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Bandeira do Talibã (branca, ao fundo) é hasteada no lado afegão da fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão, em 14 de julho de 2021
Bandeira do Talibã (branca, ao fundo) é hasteada no lado afegão da fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão, em 14 de julho de 2021| Foto: AKHTER GULFAM/Agência EFE/Gazeta do Povo

O Talibã vai retomar seu domínio no Afeganistão, no que, infelizmente, é mera questão de tempo. O tema já foi abordado aqui no nosso espaço e é, por motivos óbvios, presença constante no noticiário internacional. A História afegã, desde a Antiguidade, mostra o motivo do cognome “Cemitério de Impérios”. E, como Bush filho, Obama, Trump e Biden lidaram com essa trajetória é muito diferente de, curiosamente, como o próprio Talibã lida com sua História. Aparentemente, o grupo extremista aprendeu com ao menos um erro de seu passado, cometido logo após sua criação.

A origem do Talibã está na Guerra Civil Afegã, iniciada em 1992. Após a derrota da república secular afegã, aliada dos soviéticos, as forças mujahidin islâmicas se separaram em vários grupos. Progressivamente, esses grupos se arregimentaram em duas frentes. A Aliança do Norte, liderada por Ahmad Shah Massoud, o Leão de Panjshir, conhecido como um líder moderado. Nas áreas sob seu comando, por exemplo, meninas estudavam e as mulheres tinham todos os direitos garantidos, ao contrário dos territórios submetidos ao grupo rival, o Talibã, o grupo fundamentalista liderado por Mohammed Omar.

Criado em meados de 1994, a primeira grande operação militar do Talibã, apoiado pelo Paquistão, foi a Ofensiva de Kabul, em meados daquele ano. A ideia era tomar já de assalto a capital e maior cidade afegã. Como se, numa partida de xadrez, um dos jogadores fosse direto ao rei adversário, sem um movimento estratégico de suas peças. Como consequência, Kabul ficou sitiada e no meio de uma guerra de atrito que durou meses e custou duras baixas ao Talibã. O grupo saiu vitorioso da guerra especialmente pela sua vantagem tática, na guerrilha pelas regiões montanhosas, não por sua estratégia inicial.

Fronteiras

Na atual ofensiva, em 2021, o Talibã está executando uma estratégia diferente. O grupo está cercando o Afeganistão, dominando as regiões periféricas. Principalmente, as passagens de fronteira, impossibilitando eventuais corredores entre o governo afegão, de Kabul, e seus vizinhos. Sejam esses corredores para ajuda humanitária, para fuga de refugiados ou apoio militar ao governo de Ashraf Ghani. Já no final de junho, o Talibã controlava parte da fronteira afegã com o vizinho Uzbequistão.

Semanas depois, inclusive, no dia doze de julho, foi revelado que negociadores talibãs no Qatar, onde estão para as conversas com o governo afegão, também possuem canais de diálogo com o Turcomenistão. Oficialmente, o governo turcomeno nega, mas a realidade é que não desejam o conflito cruzando sua fronteira, em maior parte dominada pelo Talibã. Não querem se envolver na guerra e também não querem afegãos achando que a divisa será um lugar à salvo.

Nem que, para isso, tenham que negociar com um grupo extremista. Novamente, claro, o governo nega tudo isso, mas uma delegação talibã teria até visitado Asgabate. Posteriormente, a região da fronteira tríplice entre Afeganistão, Uzbequistão e Tadjiquistão foi ocupada pelo Talibã, na passagem de Shahrtuz. No dia seis de julho, foi a vez da fronteira com o Tadjiquistão ser totalmente controlada pelos extremistas. Dois dias depois, a bandeira afegã foi arriada da aduana em Islam Qala, na região de Herat, fronteira com o Irã, substituída pelo estandarte branco do Talibã.

O nome Herat talvez seja familiar a alguns leitores, já que era entreposto importante na antiga Roda da Seda e é citado em romances e obras tradicionalmente conhecidas. Finalmente, no dia catorze, o Talibã tomou uma das principais passagens da maior fronteira afegã, com o Paquistão, o Portão da Amizade, entre a cidade afegã de Wesh e a paquistanesa Chaman. Hoje, a situação do governo afegão é de estar quase completamente cercado, salvo dois corredores entre Kabul e o Paquistão, e outro que liga a capital ao Uzbequistão.

Cidades

Ou seja, aparentemente, o Talibã aprendeu com o erro de 1994. Mesmo com os extremistas controlando a maior parte do território afegão, as maiores cidades e cerca de 60% da população ainda estão sob controle do governo. Com o “cerco” das fronteiras, o governo fica isolado, as cidades podem sofrer problemas de abastecimento e a população não conseguirá fugir ou buscar refúgio, tornando-se, após a eventual vitória talibã, “súdita” do emirado restaurado.

Outro motivo para essa estratégia pode ser o temor, por parte do Talibã, de que ofensivas contra as cidades resultem em grande repercussão negativa internacional. É inclusive especulado que, como parte do acordado entre o Talibã e o governo Trump, em fevereiro de 2020, o Talibã teria se comprometido em se manter afastado das maiores cidades. Uma espécie de divisão tácita entre a república, governando as cidades, e o grupo, dominando o interior e as montanhas. O governo dos EUA, obviamente, nega tal “cláusula”. Além disso, a História mostra que a palavra do Talibã não vale de muita coisa.

Algo mais concreto na direção dessa possibilidade estratégica é o fato de que o Talibã freou suas ofensivas nas regiões de cidades, e ofereceu uma trégua ao governo, incluindo uma possível troca de prisioneiros. Guerras urbanas são custosas, em todos os sentidos. Baixas militares, danos à infraestrutura e à imagem pública. Ainda assim, mesmo com esse “aprendizado” estratégico talibã e a cautela na véspera da vitória, a política de cerco das fronteiras afegãs pode apresentar um problema diferente ao Talibã.

Vizinhos 

Sem a presença dos EUA e a iminente vitória de um grupo cujo governo era reconhecido internacionalmente apenas por Paquistão, sauditas e Emirados Árabes Unidos, as potências e países ao redor podem estar dispostos a se envolver. Peço ao leitor que esqueça qualquer ideia pré-concebida de que o Afeganistão é algum fim do mundo sem valor. Não, sua localização é estratégica e seu solo é rico em recursos minerais. Irã, sauditas, Turquia, Paquistão, Índia, China, Rússia e demais países fronteiriços possuem interesses diretos ou indiretos nos rumos afegãos.

O Talibã possui como principal aliado regional o Paquistão que, por sua vez, tem a China como maior aliado e investidor. No dia catorze, o chanceler chinês Wang Yi afirmou que os dois países “devem defender a paz regional juntos. Os problemas no Afeganistão são problemas práticos que enfrentamos. A China, assim como o Paquistão, busca apoiar as partes afegãs para encontrar uma solução por meio do diálogo". Ao mesmo tempo, teria pedido para o Talibã se distanciar de “forças terroristas”. No caso, movimentos ligados aos uigures, no vizinho território chinês de Xinjiang.

A Rússia foi mais direta. O país é aliado do Tadjiquistão, ambos integrantes da Organização do Tratado de Segurança Coletiva, espécie de vínculo militar “sucessor” da União Soviética, numa analogia simplista. A Rússia possui uma importante base no país, com mais de cinco mil militares na região. O chanceler Serguei Lavrov afirmou que a segurança tadjique é importante para Moscou e que "se o Tadjiquistão for atacado, vamos honrar nossos compromissos".

Junto com os avanços do Talibã nas fronteiras, seguem milhares de refugiados e de desertores, fugindo para preservarem suas vidas. Cerca de mil soldados afegãos cruzaram a fronteira com o Tadjiquistão. Isso, obviamente, representa também um risco e um problema para os Estados vizinhos. Ao fim das contas, serve de prelúdio para a próxima etapa do conflito afegão. Quem se envolverá no país, em que termos e quando. Assim como a vitória talibã, não é questão de “se”, mas de “quando”.

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