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Sala de leitura de jornais no Reino Unido, em 1893.
Sala de leitura de jornais no Reino Unido, em 1893.| Foto: British Library

O 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública registrou recorde da violência sexual no ano passado. De acordo com o levantamento, foram 66.123 boletins de ocorrência de estupro registrados em delegacias de polícia em 2019, maior número desde que o estudo começou a ser feito, em 2007. Esses dados mostram que um crime de estupro foi registrado a cada 8 minutos – em 2015 eram 11 minutos. Para os pesquisadores, os casos registrados representam apenas uma pequena parte do que ocorre no país, considerando que muitas vítimas não fazem boletim de ocorrência.

Uma outra pesquisa, de 2016, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) ao Datafolha, revelou que 33% dos pesquisados disseram considerar a mulher culpada pelo estupro. Na visão desses, a vítima deve ser culpabilizada.

Esses dados evidenciam a chamada cultura do estupro no Brasil, fundamentada em uma série de fatores, especialmente no insuficiente combate à violência sexual, na culpabilização da vítima, na impunidade a criminosos e no estímulo de alguns agentes de comunicação a estupradores.

Imagine uma cena: a pessoa deixa, por alguns minutos, o portão de sua casa aberto e um criminoso entra na residência dela, rouba seus pertences e violenta seus familiares. Pelo posicionamento de quem culpabiliza a vítima de estupro e inocenta o estuprador, a culpa nesse caso também seria da pessoa que deixou o portão aberto, e não o bandido.

A cultura do estupro e a culpabilização da vítima não só têm raízes em valores tortos ainda presentes em parte da população, como também são amparadas por setores que deveriam ter responsabilidade por combatê-las.

jornalismo
Redação do jornal The New York Times, em 1942.| Marjory Collins/Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos

O Poder Judiciário e o Ministério Público têm feito muito pouco para mudar o quadro inaceitável em relação ao estupro no Brasil. Em alguns casos – pelo contrário –, alguns membros da Justiça e do MP contribuem para essa repugnante situação.

E o que isso tem a ver com jornalismo? Muitos meios de comunicação também não têm cumprido a sua parte na divulgação de informações sobre violência sexual, incluindo veículos que trabalham com jornalismo. Mais grave é a disseminação de conteúdos favoráveis ao crime de estupro e à culpabilização da vítima, os quais vêm aumentando após muitos veículos jornalísticos terem priorizado a divulgação de mensagens dos falsos jornalistas em detrimento das informações produzidas por jornalistas profissionais.

A ética jornalística se baseia no direito fundamental das pessoas à informação, à livre divulgação de informações e na liberdade de expressão – como também é frontalmente contrária à censura –, mas não compactua com apologia ao crime.

A liberdade de imprensa implica compromisso com a responsabilidade social inerente ao jornalismo. Nesse sentido, o jornalismo requer a divulgação da informação precisa. Esse é um dever dos meios de comunicação, sejam públicos ou privados.

O que se tem registrado, em alguns casos, é que pessoas desqualificadas para a prática do jornalismo usam os meios de comunicação para deturpar fatos, fazer proselitismo e defender criminosos. Muitos nunca estudaram ética jornalística e não dão a mínima para a prática do bom jornalismo. Para esses, o lugar da deontologia do jornalismo é o lixo.  São os falsos jornalistas na era da comunicação digital, os quais violam a ética da profissão e tentam desqualificar qualquer questionamento sobre suas práticas nefastas.

A liberdade de imprensa pressupõe a preservação da dignidade da pessoa humana. Agentes de comunicação que procuram culpar vítimas de estupro não podem ser confundidos com jornalistas. São degradadores de uma profissão que tem em seus pilares a defesa dos direitos humanos; são defensores de criminosos e, como tal, devem ser identificados.

É fundamental, na defesa da dignidade da pessoa humana, dos direitos fundamentais da democracia e das liberdades, que se questione publicamente a prática do falso jornalismo e, principalmente, seus infaustos praticantes.

*Siga Célio Martins no Twitter para receber informações sobre suas reportagens e artigos

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