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Supremo Tribunal Federal, o STF, gostar de fazer acrobacias jurídicas de vez em quando, como no caso do passaporte vacinal.
A estátua da Justiça diante do prédio do Supremo Tribunal Federal.| Foto: Rosinei Coutinho/STF

Acho que já contei por aqui, mas como é preciso repetir e repetir – já que parecemos viver no eterno retorno da mesma história, como em Feitiço do Tempo, aquele filme já “clássico” em que Bill Murray acorda sempre no mesmo dia, todo dia –, vamos lá.

Quando fiz a faculdade de Direito, em meados da década de 1990, estava ainda no início uma transformação do nosso “arcabouço legal”. Perdoe as aspas, é só para garantir a distância entre mim e esse linguajar jurídico de que demorei tanto tempo para me livrar, mas que “ao fim e ao cabo”, e “não obstante” as aspas, até que consegui.

Em palavras mais compreensíveis: as leis estavam mudando. Já havia o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Código de Defesa do Consumidor (CDC), por exemplo, que fragmentaram muita coisa do então Código Civil, cada vez mais transformado em uma colcha de retalhos quase inúteis, até ser enfim substituído pelo novo Código de 2002.

Quem deveria se insurgir contra o ato antidemocrático do “Inquérito do Fim do Mundo” se calou, acabando por normalizar desde o berço a criação da distopia democrática em que vivemos

Mais do que mudar as leis, mudava-se também o espírito. Agora as normas se tornavam mais, digamos, flexíveis, cheias de “cláusulas gerais” e “conceitos jurídicos indeterminados” que não significam outra coisa a não ser deixar uma margem maior (por vezes imensa) para o juiz julgar conforme a circunstância e a contingência histórica. Em palavras mais compreensíveis: dava-se um poder maior ao juiz.

Na época me parecia uma boa ideia, ao menos me convenceram disso. Mas voltemos ao futuro, ao agora, em que aquela “oxigenação” jurídica, aquela modernização que diziam tão necessária, revelou melhor seus frutos (podres) na atuação dos atuais ministros do STF, que nem sequer respeitam as mínimas margens das leis e da Constituição para decidirem conforme lhes convier no momento.

É preciso inventariar com a devida minúcia todas as barbaridades que Suas Excelências têm cometido nos últimos anos, para o caso de um dia voltarmos ou nos permitirem contar essa história com um mínimo de compromisso com a verdade. Talvez um dia eu faça, se não houver mais repórteres em Berlim.

Interessa-me destacar apenas uma dessas barbaridades. Talvez a abertura do “Inquérito do Fim do Mundo”, assim chamado pelo ex-ministro Marco Aurélio Mello, não seja a primeira da série, mas desconfio que seja o momento em que as vestes da aparência de justiça foram rasgadas. Foi quando os ministros decidiram, com base em seu Regimento Interno, que a sede do tribunal não era apenas física, mas todo e qualquer lugar com sinal de internet.

kkkkkkk, wait? Is it serious?”, comentou um estrangeiro (qualquer um). Pois é, mas é. Entretanto, quem deveria se insurgir contra este ato antidemocrático (Congresso Nacional, o então presidente da República, a OAB, a imprensa, dentre outros atores menores) se calou, acabando por normalizar desde o berço a criação da distopia democrática em que vivemos.

Nesta semana, em um evento qualquer desses aí, o presidente da OAB de Minas Gerais parece que disse umas verdades na fuça do presidente atual do STF, que fingia que não estava dando atenção. A turma na plateia aplaudiu, ovacionou, as redes sociais ecoaram, aqui e acolá na imprensa isso foi noticiado. Depois da PEC aprovada no Senado (que ainda precisa passar pela Câmara), será sinal de que há uma reação mais consistente contra o abuso supremo? Não sei, só sei que o vídeo do evento já foi deletado das redes sociais, segundo o noticiário.

A grande imprensa parece que começa a se dar conta do poço em que se jogou por livre e espontânea vontade. Infelizmente, parece ser tarde demais

De tijolinho em tijolinho, a autocracia judicial vai se consolidando. O último colocado, acho que já estamos na fase de finalização do telhado (sim, telhado em autoritarismo é feito de tijolo), foi a decisão do STF responsabilizando o veículo de imprensa por falas de seus entrevistados. Creio não ser preciso explicar o que isso significa para a liberdade de imprensa e de expressão, mas, se for, melhor evitar a fadiga explicando coisas que devem ser extintas logo mais.

A grande imprensa parece que começa a se dar conta do poço em que se jogou por livre e espontânea vontade. Infelizmente, parece ser tarde demais. Quem aceitou que o STF transformasse o mundo em sua sede validou no mesmo ato que o tribunal decida o que pode ou não ser falado dentro da sua casa. Em breve, descobrirão que este poço tem um alçapão.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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