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Detalhe de O Pomo da Discórdia, de Jacob Jordaens.
Detalhe de O Pomo da Discórdia, de Jacob Jordaens.| Foto: Reprodução

E esta eleição americana? De fazer inveja às do Vasco de Eurico Miranda. E quem diria que Dilma Rousseff seria uma profeta, afinal: “Nem quem ganhar nem quem perder vão ganhar ou perder. Vai todo mundo perder”. E é a mais pura verdade. Seja lá quem vencer (escrevo antes de haver definição), sairá enfraquecido desta disputa.

O derrotado, por óbvio, mas também o vencedor, especialmente se confirmar que foi Biden, não só pelos democratas (com seu longuíssimo braço na grande mídia) terem alardeado que seria uma vitória imensa, mas, se vier, terá sido por uma margem ínfima, como também por terem perdido o Senado, cuja recuperação davam como favas contadas, e diminuído de tamanho na Câmara, ainda que mantendo sua maioria.

Toda guerra começa por uma surdez entre os inimigos que só termina quando voltam a se dar ouvidos em alguma medida

A votação expressiva dos dois candidatos revela que as posturas de ambos os lados de tratar ao outro como o demônio encarnado são, em si, o problema maior que, pelo visto, levará a profunda divisão interna da sociedade americana ao limite, quando o estado de guerra pré-existente explodirá em violência incontrolável.

Esse estágio anterior à guerra civil escancarada foi bem descrito por Eugen Rosenstock-Huessy em sua obra A Origem da Linguagem, ao ensinar que toda guerra começa por uma surdez entre os inimigos que só termina quando voltam a se dar ouvidos em alguma medida, o que se cristaliza nos tratados de paz em que ambos conversam e concessões são realizadas de fato.

Nada exemplifica melhor esse estado de surdez do que o tratamento que a grande mídia deu e continua dando aos milhares de americanos que votaram em Trump em 2016 e que aumentaram de número neste ano. Crentes ser “impossível” alguém conseguir levar a sério um sujeito como Trump, recusam-se a enxergar a realidade gritada do outro lado que, por sua vez, cerra fileiras em mídias alternativas que falam apenas para dentro de suas bolhas, aumentando o fosso da distância entre os lados na disputa política.

É um fenômeno mundial, na verdade, acontecendo o mesmo no Brasil. É o império da discórdia que, ao colher seus frutos em violência, destampará os ouvidos para a insensatez generalizada, permitindo que alguma lucidez possa retornar com o tempo. Como acontece na Ilíada, de Homero, a “Bíblia” do helenismo que é berço de nossa civilização. A mitológica guerra de Troia foi causada por Éris, deusa da discórdia que ofertou em presente um pomo dourado para a deusa mais bela, sem dizer quem seria. Entrou no imaginário coletivo como sendo o “pomo da discórdia” porque Hera, Atena e Afrodite se candidataram para receber o presente e foi preciso fazer uma eleição.

Pelo curso da história humana, pomos da discórdia existiram aos montes e muitos levaram a tragédias terríveis. Mas precisa ser sempre assim? Não

No colégio eleitoral dos deuses gregos, Zeus decidiu que a escolha seria definida pelo voto de um mortal, Páris, filho de Príamo, rei de Troia. A partir da opção de Páris por Afrodite, que lhe prometeu a mais bela mulher em troca, virá a grande guerra, em parte retratada na Ilíada, que também começa com outra discórdia, desta vez no exército grego, entre Aquiles e Agamêmnon, por despojos de batalha, o que por sua vez causa a explosão de ira em Aquiles que levará à morte de inúmeros heróis gregos. Nesta altura, quem se lembra do pomo da discórdia?

Mas as consequências funestas só param quando pioram. Será preciso que a insensatez de Aquiles contribua para a morte de seu melhor amigo, Pátroclo, o que levará o herói a se vingar do assassino, Heitor, outro filho de Príamo, e consumir sua ira desrespeitando os funerais sagrados dos soldados mortos em batalha que até então ambos os lados respeitavam. Somente depois da humilhação de Príamo, indo implorar para poder enterrar o filho, que Aquiles caiu em si, devolvendo o corpo de Heitor. A guerra ainda seguiria seu curso, mas a Ilíada termina aí, com a concórdia entre Aquiles e Príamo depois da tragédia consumada.

Será sempre assim? Pelo curso da história humana, pomos da discórdia existiram aos montes e muitos levaram a tragédias terríveis. Mas precisa ser sempre assim? Não. Na história dos primeiros humanos nascidos de mulher, Caim e Abel, temos outro retrato da discórdia. A inveja decorrente da escolha de Deus pela oferta de Abel leva Caim a matar o irmão. Mas o interessante aqui é que, antes de a discórdia se instalar por completo no coração de Caim, Deus o alertou, dizendo: “Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante? Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se procederes mal, o pecado estará à tua porta, esprei­tando-te; mas tu deverás dominá-lo” (Gênesis 4,6-7).

Se Caim tivesse dado ouvidos a Deus, nada disso estaria acontecendo, já parou pra pensar? A história das tragédias humanas dali em diante não deixa de ser uma coletânea da nossa surdez à voz de Deus: “Aquele que tem ouvidos, ouça” (Mateus 13,9). E o que as eleições americanas estão dizendo é: ninguém ganhou e vai todo mundo perder se continuar assim, o que parece inevitável. E assim restará dizer, como outro profeta involuntário, o ex-deputado Eduardo Cunha: “que Deus tenha misericórdia desta nação”.

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