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Minha bisavó - Célio Martins
Minha bisavó, que no Brasil se chamava Luzia e na Itália é reconhecida oficialmente como Luigia, mas que foi registrada como Aloysia, em latim.| Foto: Arquivo pessoal/Célio Martins

Esta é também uma breve história de encontros e desencontros familiares. Fui levado a escrever e compartilhar essas linhas motivado pelas surpresas que tive quando pesquisava minhas próprias origens. Descobri que uma bisavó minha, a qual todos chamavam de Luiza, na realidade foi registrada como Aloysia (em latim), assim como meu trivasavô Pedro era na verdade Petrus. Um dos meus tataravôs se chamava Joh: (isso mesmo, com dois pontos), uma tataravó era Dominicaes e outra Rosae. Todos registrados com nomes em latim.

Eu cresci em um mundo familiar com histórias de antepassados quase sem fim. De um lado, contavam-me a epopeia de parentes muito distantes que navegaram meses pelo Oceano Atlântico, de Portugal até chegar ao Brasil. De outro falavam da longa travessia dos imigrantes italianos, em narrativa que para mim parecia a saga do poeta romano Virgílio. Havia ainda histórias de indígenas dos povos tupi, guarani e kaigang que se casaram com portugueses e italianos, meus parentes, assim como pretos de grupos étnicos bantos e sudaneses trazidos forçadamente da África, de regiões onde hoje estão Angola, Congo, Moçambique, Nigéria, Guiné.

Nascimento da minha bisavó - Célio Martins
Registro do nascimento da minha bisavó, em latim.| Arquivo pessoal/Célio Martins

Durante a infância, adolescência e juventude nunca me interessei historicamente por essas odisseias. A dura realidade de quem vem de família pobre se impunha. As preocupações se restringiam em como conseguir estudar e escapar da miséria que atingia a maior parte da população brasileira entre os anos de 1960, 1970 e 1980.

Na vida adulta, com algumas necessidades de sobrevivência superadas, as questões culturais, antropológicas e históricas começaram a ganhar importância na minha vida. Mas, novamente, a constituição de família, o trabalho, os estudos e responsabilidades sociais falaram mais alto.

Minha bisavó - Célio Martins
Nomes de registro de meu trisavô Petrus e da minha bisavó Aloysia,(em latim) deveriam ter sido mantidos na forma original no Brasil.

Somente nos últimos dois anos eu decidi buscar um pouco dessa história familiar. Talvez motivado por uma frase do meu avô paterno Manoel Martins Isidoro, filho de um português natural de Montinho (Coimbra), que sempre dizia: “quem não conhece a própria história, pouco se conhece”.

Iniciada a pesquisa, as surpresas surgiam todos os dias. Uma delas, e a que mais me causou indignação, diz respeito aos procedimentos negligentes, desinteressados, irresponsáveis, injustificados e inautênticos tomados por autoridades brasileiras no registro de imigrantes. Não tiveram o mínimo cuidado de anotar, na maioria dos casos, o local de nascimento, a data exata de nascimento, os nomes dos pais, entre outras informações preciosas.

Nomes da minha trisavó Dominicaes e do meu trisavô Joh: (isso mesmo, com dois pontos) deveriam ter sido mantidos na forma original.
Nomes da minha trisavó Dominicaes e do meu trisavô Joh: (isso mesmo, com dois pontos) deveriam ter sido mantidos na forma original.

Este tema, do relapso das nossas autoridades no registro dos imigrantes, será narrado com muitos detalhes em outro texto. Vou me restringir aqui a um episódio que me deixou maravilhado entre tantos outros que descobri ao pesquisar as origens da família.

Minha avó materna Maria Ricciardi, com quem convivi alguns períodos da minha vida (ela nasceu em 1915, em Cajobi-SP, e faleceu com 96 anos de idade, em São Paulo, capital), sempre me dizia que seus pais eram italianos e austríacos. Contava (com um sotaque carregado) que seu pai, Alfonso Ricciardi, veio de um lugar lindo da Itália, que se chamava Toscana, e que sua mãe, Luiza Fumis, saiu de um lugarejo quase na divisa da Áustria e que tinha registro de austríaca.

Vasculhei documentos no Brasil e, inicialmente, pouco descobri sobre a origem da Luiza Fumis. Na certidão de casamento (de 1903, em Monte Alto-SP) dizia apenas que Luiza Fumis era natural da Itália. No nascimento da minha avó dizia apenas que era filha de Luiza Fumis, natural da Itália. No nascimento da minha mãe se repetia a informação, que era neta de Luiza Fumis, natural da Itália.

Quando eu pensava em desistir, dada as dificuldades, a cartorária de Monte Alto, no interior de São Paulo, onde minha bisavó se casou, respondeu a um pedido de informação confirmando que havia encontrado a certidão de óbito de um tal Pedro Fumis, esposo de Maria Cragnolin. Neste documento está registrado que Pedro era natural de Turriaco – estava aí, finalmente, a pista que precisava!.

Turriaco é uma comuna do norte da Itália, com pouco mais de 2 mil moradores, e pertence à região denominada Friuli-Venezia Giulia, quase na divisa com a Slovênia e a Áustria. Os dados confirmavam as histórias de minha avó sobre as origens da mãe dela; faltava agora descobrir se minha bisavó era mesmo de Turriaco.

Igreja Paroquial de San Rocco, em Turriaco (região de Friuli-Venezia Giulia), onde minha bisavó e meus trisavós foram batizados com nomes em latim.
Igreja Paroquial de San Rocco, em Turriaco (região de Friuli-Venezia Giulia), onde minha bisavó e meus trisavós foram batizados com nomes em latim.| Reprodução/Wikipedia

Primeiro escrevi uma carta ao Serviço de Demografia de Turriaco, que me orientou corretamente a buscar as informações na igreja. "Os registros do estado civil anteriores a 1924 nos municípios da província de Gorizia que pertenciam ao Império Austro-Húngaro, são guardados pelas paróquias e em cópia pela Cúria arcebispal", me informaram.

Enviei no começo deste ano carta para o Archivio Arcivescovile di Gorizia, província onde está localizada a comuna de Turriaco. As esperanças eram poucas, considerando que Turriaco pertenceu ao Império Austro-Húngaro e muitos documentos oficiais foram queimados, destruídos ou desapareceram durante as lutas pela reconquista do território.

Para minha surpresa, poucos dias depois recebi a resposta do Archivio della Curia Arcivescovile di Gorizia confirmando que havia encontrado a certidão de batismo de uma criança de nome Luigia Fumis, filha de Pietro Fumis e Maria Cragnolin. Mas ainda não estava terminada minha busca. A igreja informou também que havia duas filhas do casal e que a outra se chamava Maria Luigia. Tive que voltar aos arquivos no Brasil para ter certeza de que a minha bisavó era a primeira filha, a Luigia Fumis.

Com isso o tempo passou, e somente na segunda-feira (12) eu consegui as certificações para solicitar o registro de batismo. Me preparei para uma longa espera, no entanto, no dia seguinte chegou por e-mail uma cópia do registro original, de 1880. A surpresa foi maior ainda ao abrir o arquivo em PDF: minha bisavó foi registrada em Latim, e seu nome, assim como de todos os meus trisavós e tataravós também têm nomes no idioma Latim.

Nomen, Cognomen et Conditio Patris, ejusque genitorum Nomen.

Em próximo texto, quando reunir tempo, narrarei sobre as aberrações no registro de nomes de imigrantes no Brasil e a quase ausência total de dados passados de negros e indígenas. Contarei, por exemplo, como um outro bisavô meu italiano, de nome Domenico Benedet, virou Domingos Benedicto no Brasil.

Em tempo: meus agradecimentos à Igreja Católica e aos serviços de demografia das comunas de Orsago, Turriaco e Castel San Niccolò, aos funcionários dos cartórios de registro civil de Caconde, Monte Alto, Cajobi, Monte Azul Paulista e Guaxupé, ao escritor Zé Filardo, à professora Regina Orrico e ao pessoal do Museu da Imigração de São Paulo.

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