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Edição da Gazeta do Povo sendo impressa.
Edição da Gazeta do Povo sendo impressa.| Foto: Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo

Esta coluna é como uma parada não programada no meio da viagem, estacionando o carro no acostamento para contemplar um pôr do sol visto do alto da Serra do Mar, pensando na vida ao som de Philosopher’s Stone, de Van Morrison.

Perdoem o cabotinismo, pecado já cometido na semana passada, mas a vida é feita de ciclos e, dizem, sete anos é momento de encerramento de um, hora de parar e avaliar o caminho percorrido.

Era abril de 2016. Não me lembrava do dia, mas depois encontrei: 4. Ao menos foi a data que registrei no Facebook como início destas minhas colunas aqui para a Gazeta do Povo. Fiz aniversário de sete anos no jornal, portanto, marca que costuma ser um marco. E acho que é. Ao todo, foram em torno de 360 colunas (provavelmente 363, para ser exato, considerando que publiquei em todas as semanas, salvo em uma, se a memória não me falha). É muito? Pouco? Depende da qualidade, creio. Modéstia à parte, acho que passo neste teste. De poucos textos me “arrependo”.

Lembro do dia em que recebi o convite. Tomava café num café qualquer, daqueles com mesa na calçada, no entorno da Biblioteca Pública, no centro do centro da cidade. Estava na companhia de um grande amigo, testemunha do convite, brindando comigo com nossas xicrinhas.

Não sou jornalista, não pertenço ao círculo dos “diz especialista” vindos do meio acadêmico, era apenas mais um escrevendo na internet. Se fui convidado, foi pelo que eu escrevia, mais do que qualquer outra coisa

Na hora, a sensação foi de milagre. Sim, milagre. Não sou jornalista, não pertenço ao círculo dos “diz especialista” vindos do meio acadêmico, era apenas mais um escrevendo na internet. Não faço ideia de qual era meu alcance e engajamento à época, mas certamente não justificava o convite. Havia outros bem mais “famosos”. Se fui convidado, foi pelo que eu escrevia, mais do que qualquer outra coisa.

Depois do espanto, meu olhar se perdeu por instantes atravessando as paredes e o teto da biblioteca, seguindo um fiapo de raio solar escapando das nuvens, que eram muitas. Como queria que meu pai estivesse vivo...

Já contei por aqui, mas agora faz mais sentido. Meus pais assinavam a Gazeta e, enquanto morei com eles, a primeira coisa que sempre fiz ao acordar, de piá de tudo a piá de menos um pouco, era ler os colunistas do jornal tomando café da manhã. Quando criança, não raro era eu a pegar o jornal deixado na porta da garagem de casa, adorando o nevoeiro. É sempre começo de inverno nessas minhas memórias.

Não resisti e fui procurar a coluna escrita sobre isso. Foi para a última edição de segunda-feira em papel da Gazeta do Povo. Uma das colunas de que mais gosto, aliás. Peço licença ao jornal para reprisá-la na íntegra aqui, aproveitando o espaço infinito do meio digital, pois, como escreveu Herman Broch em O Encantamento: “Naturalmente, isto não faz sentido em si, mas às vezes o ser humano precisa de marcos externos quando está numa caminhada interior”:

O assombro das manhãs

Quando eu era menino lá na cidadezinha de Curitiba meus dias começavam sempre iguais. Acordava cedo, pulava da cama e ia buscar os jornais entregues na frente de casa. Sempre esta Gazeta do Povo e a Folha de S.Paulo. Adorava ler tomando café da manhã. Começava, é claro, pelo caderno de esportes, depois ia para as colunas de opinião. Na verdade, mesmo na seção de esportes lia as opiniões antes de tudo.

Minha formação literária, se houve, foi feita pelos jornais, não pela escola. Ali cumpria tabela, só os jornais eu amava ler. E todos sabem que só se aprende quando se ama o que se aprende. Formação muito pobre, contudo e por óbvio, coisa que passarei a vida consertando, o que venho fazendo faz uns 20 anos, pelo menos. Ainda assim, foi uma formação melhor que a da escola, garanto.

Embora gostasse dos colunistas comentando as políticas miúdas do dia-a-dia, as importâncias aparentes do momento, o que eu amava mesmo era aqueles textos que escapavam do cotidiano e falavam, vá lá, da vida. Nunca me esqueci de uma coluna de Carlos Heitor Cony – meu colunista preferido durante muitos anos – escrita em 2003, quando eu já era homem feito, casado, e continuava lendo jornais no café da manhã – além dos colunistas e da parte de esportes eu lia também a de cultura, quando isso existia.

Toda vocação nada mais é do que a descoberta da resposta à pergunta “o que você quer ser quando crescer?”

A coluna tinha por título “O assombro das noites”, começando por falar de sua tia Zizinha rezando de madrugada e depois emendava em Otto Maria Carpeaux, com quem ele viajava o país dando palestras para diretórios de estudantes nos anos 1970. Adorava imaginar essas palestras, já que Carpeaux era gago e Cony falava mal. Mas o centro da coluna era sua lembrança de uma noite em Florianópolis, quando testemunhou Carpeaux ajoelhado na saleta anexa ao quarto do hotel, rezando, o que muito lhe espantou, pois achava que Carpeaux não tinha religião. Assim Cony terminava sua coluna: “Tia Zizinha... Carpeaux... Uma noite dessas, tomo coragem e fico de joelhos diante de meus espantos”.

Voltei a me recordar dessa coluna, de Cony, da minha infância, quando me sentei para escrever aqui na última edição impressa de segunda-feira da Gazeta do Povo. Sinto-me privilegiado por isso, ainda que num misto de tristeza e esperança. Sentirei imensas saudades do jornal em papel recebido em casa todos os dias. Ainda bem estou me acostumando à notificação do aplicativo com o texto do nosso editor dando conta do que vai na edição do dia e continuo a ler o jornal durante o café da manhã. Se mudou o meio, não mudará meu hábito.

Faz pouco mais de um mês completei um ano neste espaço. Lembro do dia em que recebi o convite, estava tomando um café na Boca Maldita com um grande amigo. Lembro de desligar o celular e lhe falar: “C..., aconteceu o sonho da infância”. Perdoem a confissão, mas é isso mesmo. E se escrevo, escrevo para aquele menino que um dia eu fui. Mais ninguém. Não há coluna que não escreva me imaginando lendo pela manhã de segunda. Se aquele menino sorri ou se espanta, sei que ficou bom – ao menos para mim.

Toda vocação nada mais é do que a descoberta da resposta à pergunta “o que você quer ser quando crescer?”. Nunca soube responder, ou achava que não sabia, embora parte dela estivesse próxima desde sempre, já cedinho, esperando no portão de casa. Eis um daqueles espantos que Cony desejaria ter coragem para ficar de joelhos. Pois eu fico, e agradeço.

* * *

E de joelhos continuo a agradecer. Que venham mais setênios. Por cá permanecerei enquanto o jornal me quiser. Já de escrever, não paro antes de morrer, seja onde for ou como for. Como agora, na beira da estrada, com o sol posto e a noite a deitar sobre a terra ao som das cigarras a me lembrar de uns versos de Cecília Meireles, no poema Aceitação: “Desenrolei de dentro do tempo a minha canção: / não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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