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Detalhe de “Vasco da Gama perante o Samorim de Calecute”, de Veloso Salgado.
Detalhe de “Vasco da Gama perante o Samorim de Calecute”, de Veloso Salgado.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Vivemos tempos difíceis em todo o Hemisfério Ocidental. Enquanto nos EUA a perseguição à oposição está tão grave que o próprio ex-presidente Trump simplesmente não consegue advogado por ter sido tremenda a perseguição a todos os anteriores, no Brasil a insegurança jurídica advinda do neoconstitucionalismo (ou, como brilhantemente sugere Marcos Paulo Fernandes de Araújo, neoconstitucioniilismo) acaba calando, por medo, o que a lei não manda calar.

Mais ainda, diria eu. Cala-se hoje sem pejo o que a lei não permite que seja calado. Em tese vigora ainda o artigo 5.º da famosa Constituição Cidadã, segundo o qual são livres, libérrimas, “a manifestação do pensamento” e “a expressão da atividade intelectual”. Muito lindas palavras, que o vento leva. Já com os pés no chão vemos hoje que, como observou recentemente o promotor Felipe Ribeiro, no contexto atual “[a] elaboração de regras pelo legislador [...] pode ser [...] deliberadamente ignorada pelo operador do Direito caso ele entenda [...] que aquele comando normativo não merece ser aplicado concretamente”. E é o que vem acontecendo com o sofrido artigo 5.º. Há coisas que não se pode dizer, há grupos de que só se pode falar elogiosamente, e outros que não nos é permitido elogiar.

Ao percorrer as páginas de notícias, ignorando-se os esportes, as celebridades cuja fama advém da notoriedade e as chusmas de perversões dantes ignotas e ora festejadas, salta aos olhos a parcialidade da imprensa. A tal ideologização do noticiário, todavia, soma-se ainda a garantia (anti)jurídica de tal parcialidade. Em nome, claro, de vagos “princípios”. Por via, claro, do nada vago medo. Afinal, a imprevisibilidade das consequências e a fluidez dos limites são muito mais amedrontadores que regras claras. Todo contraditório é calado seja por decisão judicial, seja por criminalização “terceirizada” a grupos de interesse, seja, finalmente, pelo medo destes. O resultado é um tremendo descompasso entre a voz do povo e o que sai na imprensa. Nesta, lê-se que é possível ou mesmo provável que Lula seja eleito no primeiro turno; nas ruas, não se o vê. Enquanto os demais candidatos, inclusive o atual presidente, fazem campanha pelas ruas e recebem abraços, o ex-presidiário não tem condições de aproximar-se do povo diretamente, fisicamente, para não ser, na melhor das hipóteses, vaiado.

Todo contraditório é calado seja por decisão judicial, seja por criminalização “terceirizada” a grupos de interesse, seja, finalmente, pelo medo destes

Do mesmo modo, a imprensa canta em verso e prosa as famosas Cartas em defesa da Democracia, sem que se possa dizer que por “Democracia”, com “D” maiúsculo, se está referindo a um sistema em que tudo, do voto à apuração final, é composto apenas de bits e bytes desprovidos de materialidade física –  logo, de possibilidade de recontagem de votos físicos em caso de dúvida acerca do resultado informático. “Democracia”, em suma, é o nome atual em Pindorama daquilo que o Tribunal Constitucional Federal alemão julgou inconstitucional. O descompasso com a realidade é tamanho que vi na mídia estrangeira que se tratava de manifestações pedindo o retorno do Estado de Direito! Chovem nas páginas ditas de notícias manifestações de tranquilidade em relação à apuração das eleições. O contraditório, todavia, a desconfiança em relação ao processo – ainda que seja, em senso estrito, “expressão da atividade intelectual”, logo protegida – não pode ser expresso. Assim como não podem ser expressas quaisquer dúvidas, que dirá contestações, em relação à recentíssima tese da superioridade da plasticidade do gênero sobre a estabilidade do sexo. Ou como devem ser caladas quaisquer desconfianças, que dirá certezas, de ligações entre grupos políticos e grupos criminosos.

Tenho muito a dizer acerca de tudo isso, e digo que:

E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antígua liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande;

Sobre o processo eleitoral que ora se inicia, e mais ainda sobre a possibilidade de que a voz do povo possa não ser ouvida, ouso apontar que

E enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,
Tomai as rédeas vós do Reino vosso:
Dareis matéria a nunca ouvido canto.
Comecem a sentir o peso grosso
(Que pelo mundo todo faça espanto)
De exércitos e feitos singulares,
De África as terras, e do Oriente os marços,

Mais ainda tenho a dizer acerca da elaboração de todo um discurso de suposta defesa da democracia como preparativo para evitar a contestação futura de um resultado eleitoral que

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
Do Turco oriental, e do Gentio,
Que inda bebe o licor do santo rio;

E ainda, preocupado, vejo fortes sinais de instabilidade institucional, dado o simples fato de que preside o processo eleitoral o mesmo personagem que

Vereis amor da pátria, não movido
De prémio vil, mas alto e quase eterno:
Que não é prémio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor superno,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de til gente.

Pois, no fim das contas, o que é dito quando se diz que fake news serão combatidas, ou quando se acusa “milícias (!) digitais (!!)” de causar o descrédito da mídia tradicional? Diria eu que se vê em ação (mais uma vez) cópia tupiniquim do mesmo mecanismo pelo qual o governo americano, em colaboração com as redes sociais, procura censurar, além do que é simplesmente falso (as tais fake news, literalmente “notícias falsas”), a dita “malinformation”.

Esta é a notícia que não é falsa, mas que – ao menos segundo os donos do poder... – não deveria ser publicada. Um exemplo claro do combate a tal tipo de informação nos foi dado pela censura de toda a mídia e das redes sociais às notícias sobre o computador do filho do então candidato à presidência americana Joe Biden. Seu filho deixou um computador para conserto, tendo assinado um contrato que previa que, se o computador não fosse buscado no prazo, ele passaria a pertencer ao técnico. Não tendo o atual Primeiro Filho ido buscar o computador, o técnico repassou ao FBI e ao tradicionalésimo jornal The New York Post (fundado por um dos patriarcas dos EUA em 1801) as informações contidas no disco rígido. Entre outras coisas, provas de corrupção envolvendo toda a família Biden, inclusive o atual presidente, além de vídeos do atual Primeiro Filho fumando crack na companhia de mulheres da vida.

No fim das contas, o que é dito quando se diz que fake news serão combatidas, ou quando se acusa “milícias (!) digitais (!!)” de causar o descrédito da mídia tradicional?

O FBI não fez nada. Já as redes sociais simplesmente bloquearam tanto a conta do jornal quanto qualquer referência a ele, links para suas reportagens sobre qualquer tema, e por aí vai. Em suma, conseguiram evitar que o grande público viesse a saber de um fato real que certamente faria com que Biden perdesse muitos votos. Isto é a tal malinformation, que, junto com a disseminação de informações realmente falsas, faz parte do complexo das tais fake news.

Já há problemas sérios em relação à determinação de falsidade ou veracidade objetivas de notícias, na medida em que no mais das vezes o que faz a notícia é o contexto ou a ênfase. Se um jornalista ganha um milhão de dólares em um ano, ele enriqueceu; se o Bill Gates ganha só isso, ele foi à falência. Notícias sobre o que os adeptos de Trump alcunharam The Great Steal, “a grande roubalheira [eleitoral]”, na mídia de esquerda (com perdão do pleonasmo) americana em geral falarão da Big Lie, a “grande mentira [de ter havido roubalheira]”. E por aí vai.

É por isso que a Constituição ulyssiana tentou assegurar o direito à livre expressão, mais ainda separando-o para melhor afirmá-lo entre a “manifestação do pensamento” (que não precisa necessariamente ser verídico ou fruto do uso da razão: se está na cabeça, já é pensamento) e a “expressão da atividade intelectual” (que decorre da razão). Eis que perdemos este direito, que nos foi tomado pelo neoconstitucioniilismo atual, em que a letra da lei dá lugar a vaguíssimos princípios, sendo que, nas palavras atribuídas ao ex-ministro do STF Ayres Britto, “[c]om tantos princípios eu deito e rolo”. Vagando no mar dos princípios, é não só permissível, mas louvável atribuir a dados eletrônicos a qualidade que sabidamente lhes falta de inviolabilidade, mas não nos é mais permitido afirmar sua ausência. É fake news. É malinformation. É motivo para que nos seja calada a voz, para que toda a nossa atividade intelectual tenha como único resultado expressável que

Mas enquanto este tempo passa lento
De regerdes os povos, que o desejam,
Dai vós favor ao novo atrevimento,
Para que estes meus versos vossos sejam;
E vereis ir cortando o salso argento
Os vossos Argonautas, por que vejam
Que são vistos de vós no mar irado,
E costumai-vos já a ser invocado.

Calados fomos, calados somos, e calados – enquanto perdurar o ambiente atual de antijuridicidade – seremos. Foi-nos tomada a voz; não nos é mais permitido afirmar o que sempre disseram as augustas ciências biológicas, físicas e informáticas. Pela restrição às fake news, em que igualmente se restringem as tais malinformations meramente desagradáveis aos donos do poder, cria-se um ambiente noticioso onírico. Uma vastíssima mentira que faz lembrar a que Dalrymple apontou como onipresente atrás da antiga Cortina de Ferro. O que mais vulnerava a população, apontou o doutor inglês, não era a ausência de víveres ou bens de consumo, mas a ausência de verdade. A mentira pairava no ar arrogante, enquanto a verdade só podia ser dita em baixa voz, a pessoas de absoluta confiança. Espalhar verdades era motivo de perseguição, exatamente como se faz hoje em relação às ditas milícias digitais. Negar a veracidade de um jornal do Partido, como o Pravda (“verdade”, em russo...), era tão proibido quanto é, hoje, negar a veracidade de uma mídia em que uma pessoa que não pode pisar à rua sem seguranças armados teria grandes chances de ser eleito no primeiro turno. Pelo voto popular, não por

Eternos moradores do luzente
Estelífero pólo, e claro assento,
Se do grande valor da forte gente
De Luso não perdeis o pensamento,
Deveis de ter sabido claramente,
Como é dos fados grandes certo intento,
Que por ela se esqueçam os humanos
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.

Falo, e me calo. Sussurro e olho ao redor, esperando a chegada de um oficial de injustiça com uma intimação para que eu “me explique” acerca de verdades que ousei dizer.

Calados fomos, calados somos, e calados – enquanto perdurar o ambiente atual de antijuridicidade – seremos. Foi-nos tomada a voz; não nos é mais permitido afirmar o que sempre disseram as augustas ciências biológicas, físicas e informáticas

Já tivemos censura neste país. Coisa odiosa, que mostra antes o medo e a fragilidade de donos de um poder que não resiste à clara luz do dia que o exercício de um real controle sobre a sociedade. O terror, o medo, a intimidação como instrumentos do poder, visando calar a clara voz da verdade, não são característicos de quem tem real apoio popular, de quem tem consigo a voz do povo. Que, reza o dito, é voz de Deus.

E Deus, aprendemos no catecismo, é Caminho, Verdade e Vida. O caminho é a verdade, e a verdade é vida. Negar a verdade, ou lhe negar voz por vaidade e medo da voz altissonante do povo, é fechar o caminho e perder a vida, perdendo ainda a alma. Não interessa se há em cada redação um idiota fardado ou se pairam apenas os vampirescos vapores do medo instilado nas almas pela precariedade dos direitos antes garantidos pela Constituição. O que interessa é que a voz da verdade é calada e negada, a mentira instaurada, e ai de quem ousar levantar a voz. De quem livremente manifestar o pensamento ou expressar a atividade intelectual. Fake news ou falsa realidade, milícias digitais ou grande mídia, princípios ou a lei. E, finalmente, mais ainda, delírios ideológicos ou a voz do povo. Isto deveria ser o que as urnas decidiriam em poucos meses, mas sem haver contraditório não há transparência, e sem haver transparência e materialidade não há como ter confiança. Daí o medo dos donos do poder, daí a censura, daí o afã de calar cada voz, na imprensa ou no WhatsApp, que ouse levantar-se contra a falsa realidade e assim propagar malinformation.

Fake news?! É todo o mundo que hoje é fake. As news são o de menos.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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