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O Projeto de Lei nº 4 de 2025, que pretende instituir um novo Código Civil no Brasil, está em tramitação no Senado desde o início deste ano e tem ganhado atenção entre juristas nas últimas semanas. Apresentado como uma "atualização" do Código de 2002, o texto altera profundamente áreas sensíveis do direito civil como liberdade de expressão, casamento e família.
A ideia de um novo Código Civil começou a causar polêmica no meio jurídico no começo de 2024, quando a comissão de juristas convocada pelo então presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG) apresentou uma bomba ideológica no primeiro relatório para o projeto. Ainda que esse relatório inicial tenha sofrido modificações relevantes até a apresentação do projeto de lei, a versão final protocolada por Pacheco é repleta de riscos.
Em abril de 2024, a comissão de juristas entregou um anteprojeto ao Senado reformulando alguns pontos controversos, mas mantendo outros. Mesmo diante de críticas de juristas e entidades, Pacheco não alterou o anteprojeto apresentado pela comissão.
Venceslau Tavares Costa Filho, professor de Direito Civil na UFPE, critica essa indiferença diante das críticas. "Eles mantiveram aquele anteprojeto de forma integral, sem alterar nenhuma vírgula – o que já é problemático, porque ele foi objeto de várias críticas. Isso já mostra uma falta de autocrítica, não só da comissão, mas principalmente do relator, que é o senador Rodrigo Pacheco. Ele não levou em consideração as críticas feitas por várias entidades, por vários juristas, professores, especialistas, em relação ao anteprojeto."
Projeto de Pacheco para o novo Código Civil atende a desejo do STF e empodera cartórios
Uma das mudanças preocupantes é a revogação expressa do artigo 19 do Marco Civil da Internet – norma que garante que plataformas digitais só sejam responsabilizadas por conteúdo de terceiros após decisão judicial específica. Isso pode abrir caminho para que redes sociais removam conteúdos por medo de punição, favorecendo a autocensura e prejudicando a liberdade de expressão, especialmente de vozes conservadoras. A derrubada do artigo 19 é vista por alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e congressistas de esquerda como importante para combater o que eles definem como "discurso de ódio" e "desinformação".
Outro ponto polêmico do projeto é a possibilidade de cartórios reconhecerem automaticamente a paternidade quando um homem indicado pela mãe se recusa a fazer exame de DNA. Hoje, esse tipo de registro só acontece com consentimento do pai ou por decisão judicial. A recusa ao exame pode ser levada em conta como indício, mas não basta para que o nome do pai seja incluído automaticamente.
O novo texto muda isso: permite que o cartório registre o pai com base apenas nessa recusa, sem processo, sem contraditório e sem juiz. Embora o caso possa ser levado à Justiça depois, a medida inverte o ônus da prova, fere a presunção de inocência e abre espaço para erros e abusos. Além disso, para Tavares, traz um "empoderamento dos cartórios".
Hoje, a Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já dispõe que a recusa do suposto pai a se submeter ao exame de DNA induz presunção de paternidade. Mas, na visão da advogada Andrea Hoffman, presidente-executiva do Instituto Isabel, converter isso em norma do Código Civil é um passo além "muito perigoso". "No caso de uma jurisprudência, por mais que ela possa ser aplicada e replicada, ainda é possível, em um juízo individual, verificar a circunstância da questão", diz.
Para ela, um dos principais problemas do projeto de Pacheco é justamente transformar entendimentos da jurisprudência, que antes podiam ser discutidos ou modulados caso a caso, em normas fixas do Código Civil, com efeitos mais diretos e difíceis de reverter. "Muita coisa [no projeto] vem sob o pretexto de que 'a jurisprudência já diz isso, a gente só precisa atualizar de acordo com o que a jurisprudência já definiu'", observa.
No campo da família, por exemplo, o projeto substitui as expressões "homem e mulher" por "duas pessoas" ao definir casamento e união estável. Embora isso esteja em sintonia com entendimentos do STF, a mudança consolidaria na legislação a ideia de que a diferença biológica entre os sexos é irrelevante para a formação da família, o que pode impactar desde políticas públicas até currículos escolares, além de apagar qualquer referência legal à complementaridade entre homem e mulher.
O projeto também abre caminho para a normalização da chamada "barriga de aluguel". Hoje, o tema é regulado apenas por normas do Conselho Federal de Medicina (CFM). A proposta de incluí-lo expressamente no Código Civil, ainda que com proibição de lucro direto, pode dar um status de serviço negociável à gestação, objetificando a mulher e retirando a maternidade do seu contexto natural.
Também chamam a atenção propostas que tendem a normalizar a multiparentalidade, ou seja, a noção de que mais de duas pessoas podem ser reconhecidas como pais ou mães da mesma criança. Hoje já há jurisprudência permitindo que isso ocorra, mas há exigência de decisão judicial específica. Converter esse entendimento em lei pode enfraquecer o modelo de núcleo familiar estruturado e criar disputas de autoridade sobre os filhos entre vários adultos.
Além de todos esses aspectos, para Tavares, há um problema que deve ser destacado como essencial: a sociedade não pediu o novo Código Civil. Não houve demanda de advogados, professores ou da sociedade civil nem pressão institucional para uma reforma tão ampla. Além disso, mesmo que houvesse a demanda, não havia urgência alguma, e um debate amplo seria necessário. "O problema está na premissa. O problema não é só o projeto, é fazer um novo Código Civil que ninguém pediu, um novo Código Civil que não foi solicitado por ninguém, a toque de caixa", diz.
9 problemas do projeto do novo Código Civil
1. Revogação do artigo 19 do Marco Civil da Internet
Dispositivo em questão:
“Revogam-se [...] o art. 19 da Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 [Marco Civil da Internet]”
O artigo 19 do Marco Civil da Internet garante que as redes sociais e plataformas digitais só podem ser responsabilizadas por conteúdos postados por terceiros caso não cumpram ordem judicial pedindo para removê-los. Ao revogar o artigo 19, o projeto de Pacheco atende a um desejo de ministros do Supremo Tribunal Federal, que consideram que as redes devem ser proativas na remoção de certos conteúdos. Sem o escudo da lei, plataformas privadas tenderão à autocensura para evitar litígios, removendo conteúdos por medo. Isso pode favorecer a censura indireta, especialmente contra opiniões conservadoras.
2. Presunção automática de paternidade por recusa a fazer exame de DNA
Dispositivo em questão:
“Art. 1.609-A, § 1º. Em caso de negativa do indicado como genitor de reconhecer a paternidade, bem como de se submeter ao exame do DNA, o oficial deverá incluir o seu nome no registro, encaminhando a ele cópia da certidão.”
O dispositivo, assim como outros do projeto do novo Código, traz o "empoderamento de cartórios", conforme Venceslau Tavares Costa Filho. A paternidade poderá ser atribuída sem decisão judicial, apenas com base na recusa do suposto pai em fazer exame. O modelo inverte o ônus da prova, dispensa contraditório e quebra a presunção de inocência – com a alegação de atender a uma lógica de simplificação burocrática. Abre-se caminho para falsos vínculos e até chantagens.
3. Normalização da barriga de aluguel
Dispositivo em questão (entre outros):
“Art. 1.629-L. A cessão temporária de útero é permitida para casos em que a gestação não seja possível em razão de causa natural ou em casos de contraindicação médica.”
O Código atual, de 2002, não trata da barriga de aluguel, deixando o tema sob controle ético e médico. O novo Código, ao permitir que a cessão de útero seja regulada por contrato entre particulares, institucionaliza a prática sem exigir autorização judicial. Mesmo proibindo o lucro, o texto abre uma brecha para a mercantilização indireta da gestação. Para Tavares e Andrea Hoffman, a maternidade tende a ser objetificada com a proposta.
4. Linguagem vaga que abre brechas para ativismo judicial
Alguns dispositivos em questão:
“Art. 11. Os direitos da personalidade se prestam à tutela da dignidade humana, protegendo a personalidade individual de forma ampla, em todas as suas dimensões.”
“Art. 17. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento e à preservação de sua identidade pessoal, composta pelo conjunto de atributos, características, comportamentos e escolhas que a distingam das demais.”
“Art. 17, §1º. […] compõem também a identidade pessoal os aspectos que envolvam orientação ou expressão de gênero, sexual, religiosa, cultural e outros aspectos que lhe sejam inerentes.”
O novo Código Civil está cheio de expressões genéricas e indeterminadas, como "todas as suas dimensões”, “aspectos que lhe sejam inerentes” ou “comportamentos e escolhas que as distingam das demais”. A linguagem vaga abre espaço para que qualquer autodeclaração subjetiva seja tratada como direito juridicamente protegido, mesmo contra fatos objetivos. Isso tende a enfraquecer a segurança jurídica, tornando o Código vulnerável a interpretações ideológicas e instáveis.
5. Multiparentalidade como modelo normalizado
Alguns dispositivos em questão:
"Art. 1.617-A. A inexistência de vínculo genético não exclui a filiação se comprovada a presença de vínculo de socioafetividade."
"“Art. 1.617-B. A socioafetividade não exclui nem limita a autoridade dos genitores naturais, sendo todos responsáveis pelo sustento, zelo e cuidado dos filhos em caso de multiparentalidade."
A multiparentalidade, hoje admitida apenas em situações excepcionais por decisão judicial, passaria a ser tratada como alternativa comum. Isso enfraqueceria a ideia de núcleo familiar estruturado e facilitaria a fragmentação da autoridade parental, com três ou mais pessoas disputando espaço na criação de uma criança. Com isso, o Estado legalizaria vínculos instáveis e confusos.
6. Redefinição do casamento como união de “duas pessoas”
Alguns dispositivos em questão:
“Art. 1.514. O casamento se realiza quando duas pessoas livres e desimpedidas manifestam, perante o celebrante, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal e o celebrante os declara casados.”
“Art. 1.564-A. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, mediante uma convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida como família.”
Ao eliminar a referência legal ao homem e à mulher, o novo Código apaga a base biológica da família. Embora alinhada a decisões do STF, a redação rompe com a concepção histórica de família como união complementar de sexos e dificulta a possibilidade de políticas públicas específicas para proteção da família entendida sob essa ótica. Isso consolida a ideologia de gênero como parâmetro normativo.
7. Divórcio unilateral direto no cartório
“Art. 1.582-A. O cônjuge ou o convivente, poderão requerer unilateralmente o divórcio […]”
O projeto do novo Código permite que um casamento seja dissolvido de forma unilateral, sem mediação judicial, mesmo quando há litígio. Isso desvaloriza o matrimônio, fragiliza o cônjuge mais vulnerável e ignora a dimensão pública do casamento. Facilitar o rompimento, sem exigir nem sequer uma tentativa de reconciliação, contribui para a precarização institucional da família.
8. Contradições com leis recém-aprovadas revelam que a ideia de "atualização" é apenas retórica
Embora os autores da reforma aleguem que o projeto apenas atualiza o Código com base em leis e jurisprudências consolidadas, ele contradiz diretamente leis aprovadas em 2024, conforme aponta Tavares. Algumas das leis recentes que seriam invalidadas incluem:
- a Lei nº 15.046/2024, que trata animais como bens móveis,
- a Lei nº 14.905/2024, que determina o uso da taxa Selic como base para os juros por atraso,
- a Lei nº 15.040/2024, que institui novo marco legal dos seguros privados.
O projeto, portanto, tenta "atualizar" o Código revogando ou ignorando leis que mal entraram em vigor. Isso deslegitima uma justificativa central da reforma.
9. Projeto permite herança para amantes e dá respaldo ao concubinato
Revogação do art. 1.801, III do Código Civil atual, que dizia:
“Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários: […] III – o concubino do testador casado, salvo se, ao tempo da sucessão, estava, de fato, separado do cônjuge por mais de cinco anos.”
Novo art. 1.564-D: "A relação não eventual entre pessoas impedidas de casar não constitui família. Parágrafo único. As questões patrimoniais oriundas da relação prevista no caput serão reguladas pelas regras da proibição do enriquecimento sem causa previstas nos arts. 884 a 886.”
O projeto mantém a regra de que relações extraconjugais — como o concubinato — não constituem família. No entanto, abre uma brecha inédita: permite que essas relações gerem efeitos patrimoniais. O novo artigo autoriza que uma das partes, mesmo sem união estável reconhecida, entre na Justiça para cobrar compensações financeiras, alegando ter contribuído para o enriquecimento do outro. Essa previsão enfraquece a segurança jurídica do casamento e legitima vínculos paralelos.
Conforme aponta Tavares, a proposta também entra em conflito com o entendimento do Supremo Tribunal Federal no Tema 529, que reafirmou que o ordenamento jurídico brasileiro é fundado no dever de fidelidade e na monogamia, impedindo o reconhecimento simultâneo de dois vínculos afetivos – inclusive para fins previdenciários. Ao abrir espaço para efeitos patrimoniais em relações paralelas, o projeto contorna esse princípio sem dizer claramente que está fazendo isso.
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