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“O poder das doutrinas a que meu nome está ligado é que elas se adaptam a todos os tempos e situações. Hoje, Maquiavel tem netos que sabem o valor de suas lições. Pensam que estou muito velho, e todos os dias rejuvenesço na terra.” (Maurice Joly, Diálogo no inferno entre Maquiavel e Montesquieu)
Em 1851, dois anos após ter sido eleito presidente da República, Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho do primeiro Napoleão, arquitetou o seu golpe de Estado contra o Parlamento. Mandou prender e deportar numerosas figuras públicas de várias tendências políticas e, em 2 de dezembro, assinou um decreto que dissolvia a Assembleia Legislativa. Com o golpe, conquistou poderes ditatoriais. No ano seguinte, chamou um plebiscito, pelo qual, com quase a totalidade dos votos, instituiu o Império e transformou-se em Imperador da França, com o título de Napoleão III.
Como se sabe, Napoleão III foi tema de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, famoso livro de Karl Marx, publicado em 1852. Referindo-se ao fato de Luís Bonaparte ter tentado imitar seu tio, o primeiro Napoleão, Marx escreveu a conhecida passagem: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.”
Naquele ano de 1851, quando Luís Bonaparte dava início ao seu golpe, o escritor Maurice Joly estava em Paris, após abandonar, temporariamente, os seus estudos de direito. Durante todo o tempo em que ali esteve, participou, com outros liberais e republicanos, da resistência ao Império de Napoleão III. Um dos resultados dessa resistência foi o conhecido livro Diálogo no inferno entre Maquiavel e Montesquieu, publicado em 1864. A obra consiste num diálogo fictício entre os dois influentes pensadores, pais intelectuais do absolutismo e do liberalismo, respectivamente. Para Joly, Montesquieu encarnava o “espírito do direito”, enquanto Maquiavel, o “espírito da força”.
Não entrarei aqui no mérito sobre o quão fiel é a interpretação de Joly sobre o pensamento de Maquiavel e Montesquieu. Basta notar que ela era bastante comum entre a intelligentsia europeia da época, sobretudo entre republicanos e liberais. O Montesquieu de Joly representa a defesa do liberalismo clássico, caracterizado pela ideia da separação dos poderes e pelo princípio da legalidade. Segundo essa perspectiva, o despotismo deveria ser combatido por meio da instituição de um mecanismo estatal de freios e contrapesos, capaz de proteger as liberdades civis e assegurar o cumprimento das normas constitucionais.
Por sua vez, o Maquiavel de Joly encarna um visceral antiliberalismo, caracterizado pelo primado da força, uma concepção de política cujo antepassado intelectual remoto seria, talvez, a doutrina do sofista Cálicles, no diálogo platônico Górgias, e o herdeiro seria o decisionismo de Carl Schmitt. No diálogo fictício com Montesquieu, o pensador florentino defende que a liberdade política é uma construção relativa, que a força precede o direito e que a própria noção de “direito” carece de substância. Daí sua defesa do governo absoluto, sob o argumento de que o povo, instável por natureza e inclinado à submissão, tende à autodestruição se deixado livre.
Em suma, o embate simbólico criado por Joly entre O Espírito das Leis e O Príncipe traduz a disputa entre dois modelos políticos em permanente conflito: de um lado, a defesa da liberdade; do outro, a apologia do autoritarismo. Daí que, escrito como reação ao regime de Napoleão III, no século XIX, Diálogo no Inferno mantenha a sua pertinência ainda nos dias de hoje, levando-nos a imaginar qual dos dois pensadores teria vencido o debate infernal.
Lembrei dessa obra, aliás, a propósito dos acontecimentos recentes no Brasil, que parecem reeditar o confronto entre Montesquieu e Maquiavel. Refiro-me, especificamente, à aprovação, pela Câmara dos Deputados, no dia de ontem (07/05/2025), da suspensão da ação penal no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), réu no processo que investiga uma pretensa tentativa de golpe de Estado em 2022. Foi a primeira vez, em muito tempo, que o Congresso tratou de reagir com altivez aos recorrentes ataques perpetrados pelo STF contra o exercício soberano do Poder Legislativo. Foi a primeira vez, em muito tempo, enfim, que parlamentares, em peso, ousaram erguer a bandeira da legalidade contra o império da força imposto pelos juristocratas supremos, numa tentativa tardia, e possivelmente insuficiente, de restabelecer a separação entre os poderes e a democracia representativa.
No livro de Joly, diz Maquiavel a Montesquieu:
“No homem, o instinto perverso é mais forte que o bom. O homem é mais atraído pelo mal do que pelo bem; o medo e a força têm sobre ele mais domínio que a razão (...) Todos os homens aspiram a dominar e, caso pudesse, ninguém deixaria de ser opressor. Todos, ou quase todos, estão prontos a sacrificar os direitos alheios a seus próprios interesses (...) Você consultou todas as fontes da história: em todos os lugares, a força aparece antes do direito. A liberdade política é apenas uma ideia relativa; a necessidade de viver é o que domina tanto Estados quanto indivíduos (...) É possível conduzir, pela razão pura, massas violentas que só se mobilizam por sentimentos, paixões e preconceitos? (...) Todos os poderes soberanos tiveram a força como origem ou, o que é a mesma coisa, a negação do direito (...) O povo, deixado por sua conta, só saberá se destruir.”
Contra esse arrazoado cínico, retruca brilhantemente o barão de La Brède:
“Se você erige a violência em princípio, a astúcia em máxima de governo, se não leva em conta, em seus cálculos, nenhuma das leis da humanidade, o código da tirania não passa do código da brutalidade, pois os animais também são hábeis e fortes, e não existe, de fato, entre eles, nenhuma lei além da força bruta (...) Em suma, segundo você, a política não tem nada a ver com a moral. Você permite ao monarca aquilo que nega ao sujeito. Dependendo de quem pratica determinadas ações, você as glorifica no forte e as condena no fraco: passam de crimes a virtudes, conforme a hierarquia de quem as executa. Você louva o príncipe por tê-las praticado e manda o indivíduo para a cadeia (...) Como, quando aquele que era encarregado de fazer executar as leis era, ao mesmo tempo, o legislador, poderia seu poder não ser tirânico? Como os cidadãos poderiam ser garantidos contra a arbitrariedade, quando o poder legislativo e o poder executivo já estavam confundidos, e o poder judiciário ainda se concentrava na mesma mão? (...) Hoje, os povos olham-se enquanto árbitros de seus destinos. De fato e de direito, eles destruíram os privilégios, destruíram a aristocracia. Eles engendraram um princípio que seria muito diferente para você, descendendo do marquês Hugo: eles estabeleceram o princípio da legalidade. Eles não veem, nesses que os governam, senão mandatários. Eles realizaram o princípio da legalidade por meio de leis civis que ninguém lhes poderia arrancar. Eles consideram tais leis como seu sangue, pois elas, de fato, custaram muito sangue a seus ancestrais (...) Durante muito tempo, entregues à arbitrariedade, pela confusão dos poderes, que permitia aos príncipes fazer leis tirânicas para aplicá-las tiranicamente, eles separaram os três poderes — legislativo, executivo e judiciário — por meio de linhas constitucionais que não podem ser ultrapassadas sem que soe o alarme para todo o corpo político.”
No entanto, o que a doutrina de Montesquieu tinha de correta e louvável em si mesma, sua previsão histórica tinha de ingênua e triunfalista. O personagem de Joly acreditava que os Estados, como os soberanos, só governariam, a partir de então, segundo regras de justiça. Segundo ele, o ministro moderno que se inspirasse nas lições maquiavélicas não ficaria um ano sequer no poder. O monarca que pusesse em prática as máximas de O Príncipe levantaria contra si a reprovação de seus governados e, segundo ele, “seria banido da Europa”.
Pois bem. Nem Montesquieu nem Joly testemunharam o colapso do liberalismo na Europa, e o de um tipo inédito de exercício maquiavélico de poder, uma forma nova e mais virulenta de despotismo: o Estado total do século XX. E, nesse sentido, embora tivesse a bússola moral torta, Maquiavel tinha uma dose de razão. “Não se passarão dois séculos antes que essa forma de governo, que você admira, na Europa, se torne apenas uma lembrança histórica, algo superado e caduco, como a regra das três unidades de Aristóteles” – responde ele a Montesquieu. E continua:
“Você equilibra os três poderes e encerra cada um em suas atribuições. Este fará as leis, o outro as aplicará e um terceiro escutá-las-á: o príncipe reinará e os ministros governarão. Coisa maravilhosa essa balança constitucional! Você previu tudo, todas as regras, exceto o movimento: o triunfo de tal sistema não seria a ação. Seria a imobilidade, caso o mecanismo funcionasse com precisão. Porém, na realidade, as coisas não acontecem assim. Na primeira ocasião, haverá movimento pela ruptura de uma das alçadas que delimitou tão cuidadosamente. Você acredita que os poderes vão ficar muito tempo nos limites constitucionais que lhes designou, e que eles não irão superá-los?”
Com efeito, Montesquieu talvez não tivesse podido imaginar que, até mesmo no Brasil do século XXI, um dos poderes — e justamente o que deveria ser o menos político e voluntarioso — não ficaria muito tempo nos limites constitucionais que lhe foram designados. Ademais, o teórico do liberalismo também acreditava, ingenuamente, na capacidade da imprensa de fiscalizar o poder. Diz ele a Maquiavel:
“Uma potência ainda desconhecida em sua época, e que acaba de nascer, veio dar a eles o derradeiro sopro de vida. Trata-se da imprensa, proscrita durante muito tempo, ainda desmerecida pela ignorância, mas a quem serviria o elogio de Adam Smith, ao falar do crédito: é uma via pública. Com efeito, por meio dela se manifesta todo o movimento das ideias entre os povos modernos. A imprensa funciona no Estado com funções policiais: exprime necessidades, traduz queixas, denuncia abusos e atos arbitrários. Faz apelos à moralidade com todos os depositários de poder: só isso bastaria para defrontá-los com a opinião pública.”
Montesquieu não conhecia a imprensa brasileira, formada por um verdadeiro fã-clube de Maquiavel e do império da vontade do STF contra a lei e os seus formuladores. Comentando sobre a votação de ontem na Câmara, por exemplo, um comentarista do Estadão escreveu, com toda a naturalidade, que, “ao contrário da intenção da maioria demonstrada na Câmara, de fazer uma leitura criativa da Constituição, o efeito jurídico deve ser limitado”. Em seguida, o articulista lamentava, contudo, os efeitos políticos da medida: “O primeiro deles, o de empurrar o Legislativo para uma guerra institucional com o STF e, provavelmente, obrigar a Corte a desmoralizar uma decisão do Legislativo, ignorando a maior parte da deliberação dos deputados para continuar a tocar a ação penal contra Bolsonaro”.
Sim, o leitor entendeu corretamente. Segundo o avalista da juristocracia, o Legislativo comportou-se cruelmente, ao “obrigar a Corte” – sim, obrigar – a desmoralizar uma decisão do Legislativo, coisa que, como sabemos, a Corte nunca fez antes, e só o fará com grande relutância e dor no coração.
Montesquieu achava que “a imprensa funciona no Estado com funções policiais: exprime necessidades, traduz queixas, denuncia abusos e atos arbitrários”. Mal sabia que ele, sim, a imprensa manteve a função policial, mas que, não, seu objeto de vigilância já não é o déspota (que ela bajula), mas justamente aqueles que lhe oferecem alguma resistência.
Em suma: embora possa ter sido consagrado normativamente, e no campo das ideias, o modelo político de Montesquieu não triunfou universalmente, como ele supunha. Daí que, a cada quadra histórica, precise ser sempre relembrado e defendido contra seus novos inimigos: os discípulos de Maquiavel, Cálicles, Carl Schmitt e todos aqueles que buscam fundar a política exclusivamente na força, e não no direito.