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Rodrigo Xavier e Fernando Toller, no congresso “Liberdade de Expressão: o debate essencial”
Rodrigo Xavier e Fernando Toller, no congresso “Liberdade de Expressão: o debate essencial”| Foto: Ivan Dybas/Divulgação

A preservação da democracia não pode ser realizada, no âmbito judicial, sem um de seus pressupostos mais fundamentais: o devido processo legal, que esteja contemplado no ordenamento jurídico do país e observe princípios como o juiz natural, o amplo direito de defesa e estrita aderência de condutas efetivamente ameaçadoras, concretas e comprovadas, a tipos penais claros. Foi essa a conclusão do sexto e último painel do congresso “Liberdade de Expressão: o debate essencial”, realizado em 27 e 28 de setembro, em Brasília.

Organizado pela Gazeta do Povo e pelo Ranking dos Políticos, o evento contou com o apoio do Instituto Liberal, do Instituto dos Advogados do Paraná e da Federação Nacional dos Institutos dos Advogados (Fenia). Vozes influentes no tema da liberdade de expressão do Brasil e do mundo participaram de seis painéis sobre o assunto.

No último debate do congresso, juristas renomados discutiram a importância do devido processo legal em eventuais e excepcionais restrições à livre expressão. O caso selecionado para ilustrar a discussão foi a decisão do ano passado do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que autorizou busca e apreensão e determinou bloqueio de contas bancárias de empresários que defendiam, em conversas privadas de WhatsApp, algum tipo de “golpe” para impedir a volta de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Presidência.

Eles também tiveram perfis suspensos nas redes sociais e sofreram quebra de sigilo telemático, de modo que todas as suas comunicações pudessem ser devassadas pela Polícia Federal.

A operação foi deflagrada com base em uma reportagem que obteve alguns diálogos vazados. Por iniciativa própria, Moraes incluiu os empresários no inquérito sobre as “milícias digitais”, subproduto do inquérito das “fake news” voltado a coibir supostas ameaças e ofensas às instituições e autoridades nas redes sociais. Um ano após a decisão, o ministro retirou a maioria dos empresários do inquérito, por considerar que “embora anuíssem com as notícias falsas, não passaram dos limites de manifestação interna no referido grupo, sem a exteriorização capaz de causar influência em terceiros como formadores de opinião”.

Primeiro a se manifestar no painel, o professor Jónatas Machado, diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, disse que, em tempos de turbulência política, a democracia deve contar com estruturas fortes, como um avião, para atravessar o mau tempo.

“Em tempos de incerteza, de insegurança, de intranquilidade, é bom vivermos num país com instituições fortes, que resistam à trepidação, à turbulência interna e à turbulência externa. Quando viajamos de avião, às vezes passamos por turbulência e, se sentirmos que estamos num avião forte, sentimo-nos seguros. Por isso precisamos preservar as instituições e também defendê-las. Portanto, é natural que nos códigos penais tenhamos disposições tipificando crimes de atentado à democracia. Isso é normal e saudável”, afirmou.

Isso, porém, não deve levar o Judiciário, quando chamado a agir, a prescindir de princípios elementares do processo judicial. Ele destacou a submissão de uma conduta suspeita a tribunais comuns, cujas decisões sejam construídas por um conjunto de juízes e eventualmente confrontadas com recursos a instâncias superiores – não foi o caso dos empresários, investigados de imediato por um magistrado da mais alta Corte do país, cujo ato não foi submetido aos demais colegas do tribunal.

Outro princípio elementar desprezado no caso foi a separação clara, no processo, entre quem acusa e quem julga. De ofício, Moraes imputou aos empresários suspeitas de cometimento de delitos graves contra o Estado Democrático de Direito. Por fim, Jónatas Machado chamou a atenção para a necessidade de esclarecer de forma precisa de que modo a conduta poderia ser enquadrada nos tipos penais que buscam tutelar e preservar o regime democrático.

“Obviamente, [é preciso] juízes imparciais e independentes, e que nas instâncias superiores, com algum distanciamento, podem ser chamados a aplicar a lei. Portanto, não há concentração de tudo numa pessoa. Isso seria antiquado. E todas as intervenções do juiz, de restrição de direitos, são devidamente fundamentadas e podem ser contestadas. É importante que o objeto do inquérito seja claramente limitado, não sejam uma entidade nebulosa, de contornos infinitos”, disse o professor de Coimbra.

Professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Luiz Guilherme Marinoni, especialista em Direito Processual Civil e Constitucional, criticou decisões liminares que não deem à parte afetada o direito de se manifestar sobre o caso.

“O direito de reagir contra uma decisão que traz interferência na esfera jurídica é um direito que consiste na própria contrapartida que assegura a possibilidade de uma liminar imediata em nome da efetividade da tutela judicial. O que não aconteceu aqui. As pessoas não tiveram acesso aos autos para poder se defender. Isso é um absurdo, é como bater em cego”, afirmou.

O constitucionalista Fernando Toller, da Universidade Austral, de Buenos Aires, chamou a atenção para a fragilidade dos elementos que pudessem apontar risco real à democracia. “Há uma interpretação tão criativa, a meu juízo, arbitrária, ao sentido comum das palavras, como se devem interpretar as normas e, ademais, extensivas em matéria sancionatória penal”, afirmou. Ele criticou o fato de o Ministério Público, titular da ação penal e destinatário natural das investigações, não ter sido consultado para a deflagração da operação.

O advogado Rodrigo Xavier Leonardo valeu-se da metáfora trazida por Jónatas Machado para insistir na necessidade de observar regras legais e processuais para investigar crimes contra a democracia. Ele chamou a atenção para o fato de a nova Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito não conter tipos penais que criminalizem externar opinião contra as instituições.

“Não está aí expressar opinião contra o Estado Democrático de Direito. O verbo é tentar, e não só isso, mas com emprego de violência e grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, assinalou.

Para ele, as mensagens dos empresários são manifestações abjetas contra o Estado Democrático de Direito. “Mas não me parece que possam ser qualificadas como impedir ou perturbar a eleição. São apenas manifestações abjetas contrárias ao processo eleitoral.”

Mais do que isso. Ele chamou a atenção para o fato de a própria lei conter dispositivo que protege a liberdade de expressão, ao prever que “não constitui crime a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”.

“Me parece que nós temos que ter a serenidade de, diante de uma turbulência como a que nós vivemos no Brasil com a polarização, não tentar reconstruir o motor da aeronave no meio do voo, mas olhar o manual, que é a Constituição, e o direito positivo”, concluiu.

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