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Trabalho infantil
| Foto: Raymond Wiggins/Free Images

Tive um professor de Lógica que nos dava discursos de políticos para que identificássemos os raciocínios falaciosos – aquilo que parece um argumento, mas não é. Num discurso de uma só página do tristemente famoso Amaral Netto (também conhecido nas rodas da malandragem como “Amoral Nato”), cheguei a encontrar 57 falácias. E, realmente, desde a Grécia Antiga a política democrática consiste basicamente em enrolar os outros, fingir que se responde quando na verdade se está falando de outra coisa, e por aí vai. A incapacidade do bolsopresidente de fazer isso, aliás, é ao mesmo tempo agradável – afinal, quem gosta de ser submetido a mentiras e a falsas razões o tempo todo? – e assustadora: é um pombinho em meio a serpentes.

O último exemplo do que para os apoiadores é sinal de honestidade, e para os que não o apoiam tanto assim é um crime monstruoso a ser completamente demolido através de (o que mais?) falácias, é a declaração bolsonariana de que ele teria começado a trabalhar na lavoura, ajudando os pais, aos 9 anos, e que isso não lhe fez mal algum. Logo no primeiro ou segundo dia, claro, um jornalista achou sei-lá-quem que o teria conhecido em criança, que declarou que não, ele não teria trabalhado na lavoura com os pais. De todo lado vieram, claro, declarações confundindo alhos com bugalhos, e acusando-o de pregar, que sei lá eu, que crianças deveriam trabalhar 18 horas por dia em carvoarias, carregando lenha nas costas e recebendo chibatadas.

Ora, ele está perfeitamente correto no que falou, e um monte de gente, inclusive “celebridades” (jornalistas, atores e demais incapazes profissionais), veio se solidarizar, afirmando ter trabalhado desde criança ou adolescente, seja em algum negócio próprio ou dos pais. Então veio a segunda leva de ataques, ainda mais delirante que a primeira, acusando os que lembraram que estão aqui inteirinhos mesmo tendo começado a trabalhar antes da puberdade de estar propositadamente confundindo o abuso infantil (as famosas crianças na carvoaria, ou cortando cana) com o trabalho leve de uma criança que ajuda na firma dos pais. Ora, pitombas, quem é que inventou esse negócio de crianças exploradas cortando cana, em relação à declaração do presidente? Os próprios que vieram depois acusar os demais de estarem propositadamente confundindo uma coisa com a outra. “Acuse-os do que você faz”, velha tática leninista, mais uma vez em ação.

Eu mesmo – aviso desde logo que isto não tem nada a ver com crianças carregando pedras por 20 horas ao dia ou coisa parecida – comecei a trabalhar relativamente tarde: tinha 13 anos de idade. Família de classe média, filho de professora, eu consertava e montava bicicletas no meu próprio quarto. Aos 16 pude viajar de carona pela Europa, comendo mal e dormindo pior ainda, com o dinheiro que juntei com o meu trabalho por estes três anos. Fez-me bem? Claro! Junto, então, minha voz ao coro dos que dão o próprio exemplo de que menores de idade podem e devem trabalhar.

A virtude da laboriosidade pode e deve ser conquistada na vida real, não em simulações lúdicas

Hoje ainda, para que se veja como a confusão aumenta cada vez mais, vi um sujeito que pregava que “trabalho infantil” seria, por definição, aquilo que faz mal à criança, a impede de estudar, a explora etc. E que ajudar no trabalho dos pais ou montar o próprio negócio seria uma coisa boa, mas não seria “trabalho infantil”. Ora, pitombas, isso é uma das inversões mais falaciosas – e perigosas – que já vi em minha porca vida. O sujeito está basicamente mudando, a seu bel-prazer, o sentido da palavra “trabalho”. Para ele, o termo significaria, no caso de crianças e adolescentes, basicamente exploração ou abuso. Ainda que efetivamente a palavra “trabalho” venha de um instrumento de tortura (o tripalium, espécie de pau-de-arara romano), creio que podemos concordar que o trabalho dignifica o homem. Tratar a palavra “trabalho” como sinônimo de abuso é negar o valor do labor humano.

O trabalho é o que nos faz membros produtivos da sociedade. Nem todo trabalho é remunerado financeiramente (a mãe e dona de casa trabalha em geral muito mais que o marido, mesmo que não ganhe um centavo pelo que faz), mas todo trabalho é valioso. E o hábito de trabalhar é uma virtude. A pessoa laboriosa tende a se aprimorar e a ser um componente muito mais valioso da sociedade que alguém que se dedique a falsos trabalhos, como, por exemplo, os jogos eletrônicos. Estes – que são permitidos às crianças e adolescentes – são efetivamente perigosos por apresentarem, de modo compacto e facilitado, tudo o que se deveria encontrar no trabalho real: desafio, recompensas, crescimento e tudo mais que faz com que o trabalho efetivamente dignifique o homem. Mas é tudo falso: são apenas pixels numa tela. Com a raríssima exceção de algumas pessoas que conseguem fazer de seu talento para jogos uma fonte efetiva de renda (o que, aliás, acaba envolvendo mais trabalho extra além do simples jogo: propaganda, negociações com patrocinadores…), o jogo de computador é o equivalente laboral de biscoitos isoporitos, que enchem a barriga, têm cheiro e gosto de comida, mas não alimentam.

A virtude da laboriosidade pode e deve ser conquistada na vida real, não em simulações lúdicas. O lúdico tem o seu lugar, especialmente no caso de crianças e adolescentes, mas não se pode substituir o trato com o real por ele. E, evidentemente, como com qualquer outra virtude, é de pequenino que se torce o pepino. Uma criança ou adolescente que não trabalhe está deixando de lado uma oportunidade de ouro. Todo trabalho deve estar de acordo com a pessoa que o desempenha, e no caso de crianças e adolescentes há obviamente exigências maiores: o estudo, por exemplo, deve sempre continuar a desempenhar um papel importante na vida do pequeno trabalhador, ao contrário do que ocorre com a maior parte dos adultos. Do mesmo modo, assim como não se contrata uma mulher de um metro e meio e 45 kg para descarregar caminhões de cimento, não se deve jamais fazer com que crianças e adolescentes sobrecarreguem seus corpos em formação com excessivas exigências físicas.

Isso tudo é evidente, ou deveria ser. E é isso que a legislação deveria tentar proteger (digo “tentar”, porque leis não constroem a realidade; achar que elas o façam é na verdade um pensamento supersticioso e beirando o idolátrico, por atribuir poderes a meras palavras escritas num papel). Proibir totalmente o trabalho de crianças e adolescentes, todavia, é simplesmente absurdo. Já publiquei neste mesmo espaço, em 29 de dezembro de 2011, um artigo em que contei sobre uma mocinha – na época minha aluna – que quase foi contratada para trabalhar em um hotel, mas não pode sê-lo por questões de idade. Teria sido uma excelente oportunidade para ela, que acabou, contudo, tendo de esperar, e acabou seguindo outro caminho. Hoje ela é professora de Inglês, outra atividade nobre (que eu mesmo comecei a desempenhar ainda menor de idade…). Mas será que, se tivesse conseguido aquele emprego, ela não teria encontrado sua vocação real? Jamais saberemos, porque uma lei triste e iníqua a impediu de trabalhar então.

Leia também: Trabalho doméstico na dose certa (artigo de Manoela Martins, publicado em 18 de dezembro de 2017)

Leia também: Crianças trabalhadoras (artigo de Wanda Camargo, publicado em 5 de dezembro de 2017)

O trabalho não deve ser outra coisa que não o seguimento de uma vocação. Devemos fazer aquilo que somos chamados a fazer, aquilo que acabamos por perceber termos sido feitos para fazer. Eu mesmo, quando novo, cheguei a querer viver de música. Péssima escolha, aliás: músico é provavelmente o profissional que mais dedica seu tempo e dinheiro (um oboé decente está na faixa dos cinco dígitos, por exemplo, e um bom músico estuda oito horas por dia ao longo de anos) para receber o menor pagamento. Mas acabei me encontrando num nicho ecológico, por assim dizer, relativamente amplo, ao descobrir que o que melhor faço é entender e explicar, oralmente ou por escrito. Tudo o que já fiz na vida de bom foi assim, seja como tradutor, ensaísta, perito criminal, professor…

E comecei a dar aulas e a traduzir ainda adolescente. Ilegalmente. Mas foi isso que me fez criar o hábito do trabalho, de tal forma que hoje, aposentado, não fico jamais parado: estou escrevendo (meu terceiro livro está prestes a sair), aprendendo piano, começando a gravar música etc. É a virtude da laboriosidade que me foi firmemente implantada pelo hábito do trabalho desde moleque. Já o jovem que é proibido de se dedicar ao trabalho terá enormes dificuldades em construir em si esta virtude, em fazer do trabalho um hábito. O trabalho para ele poderá vir a ser sempre algo penoso, desagradável, até por ter sido apresentado tardiamente a ele.

A criança ou adolescente precisa aprender a se disciplinar, a construir algo, a ir além do que ele mesmo é naquele momento. Numa pessoa em construção, como são as crianças e os adolescentes, é fundamental que haja o exercício do trabalho, para construir em si a virtude correlata da laboriosidade. O dinheiro é mero bônus; o importante é que ele se acostume a trabalhar. Muitos dizem que o trabalho dele deve ser apenas o de aprender o que a escola ensina. É outra besteira, primeiro porque há uma enormidade de coisas que a escola não ensina. É por isso que há cursos de línguas, por exemplo, ou clubes de xadrez. Em segundo lugar, é sempre uma minoria que há de viver do estudo. Hoje em dia isso ainda significa, no mais das vezes, uma carreira acadêmica. Para cada professor universitário, entretanto, deve haver centenas de pedreiros, motoristas, mecânicos, engenheiros e outros profissionais que estudaram o que lhes convinha e depois foram aplicar aquilo no mundo real. O estudo, para a maioria das pessoas, é apenas uma preparação: aprende-se a ler e escrever, a fazer contas e tudo o mais, para que se possa conviver em sociedade. Porém o estudo não é, para a maioria, um fim em si mesmo. E, mais ainda, não é a vocação da pessoa. Meu compadre não conseguiu terminar o ensino médio, que ele achava difícil e desagradável. Descobriu-se dotado, no entanto, de enorme capacidade de vendas. Hoje ele é vendedor, e creio que ganhe mais que eu, com minhas sete línguas e milhares de livros.

Para a pessoa que não tem a vocação do estudo, a escola é trabalhosa, mas não é – no bom sentido do termo – trabalho real. É uma chatura necessária, e só. Algo semelhante a fazer exercícios físicos: algo necessário, mas que não é nem agradável nem, muito menos, uma vocação. Ela há de se encontrar fazendo outra coisa. Aprendendo como consertar motocicletas ou carros, por exemplo, ao laborar como aprendiz numa oficina. Mas a absurda lei o impede. Ainda que um molequinho de 10 anos seja tremendamente útil numa oficina de consertos de motocicletas ou carrinhos de cortar grama, a ele não é permitido fazer algo que o fascinaria e ainda daria um dinheirinho. Este é o verdadeiro crime: aquela criança está privada da oportunidade de construir em si a virtude da laboriosidade, de colocar em prática o que pode perfeitamente ser a sua vocação.

É mais que uma falácia; é um crime confundir o bom trabalho infantil com o abuso infantil. É como se se passasse a usar a expressão “trabalho feminino” para a prostituição, que é um abuso contra a mulher

Os filhos muitas vezes, por via da genética e da criação, interessam-se pelo trabalho dos pais. Eu sonho em construir aqui onde moro um centro de estudos – uma espécie de pousada com sala de aula, que só abrirá para cursos intensivos. Ele há de ter uma lojinha, para vender produtos da região e materiais ligados ao curso do momento. É um sonho antigo. Minha filha, desde os 10 aninhos de idade, sonhava em trabalhar na tal lojinha. Seria ilegal, mas certamente eu o teria não só permitido, mas incentivado.

É mais que uma falácia; é um crime confundir o bom trabalho infantil com o abuso infantil. É como se se passasse a usar a expressão “trabalho feminino” para a prostituição, que é um abuso contra a mulher. Turvar as águas desta maneira, distorcendo o santo nome do trabalho para que ele signifique o oposto do que realmente é, não pode ajudar em nada o diálogo sobre algo que é muito importante. Há quem queira a legalização da maconha. Há quem deseje que as rinhas de galo voltem a ser permitidas. São meros gostos pessoais que se veem em conflito com a legislação positiva. Mas o trabalho das crianças e dos adolescentes, evidentemente em condições compatíveis com sua situação de pessoinhas em formação física, moral e intelectualmente, é algo necessário para a sociedade, e que uma lei iníqua proíbe.

Se a criança e o adolescente não podem trabalhar, eles são impedidos de formar em si uma virtude importantíssima para elas e para a sociedade como um todo. Trabalhamos para a sociedade, não para nós mesmos. Trabalhar, assim como ter filhos, é ser membro ativo da sociedade. Negar esta oportunidade justamente àqueles que estão em formação e por isso precisam exercitar ao máximo as virtudes que os tornarão bons cidadãos é uma obscenidade antissocial. É uma lei iníqua, que deveria ser revogada o quanto antes.

E, claro, se alguém abusar de crianças ou adolescentes, que vá em cana. Uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Que nunca mais haja abuso infantil, e viva o trabalho infantil!

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