilo de levar a existência. Jeff ama seu trabalho e seu estilo de vida (que expressam quem ele é) e teme que abrir mão disso acabará por anulá-lo como pessoa. Já Lisa sabe muito bem que não pode ser quem não é, mas acha que pode mudar Jeff. Por sua vez, no mundo de faz de conta do desenho animado, o temor se concretiza: o ogro que não age como um ogro perde o respeito da comunidade. Mas fingir que não tem a família só piora as coisas.

São dramas que caracterizam a vida adulta: cada compromisso que assumo me põe em um caminho e me tira de outro. Cada compromisso que aceito me modifica um pouco. Um pouco, diria eu, mas não totalmente, não internamente. O mundo externo é que não reconhece isso por sempre se basear na última aparência que vê. A família é o maior dos comprometimentos, aquele que po­­de ditar onde você vai viver, para onde irá nas férias, se deixará o emprego chato ou não. Por isso, para alguns, a constituição de uma família é algo assustador. E por isso alguns fogem da responsabilidade mesmo depois que já foram longe demais. Trata-se de uma complicada conciliação de expectativas, que de uma forma ou de outra, surge na vida de to­­do mundo (não é à toa que o mesmo assunto aparece em um filme de suspense de 1954, e em uma animação de 2010). A vida possível não abarca todos os amo­­res. Alguns se tornam impossíveis ou escassos ou apenas perdem espaço. Como diria a pragmática e sofisticada Lisa: c’est la vie.

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