As recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a prática de assistolia fetal para interromper gestações após a 22ª semana têm colocado os médicos em um dilema. O ambiente é de tensão, especialmente em São Paulo, onde a Justiça tem pressionado os hospitais a realizarem feticídio em gestações entre 5 e 9 meses. Mesmo protegidos pela objeção de consciência, que dá aos profissionais da saúde a possibilidade de recusar a realização de algum procedimento, muitos médicos temem represálias e perseguições.
O ministro Alexandre de Moraes suspendeu liminarmente uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que impedia a prática da assistolia fetal após a 22ª semana de gestação. Como nessa fase o feto já pode sobreviver fora do útero, o conselho afirma que a prática é desnecessária e dolorosa. Além disso, a mãe que alega ter sido estuprada poderia ter a gravidez interrompida por meio de parto – com o bebê com vida –, seja cesárea ou normal (a assistolia também exige o trabalho de parto, mas do feto morto).
Embora a Constituição Federal e o Código de Ética Médica defendam a objeção de consciência, a pressão do Judiciário prevalece em alguns casos. Um diretor de um hospital público de São Paulo falou à Gazeta do Povo que se sente na obrigação de encontrar profissionais dispostos a realizar o procedimento, caso apareça uma paciente solicitando-o com alegação de estupro. Mesmo discordando da prática, o diretor pretende evitar processos judiciais contra ele e contra o hospital em que atua.
Código Penal não cria obrigatoriedade de médicos realizarem abortos
Duas gestações acima de 22 semanas foram interrompidas em um hospital de Recife, segundo informações obtidas pela Gazeta do Povo. As gestantes, que estavam com 29 e 30 semanas, foram deslocadas de seus estados para realizar o procedimento na capital pernambucana, pois os médicos locais teriam se recusado a realizá-lo.
As taxas de sobrevivência de prematuros que nascem entre 29 e 32 semanas é de 90% a 95%, de acordo com uma pesquisa divulgada pela ONG Prematuridade. As chances desses bebês crescerem livres de sequelas chegam a 70%.
Todos os cidadãos possuem o direito à liberdade de consciência amparados pelo artigo 5º da Constituição Federal (incisos VI e VIII), comenta Ana Luiza Rodrigues Braga, doutora em Teoria Geral do Direito pela USP e professora de Direito Constitucional. O que impede de que sejam obrigados a adotar condutas que afrontem seus princípios morais ou religiosos.
“Portanto, não há uma obrigação moral para que o médico faça um aborto em caso de estupro. No caso de risco de vida para mãe, e não havendo outro médico à disposição, o que seria uma hipótese diferente, é que existe uma obrigação jurídica legal”, explica a jurista.
Em relação à atuação profissional, os médicos ainda estão respaldados pelo Código de Ética Médica. O documento assegura o direito de “recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência”. Braga destaca que o termo “atos médicos” abrange não apenas a execução de procedimentos específicos, mas também outras ações, como a prescrição de tratamentos ou o encaminhamento de pacientes para outras instituições.
Obstetra compara dor da assistolia fetal à dor de um infarto agudo
O aborto é considerado crime pela legislação brasileira. Apesar disso, o Código Penal não penaliza o ato em casos de estupro ou risco de morte materna. Em 2012, o STF também retirou a pena para gestações de bebês que sofrem de anencefalia.
“O dispositivo do Código Penal que estabelece a possibilidade do aborto em caso de estupro traz uma excludente de ilicitude para esta circunstância. Ele não cria uma obrigação legal para o médico, o que seria algo completamente diferente”, ressalta Braga.
“Todos os livros, sem exceção, de embriologia do Ocidente, dizem que o aborto é a interrupção da gravidez antes das 22 semanas”, declara Ubatan Loureiro, ginecologista obstetra e especialista em Bioética. O médico apoia a resolução do Conselho Federal de Medicina ao considerar a assistolia fetal uma prática dolorosa e desnecessária. De acordo com ele, são esses fatores que levam muitos médicos a recusarem a realização da assistolia fetal em gestações avançadas.
Animais recebem anestesia antes de injeção de cloreto de potássio para reduzir sofrimento
Há muitos anos, o cloreto de potássio – substância mais comumente usada para assistolia fetal no Brasil e no mundo – tem sido injetado em animais para eutanásia. Foi uma resolução do Conselho Federal de Veterinária de 2012 que obrigou que os animais recebessem anestesia e bloqueadores musculares antes da aplicação do cloreto de potássio.
“Com o uso do cloreto de potássio, antes de 2012, os animais morriam com contraturas musculares, falta de ar, contração diafragmática. Hoje, para sacrificar um animal é necessário fazer anestesia geral e bloqueadores musculares porque a dor é tremenda. É como a dor de um infarto agudo”, descreve Loureiro. No caso da assistolia fetal para o feticídio, o cloreto de potássio é aplicado, via de regra, diretamente no coração do bebê, sem possibilidade de anestesia, através de uma agulha inserida na barriga da mãe.
A documentação legal do bebê morto também é outro problema enfrentado pelos médicos. A declaração de óbito fetal deve ser emitida quando a gestação tenha chegado a 20 semanas ou mais, ou quando o feto pesar mais de 500 gramas ou ter mais de 25 centímetros de estatura. O motivo da morte do feto também deve constar no documento.
O diretor do hospital de São Paulo revelou que encontra dificuldades para solucionar a questão da documentação dos bebês viáveis abortados. Segundo outras fontes ouvidas pela Gazeta do Povo, os hospitais que têm realizado a assistolia fetal, especialmente em Recife, não emitem documentos relacionados à morte do bebê. Dessa forma, o corpo dos bebês acabam sendo destinados ao lixo hospitalar.
Médicos podem obter mandados de segurança para se proteger de pressão
“A liberdade de consciência e crença, e isso não é só para os médicos, deve ser interpretada de forma ampla. Um médico que se recusa a realizar o aborto não é também obrigado a procurar um médico que realize, por exemplo. Isso seria uma violação completa à liberdade de consciência e crença”, exemplifica.
Braga explica que os profissionais de saúde que sofrem pressão de instituições ou gestores públicos podem utilizar um mandado de segurança como proteção jurídica para recusar alguma conduta. “O mandado de segurança é o instrumento jurídico cuja finalidade é proteger direito líquido e certo de ser violado por ato ilegal ou abusivo de autoridade pública ou de agente no exercício de atribuição pública, como é o caso de hospitais”, esclarece. A jurista acrescenta que o instrumento pode ser usado de forma preventiva, antes mesmo que ocorra alguma violação.
Na visão de Ubatan Loureiro, os profissionais de saúde têm se recusado a realizar a assistolia fetal justamente por terem ciência de que devem agir conforme seus princípios. “Para um médico manter a integridade de seu ofício, tem que entender que se faz algo forçado, gerando maleficência, quem vai ficar doente depois é ele. Porque perde o significado da vocação de salvar vidas”, finaliza.
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