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O presidente Jair Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro.| Foto: Marcos Corrêa/PR

O presidente Jair Bolsonaro fez em seu discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), na terça-feira (22), um apelo à comunidade internacional “pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”.

Bolsonaro não disse em nenhum momento que há cristofobia no Brasil, mas críticos e apoiadores do presidente reagiram à fala como se esse tivesse sido o caso. “Cristofobia no Brasil seria investigar as igrejas por lavagem de dinheiro?”, questionou uma jornalista via Twitter, em mensagem retuitada por mais de mil usuários. Outra arroba veiculou a mesma interpretação em uma postagem com mais de 3 mil retuítes: “Bolsonaro discursa na Assembleia Geral da ONU e diz que a ‘cristofobia’ é um grande problema no Brasil”.

Para o jurista Jean Regina, membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), o contexto da fala sugere que o presidente está falando da cristofobia em âmbito internacional. “Fica claro no discurso do presidente que ele está falando de cristofobia no mundo”, diz. Logo depois de ter falado em cristofobia, Bolsonaro mencionou o Oriente Médio, onde há alguns dos casos mais graves de perseguição a cristãos. Para Jean, isso evidencia a intenção do presidente.

“O ângulo que foi dado à fala denota muito como a comunidade vê o assunto. As pessoas enxergarem a fala sobre a cristofobia como uma politização para jogar confete para a bancada evangélica é ridículo, porque a cristofobia está acontecendo no Egito, na Nigéria, no Sudão, no Congo, no Iraque…”, afirma Jean.

Em todo caso, mesmo que por acidente, a fala de Bolsonaro acabou suscitando uma discussão no debate público nacional: existe cristofobia no Brasil?

Violência simbólica contra cristãos é cristofobia?

Não é preciso muito esforço para se lembrar de casos de violência simbólica contra cristãos no Brasil: o especial de Natal do Porta dos Fundos de 2019 veiculado pela Netflix, a exposição “Queermuseu” em 2018, o ato da Marcha das Vadias durante a visita do Papa Francisco ao Brasil em 2013, além das frequentes decisões judiciais que tentam impedir manifestações religiosas usando a laicidade do Estado como pretexto, são alguns exemplos desse tipo de violência.

Especialistas de diversas áreas ouvidos pela Gazeta do Povo reconhecem que há esse tipo de hostilidade contra cristãos, especialmente por parte de pessoas influentes nos meios de comunicação. Contudo, acham inadequado chamar de cristofobia a violência simbólica contra cristãos, já que o uso do termo para essas situações pode acabar minimizando situações mais graves de violência, como a perseguição a cristãos no Oriente Médio.

Para o historiador Julio Cesar Chaves, doutor em Ciências da Religiões pela Université Laval e professor da UPIS - Faculdades Integradas, há uma “banalização de conceitos”. “Há países em que o cristianismo é ilegal, como na Arábia Saudita. Nesses países, existe, sim, uma perseguição ferrenha aos cristãos. Cristãos são mortos por serem cristãos, sequestrados, torturados, executados… Nada disso acontece no Brasil. Se eu uso a palavra cristofobia para ficar me referindo a post de internet… Tudo bem, eu posso até usar esse termo, mas aí eu vou usar qual termo para falar sobre o que acontece com os cristãos no Oriente Médio?”, questiona.

Na visão dele, o que há no Brasil é um discurso de ódio que parte sobretudo da mídia e de usuários influentes em redes sociais. “É inegável que existe, hoje, no Brasil, certo discurso de ódio de alguns setores em relação aos cristãos – de maneira mais específica, em relação aos evangélicos e, de maneira mais específica ainda, em relação aos neopentecostais”, afirma. Não se trata, no entanto, de uma perseguição generalizada ou institucionalizada, diz o especialista.

Para Marco Cruz, secretário-geral no Brasil da Portas Abertas, uma organização cristã internacional que apoia cristãos perseguidos no mundo, a situação do Brasil não é comparável à das dezenas de países atendidos pela ONG.

“Consideramos o Brasil um país livre, um país onde as pessoas têm a liberdade de expressar sua fé. Não acontece perseguição de maneira sistemática contra os cristãos. Nós temos liberdade. Eu sou cristão batista e vou à igreja, tem várias igrejas aqui no bairro. O Brasil não é alvo do nosso trabalho de apoio à igreja perseguida”, diz ele.

Mas os casos de violência simbólica não seriam um tipo de perseguição? Para Cruz, há uma diferença relevante. “Falo isso comparando o Brasil com um país como a Coreia do Norte, que é o primeiro país da nossa lista mundial de perseguição. Lá é proibido ser cristão. Tem cerca de 300 mil cristãos secretos. Noventa mil em campos de trabalho forçado”, afirma. “Estive em vários desses países. No Iraque, por exemplo, que foi alvo do ataque dos extremistas do Estado Islâmico, milhares de famílias foram expulsas da região de Mossul. A gente atende a essas famílias com cestas básicas. Elas estão morando em contêineres em campos de refugiados. São mil contêineres, mais de 5 mil pessoas que pelo fato de serem cristãs foram expulsas das suas terras”, acrescenta.

Cruz não discorda da fala de Bolsonaro, mas rejeita entrar na polêmica sobre a cristofobia. “Um estadista falar do tema da liberdade religiosa para todos é muito importante. Falar dos cristãos, que são um grupo muito perseguido, isso também é importante. Isso é o aspecto positivo. Agora, politizar o tema não é nosso trabalho.”

Violência simbólica não pode ser o ponto de partida para outros tipos de violência?

Na opinião de Jean Regina, não há cristofobia no Brasil, mas a violência simbólica contra cristãos está em ascensão. “O que existe, e é crescente, é um momento significativo de violência simbólica para com o elemento religioso”, afirma.

O jurista Thiago Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião, diz que o Brasil caminha “de forma acelerada para a cristofobia”. “Estamos vendo vários setores da mídia, vários setores artísticos batendo em evangélicos, utilizando filmes, satirizando ícones sagrados, fazendo obras de arte também nesse sentido, obras cinematográficas no Netflix, artigos de diversos colunistas em diversas mídias jornalísticas dizendo que o Brasil vive na teocracia, que é absurdo um evangélico ser ministro…”, observa.

Para ele, há o risco de que a escalada na violência simbólica abra espaço para outros tipos de violência. “Está cada vez mais cáustico, cada vez mais agressivo. Até onde vai essa agressividade? Eu não sei se daqui a pouco vai desembocar para a violência real.”

Vieira defende a necessidade de os cristãos atuarem com firmeza para impedir a intolerância religiosa, ainda que o vitimismo não seja o caminho cristão. “Claro que Jesus Cristo morreu por nós, e disse ‘dai a outra face’ e ‘se alguém te pede para andar uma milha, ande duas’, mas isso não significa dizer que eu, como participante de uma comunidade política, não tenha a responsabilidade e o dever de promover coesão e ordem nessa comunidade. Quando eu vejo alguém perseguindo uma pessoa por causa da sua religião, por causa da sua cor e por causa do seu sexo, eu tenho o dever e a responsabilidade de denunciar, de dizer que isso não pode ser feito, inclusive quando é comigo.”

O jurista rejeita, no entanto, usar para a definição de cristofobia o mesmo parâmetro que costuma ser aplicado para definir a homofobia. Recentemente, por exemplo, o escritor e jornalista Leandro Narloch foi tachado de homofóbico e demitido da CNN Brasil por uma escolha de palavras que não agradou o público LGBT.

“O que é homofobia? É muito abrangente. Daqui a pouco, se eu disser que não concordo com o casamento homossexual, eu posso ser tachado como homofóbico. Se eu disser que a religião evangélica não representa a religação com Deus, daqui a pouco isso vai ser cristofóbico. Não estou dizendo que concordo com isso, mas, se a gente for usar a definição de homofobia como ponto de partida para o que é cristofobia, aí nós temos cristofobia no Brasil”, afirma Vieira.

Lei brasileira protege contra intolerância religiosa

Em 2019, o STF equiparou a homofobia ao crime de racismo, fazendo uma interpretação controversa da lei que criminaliza o racismo no Brasil e incluindo nela a discriminação contra homossexuais. Essa mesma lei também já estabelece como crime o preconceito com base na religião.

“A Lei do Racismo já prevê, no seu artigo 20, que, além do racismo étnico, existe a intolerância religiosa. O crime de cristofobia já existe no Brasil, e esse não por decisão do STF, mas porque está na lei”, afirma Thiago Vieira.

Há outras leis no Brasil que versam sobre temas relacionados à cristofobia ou à intolerância religiosa. O Código Penal, por exemplo, penaliza com detenção de um mês a um ano ou multa qualquer pessoa que “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa”, “impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso” ou “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente garante ao menor de idade a liberdade de crença e culto religioso, e prevê que menores infratores que estiverem em internato têm o direito de receber assistência religiosa caso desejem.

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