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Muçulmanos comemoram a revogação do status de museu da Hagia Sofia, na Turquia| Foto: Ozan KOSE/AFP

O presidente turco Recep Tayyip Erdogan tanto pressionou que conseguiu. O Conselho de Estado da Turquia revogou no último dia 10 de julho a condição de museu da antiga basílica de Hagia Sofia, em Istambul. O edifício agora será reconvertido em uma mesquita, com data marcada para as primeiras orações no local, o próximo dia 25 de julho. Pensando no que Erdogan deseja e no que ele pode conseguir com a ação, foi uma boa decisão?

Hagia Sofia significa, em grego, Sagrada Sabedoria. Em turco, é chamada de Ayasofya. Concluída em 537, por ordem de Justiniano, foi, por séculos, a maior catedral do mundo, um símbolo bizantino no cisma entre ortodoxos e católicos. Foi na própria basílica em que o cisma começou, em 1054, e foi a sede do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, principal autoridade ortodoxa, por quase mil anos.

O patriarca de Constantinopla é o primeiro entre os iguais, primus inter paris, dos quinze patriarcas ortodoxos. O valor de Hagia Sofia não era apenas como um local de culto, mas como sede espiritual para todos os ortodoxos. O marco arquitetônico era também um símbolo temporal, do poder bizantino e de Constantinopla, a Segunda Roma. Eram ali as coroações dos imperadores, por exemplo.

Após a conquista de Constantinopla pelos otomanos, em 1453, o sultão Mehmed II ordenou a conversão da basílica em uma mesquita. A conversão de lugares religiosos é uma prática tanto do Islã quanto do cristianismo. O melhor exemplo disso é o local da Catedral de Nuestra Señora de la Asunción, em Córdoba, na Espanha. De templo pagão para igreja cristã, de igreja para mesquita e, finalmente, de mesquita para igreja, com a Reconquista.

Ayasofya foi a principal e maior mesquita da capital otomana até a construção da Mesquita Azul, em 1616. Continuou sendo um templo religioso até 1931, quando começa o processo de transformação do edifício em um museu secular, por determinação de Mustafá Kemal Atatürk. A determinação foi parte do processo de secularização da nova república da Turquia, distinguindo o novo governo do passado otomano.

Razões políticas

Qual o motivo da mudança de status em 2020, então? Um aceno de Erdogan para duas demografias internas. Demografias que se cruzam em vários pontos, inclusive, diminuindo o alcance da medida. Primeiro, aos religiosos e conservadores turcos, afastando a Turquia cada vez mais do legado kemalista e secular. Desde os eventos de um possível golpe de Estado em 2016, Erdogan tem expurgado o Estado turco desse legado.

Sob a justificativa de reprimir a influência do clérigo Fethullah Gülen, suposto artífice do golpe, quase duzentos mil funcionários públicos foram exonerados. Policiais, juízes, militares, professores, etc. Dezenas de milhares foram presos. Mais de mil empresas tiveram bens expropriados. Jornalistas foram presos, jornais fechados ou então transformados em caixas de ressonância do governo.

Mirando nos apoiadores de Gülen, Erdogan e seu partido aproveitaram e também direcionaram a repressão contra liberais, curdos e kemalistas, abrindo caminho para a politização do judiciário e das forças armadas. Especialmente, de acordo com as linhas do seu partido, Justiça e Desenvolvimento, socialmente conservador, populista e com influência religiosa, embora não radical.

O retorno de Hagia Sofia a ser uma mesquita satisfaz esses setores, um símbolo desse “resgate” de valores supostamente promovidos por Erdogan. A segunda demografia agraciada é a de alguns setores nacionalistas, que enxergam na mudança um ato de soberania e de valoração de um passado glorioso turco. Também uma reação do país à pressão externa em relação aos seus edifícios históricos.

Nos últimos anos, diversas antigas igrejas que eram museus foram convertidas em mesquitas, gerando pressão e críticas externas, especialmente da Grécia, atual lar do patriarcado ortodoxo. E rival histórico e atual da Turquia, vide o conflito congelado do Chipre. Ao ser perguntado sobre o repúdio grego, Erdogan respondeu “se atrevem a nos dizer para não transformar Ayasofya em uma mesquita. Quem está governando a Turquia?”

Política externa

Erdogan, então, fortalece e continua seu processo de valorar o passado otomano e de mirar sua atenção externa ao Oriente Médio e outros países muçulmanos. A última década é marcada por um distanciamento mútuo entre a Europa e a Turquia, com cada um responsabilizando o outro por isso. Polêmicas envolvendo Erdogan na Alemanha e nos Países Baixos, a guerra na Síria, o fluxo de refugiados, o congelamento nas conversas de integração turca com a União Europeia, hostilidades envolvendo navegação e recursos no Mediterrâneo, todos esses elementos fazem parte desse processo.

Alguns já foram abordados aqui nesse espaço. O fato é que Erdogan, conscientemente, distancia-se da Europa e concentra seus esforços, de imagem e de política externa, em outro caminho. Chega-se então no ponto de balancear a decisão com seus ganhos. Internamente, o público que vai aprovar Hagia Sofia novamente como uma mesquita já apoia Erdogan e seu partido, não há muito por onde avançar. No máximo, encobrir a atual crise econômica e política turca com uma cortina de fumaça.

Externamente, os vinte e sete ministros de relações exteriores da UE condenaram a decisão, assim como o governo grego, o governo cipriota, o papa Francisco e o patriarca Cirilo de Moscou. Cirilo possui relação próxima com Putin, o presidente russo. O governo dos EUA também condenou a decisão, e Washington e Ancara não estão com boas relações, lidando com Güllen e boicotes de armamentos.

Externamente, quem irá aprovar essa ação, então? Talvez alguns países aliados da Turquia, como o Qatar. E talvez países onde o Islã tenha um papel político e ideológico dominante. É o caso da Arábia Saudita. Curiosamente, a decisão sobre Hagia Sofia ocorre apenas duas semanas depois do início do julgamento turco de vinte sauditas pelo assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi.

Todos serão julgados in absentia, já que os sauditas não extraditaram seus nacionais. Ambos os países estão em lados opostos no conflito da Líbia, ao mesmo tempo em que possuem um rival comum, o Irã. Não se trata de dizer que a decisão de Erdogan é especificamente para se aproximar dos sauditas, mas constatar que é a única possível repercussão positiva nas relações externas turcas.

Retrocesso 

Em termos políticos, então, a decisão de Erdogan é apenas um passo mais numa direção que ele já seguia. Pouco proveito, pouca mudança e, talvez, apenas prejuízos. Especialmente o fortalecimento da rejeição aos turcos e ao Islã nos países e sociedades mais afetados, como na Rússia. Em termos culturais e de direitos humanos ao patrimônio cultural, entretanto, é um claro retrocesso.

Um edifício religioso pertence à uma comunidade específica, enquanto um museu, secular, é um local de saber e de cultura ecumênico, que pertence à humanidade. Particularmente, esse diagnóstico vale para toda e qualquer religião. Uma catedral católica européia que seja transformada em um museu e, décadas depois, volte ao seu uso religioso, seria também um retrocesso. Essa é uma comparação importante de ser abordada.

Integrantes do governo Erdogan, alegam que as catedrais de Notre Dame ou de São Vito, por exemplo, não deixam de ter funções religiosas. Elas são visitadas, sim, mas nunca foram museus propriamente ditos. No caso particular de Hagia Sofia, existe a questão de que o ato frontalmente afeta a relação do edifício com a Unesco e a lista de Patrimônios Culturais da Humanidade, em que foi inserido em 1985.

Foi com apoio da Unesco que uma das reformas da basílica foi realizada na virada do século. Uma das várias realizadas em toda sua História. Convenhamos, trata-se de edifício com quase mil e quinhentos anos, em uma região suscetível a terremotos. O prédio passou por mudanças em toda sua História, mas, salvo duas ocasiões, foi, em regra, preservado. Como mesquita otomana, ícones cristãos foram resguardados, cobertos da vista.

Segundo o governo turco, algo similar seria feito agora. Uma configuração religiosa que preserve o patrimônio histórico cristão. As duas vezes em que a basílica foi pilhada foram na conquista muçulmana, em 1453, e na Quarta Cruzada, quanto toda Constantinopla foi saqueada pelos exércitos católicos. De 1204 a 1261, a basílica foi uma igreja católica, retornando ao culto ortodoxo posteriormente.

Essa questão histórica é também importante de ser destacada por conta do discurso de que o governo turco poderia sancionar atos de iconoclastia ou destruição de patrimônio religioso. Por quase quinhentos anos, a Hagia Sofia foi uma mesquita e manteve-se preservada, o que desmente os receios de cenas como as cometidas por grupos como o Daesh. De qualquer maneira, não anula o retrocesso que é a decisão, para pouco, se algum, ganho político de um homem específico que se agarra como pode ao poder.

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