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Camponeses ceifando trigo a iluminura de um calendário inglês do século XIV.
Camponeses ceifando trigo a iluminura de um calendário inglês do século XIV.| Foto: Anônimo/Domínio público

Eu nunca tinha ouvido falar da lei de Speenhamland até ler A grande transformação, de Karl Polanyi, e ficar com a sensação de que não conhecemos nada da experiência liberal do século XIX. Pois bem, a lei foi basicamente o Bolsa Família inglês do século XVIII, que foi objeto de intensa discussão e rechaço no século XIX. Quando a lei acabou, sua natureza deletéria era consensual. Não obstante, Speenhamland foi e é repetida nos últimos séculos sob as mais diferentes roupagens políticas.

Cheguei a Polanyi através de Por que o liberalismo fracassou?, do pós-liberal Patrick Deneen. Mas não é difícil encontrar A grande transformação no Brasil porque o livro é benquisto pelos marxistas heterodoxos dos anos 70, e a versão que tenho é da editora do comunista César Benjamin, a Contraponto. Todavia, Polanyi parece ser mais um autor antimarxista amado pelos marxistas heterodoxos do Brasil. Um, do qual já tratei aqui, é Max Weber. E a razão do antimarxismo de ambos é, grosso modo, a mesma: Marx erra ao dar à matéria importância determinante e negligencia a dimensão moral da vida social.

Para Polanyi, Marx estava longe da solidão em tal erro. Ao contrário, ele apenas deu continuidade ao erro dos liberais. Assim, faz todo o sentido um pós-liberal acolher a obra de Polanyi, cujo subtítulo é: "As origens políticas e econômicas de nossa época." A época referida é a II Guerra Mundial; 1944 é o ano de lançamento do livro. O autor era um cristão novo criado como calvinista na Hungria; e, por causa de sua ancestralidade judaica, teve que fugir do continente europeu.

Em meio à miséria e ao caos social dos cercamentos, então, criou-se a Lei de Speenhamland em 1795

Vamos à História. Em A grande transformação, é-nos dito que a Inglaterra criou e impôs ao mundo a sociedade de mercado autorregulado. Esta, até a época do padrão ouro, se baseava em três ficções: que a terra, o trabalho e o dinheiro são mercadoria. "Nenhum deles é produzido para venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia. No entanto, com a ajuda dessa ficção organizam-se os mercados de trabalho, da terra e do dinheiro" (p. 134). Polanyi então relata como cada qual dessas três coisas passou a ser tratada como mercadoria.

O começo dessa revolução deu-se com a transformação da terra em algo que deveria ser usado para extrair lucro. Na Idade Média, cabia à maior parte da plebe produzir alimentos no campo, e à nobreza cabia proteger a cristandade de ataques bárbaros. A cristandade incluía, naturalmente, a plebe camponesa. O nobre tinha, portanto, deveres para com o camponês.

O mundo decerto era muito mais rural, mas existiam os centros urbanos que se abasteciam do excedente produzido pelo campo. Na feira — uma instituição medieval muito viva no Nordeste brasileiro, e que, na Europa de Polanyi, era considerada extinta —, esse excedente era trocado por moedas cujo valor residia no metal. Nos centros urbanos, ou burgos, vigorava a economia ligada ao dinheiro. Na maior parte do tempo, essa economia era coisa de comerciante, uma classe tida por aventureira, afastada da vida estável. Na Inglaterra em particular, a produção de tecidos ia de vento em popa. E essa produção começava lá no mundo rural, com as ovelhas lanígeras.

Assim, os nobres ingleses começaram a ganhar dinheiro com as terras por meio do pasto. A coisa foi aumentando até os nobres começarem a demolir as casas dos camponeses, a expulsá-los das terras aráveis onde viviam havia gerações e a cercá-las para criar ovelhas lanígeras. A função da terra passou a ser o lucro. "Os cercamentos", diz Polanyi, "foram oportunamente chamados de revolução dos ricos contra os pobres. Os senhores e os nobres perturbaram a ordem social, violando leis e costumes antigos [...]. Aldeias desertas e ruínas de antigas moradias humanas atestaram a ferocidade da revolução, pondo em risco as defesas do país, destruindo suas cidades, dizimando sua população, transformando em poeira o solo sobrecarregado, perseguindo as pessoas e fazendo-as passar da condição de agricultores decadentes a uma turba de mendigos e ladrões" (p. 89).

A instância superior à nobreza, sobretudo após a ruptura de Henrique VIII com o Papa, era a Coroa. Assim, "o rei e seu conselho, os chanceleres e os bispos defendiam o bem-estar da comunidade e, a rigor, a substância humana e natural da sociedade, tentando enfrentar o flagelo. De modo ininterrupto, durante quase um século e meio — desde a década de 1490, pelo menos, até 1640 — lutaram contra o despovoamento" (p. 89). Ao cabo, a Coroa foi deposta, a Inglaterra virou uma República (a Commonwealth de Cromwell) e a monarquia só foi restaurada com reis sem capacidade ou disposição de brigar com o Parlamento (que era o grande entusiasta dos cercamentos).

Em meio à miséria e ao caos social dos cercamentos, então, criou-se a Lei de Speenhamland em 1795. No dia 6 de maio desse ano, "os magistrados de Berkshire [...] decidiram que se deveriam conceder subsídios para complementar os salários, de acordo com uma tabela baseada no preço do pão, para que se assegurasse aos pobres um rendimento mínimo, independentemente de seus proventos" (p. 140). No começo, tudo foi lindo: "Nunca houve medida mais popular. Os pais eram liberados de cuidar dos filhos, os filhos já não dependiam dos pais, os patrões podiam reduzir os salários como lhes aprouvesse e os trabalhadores ficavam protegidos da fome, fossem eles diligentes ou preguiçosos" (p. 142).

Mas os efeitos deletérios foram os mais variados. Esse "Bolsa Família" original era dividido por condados, organização parecida com município. Assim, as contas dos condados menores eram exauridas pelo pagamento dos auxílios. Como a lei durou décadas, ela, que já encontrou um cenário de desintegração social, fomentou uma corrosão da moralidade do povo: no começo, depender dos impostos era motivo de vergonha; depois, foi naturalizado ao ponto de as pessoas preferirem a indigência subsidiada em vez do trabalho.

Após o fracasso consensual de Speenhamland, por que os liberais da Escola de Chicago em diante passaram a defender o "imposto negativo", que nada mais é que a lógica de Speenhamland?

De outro lado, os empregadores tampouco se sentiram instados a pagar salários decentes. Se os pobres tinham, sem trabalhar, a subsistência garantida, não havia por que pagar salários que bastassem à sobrevivência; pagava-se uma mesadinha miserável. Na prática, o auxílio aos pobres era um subsídio aos patrões. E não raro um trabalhador ficava no zero a zero, trabalhando para pagar o imposto que ele mesmo iria receber: era "rico" o bastante para pagar e "pobre" o bastante para receber.

Segundo Polanyi, Speenhamland foi "uma tentativa de criar uma ordem capitalista sem mercado de trabalho" — e "falhara redondamente" (p. 143). A lei acabou em 1834, e depois disso a Revolução Industrial deslanchou de verdade. Como consequência, os cercamentos aumentaram em maior intensidade e a desagregação social também — junto com a riqueza desigualmente espalhada pela sociedade. Por isso, as coisas pareciam estar ligadas. Ricardo, Malthus, Marx... todos os observadores da realidade inglesa achavam que a sociedade industrial estava necessariamente ligada à espoliação dos pobres. Polanyi atribui a Robert Owen, sozinho, a capacidade de perceber a seguinte realidade: "as possibilidades humanas [são] limitadas, não pelas leis de mercado, mas pelas da própria sociedade" (p. 148). E assim, no século XX, a sociedade começou a se proteger da anarquia causada pelo mercado. Valeu-se de coisas tão banais quanto leis contra a exploração infantil até tão extremas quanto a instauração de um Estado forte controlador do mercado.

Disso tudo, porém, fica uma curiosidade insatisfeita: após o fracasso consensual de Speenhamland, por que os liberais da Escola de Chicago em diante passaram a defender o "imposto negativo", que nada mais é que a lógica de Speenhamland? Friso ainda que os liberais de Viena tiveram, no começo do século XX, ocasião para criticar um sistema semelhante (como se pode ver nos apêndices do livro de Polanyi). Tenho pra mim que é de propósito para atacar a indústria ocidental e transferir tudo para a China, já que a ascensão da Escola de Chicago coincidiu com essa migração. No Brasil em particular, o Bolsa Família foi baseado no imposto negativo de Milton Friedman, como já esclareceu Marcos Lisboa.

Post scriptum: Os interessados em história do Brasil gostarão de saber que Perfilino Neto, vulgo Enciclopédia do Rádio, não deixou passar batida a efeméride do suicídio de Getúlio Vargas, ocorrida a 24 de agosto de 1954. Esta quinta, no 69º aniversário, apresentará em sua rádio um programa especial previsto para as 9h e 21h, com possibilidade de algo em torno de 20 minutos de atraso devido ao servidor.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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