Cena do filme “Lindinhas”.| Foto: Netflix/Divulgação
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Tem uma cena no clássico The Good, The Bad and The Ugly (traduzido no Brasil como Três Homens em Conflito), de Sergio Leone, pouco antes do final icônico, em que os personagens de Clint Eastwood (the good) e Eli Wallach (the ugly) assistem a uma batalha épica entre os exércitos do Sul e do Norte na Guerra Civil dos EUA, com centenas de soldados morrendo, e o “the good” comenta: “Nunca vi tantos homens sendo tão mal desperdiçados”. É o que penso toda vez que entro no Twitter e assisto a um dos infindos combates da guerra cultural que nos devasta.

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Uma das lutas em andamento acontece em torno do enfim lançado filme Lindinhas (Mignonnes), na Netflix. A culpada pela confusão é a própria Netflix, que, embora tenha pedido desculpas públicas e à diretora do filme, segue com uma sinopse mentirosa a respeito da história. Caso não saiba, leitor afortunado e agora não mais, a Netflix promoveu o filme com um cartaz apelativo com crianças em poses sensuais e roupas mínimas passando a impressão de ser uma obra elogiosa à hiperssexualização infantil, com a sinopse dizendo que a protagonista de 11 anos se rebela contra sua família muçulmana e encontra seu lugar num grupo de dança da escola.

Mas isso não acontece na história. A menina não encontra seu lugar no tal grupo de dança que, ao contrário do que se dá a entender pela sinopse, o filme retrata como sendo um problema até maior que o da família de origem. A história, na verdade, é sobre uma criança crescendo entre duas culturas, a muçulmana de origem e a ocidental liberal de fio dental que hiperssexualiza as crianças pela exposição constante a coisas como o grupo de dança que atrai a protagonista do filme.

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A mensagem de Lindinhas é uma defesa da necessidade de preservação da infância. O filme deveria assistido antes de ser criticado

Sim, você leu direito: o filme é o oposto do que acham que é. A hiperssexualização é retratada pelo mal que faz, não como um elogio contra o “conservadorismo religioso” ou algo assim. Isso não significa que é laudatória do islamismo, pelo contrário. Há dois dramas paralelos na história: o da menina que vai se integrando à sociedade virtual de likes e se dá muito mal com isso, e o da filha que assiste a seu pai se afastar, decidir se casar com uma segunda esposa e vê sua mãe sofrendo por isso, revoltando-se com a “regra do jogo” religioso que faz com que a mãe aceite a nova condição.

No fim, a mensagem do filme é uma defesa da necessidade de preservação da infância, com a menina voltando a ser criança. Nada mais distante, portanto, do griteiro imbecil das redes sociais. Que a Netflix merece apanhar pela estupidez cometida, merece; mas não o filme, que deveria ser é assistido antes de ser criticado. Quem o fizer terá sua atenção despertada para o que está escancarado para qualquer pai e mãe que tenha filha dessa idade, do quanto a hiperssexualização está por toda parte e muito graças às redes sociais e aos modelos adotados pelas meninas, das cantoras, atrizes, dançarinas e celebridades em geral que apelam o tempo todo mais para o sex appeal que ao próprio talento, quando existente. Passeie pelo Instagram e veja se não é assim.

Volto à cena da batalha no filme de Leone e me ajeito ao lado de Eastwood. Os exércitos rivais correndo para se enfrentar nas redes sociais, digo, sobre uma ponte. Se tem algo que os filmes de Leone ensinam é o quanto não vale a pena entrar em guerras assim, que a vida deveria ser outra coisa. Também em Quando Explode a Vingança e Era Uma Vez Na América, as questões políticas, revoluções, são sempre parte do cenário, das circunstâncias, mas os protagonistas não se comprometem com agendas e crenças, aproveitando-se quando possível, padecendo quando inevitável, mas sempre buscando outros objetivos, na maioria tampouco meritórios, mas enfim. Eles decidem explodir a ponte. Bem que fazem. Faço o mesmo, desisto do Twitter e me vou com eles para o cemitério onde se dá a magistral cena final.

Talvez seja a cena de filme mais assistida da história. Não só pelas décadas de shows do Metallica utilizando-a nas suas introduções, mas também pelas inúmeras cópias em outros filmes, sem esquecer os inúmeros memes gerados dos closes nos atores no duelo final. Seja como for, quem assiste jamais se esquece. Como os cinco amigos fãs do filme que decidiram recriar o cemitério no local onde foi construído pela produção, no interior da Espanha. O trabalho foi imenso, precisaram de ajuda de muita gente, mas conseguiram, recriando o cemitério cujas cruzes levam os nomes de outros fãs que ajudaram financeiramente para que a empreitada acontecesse. Tudo foi registrado e se tornou o ótimo documentário Sad Hill Unearthed, igualmente disponível na Netflix.

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Conseguiram terminar o serviço a tempo de celebrar os 50 anos do filme, montando um telão para o reverem no centro do cemitério. Conseguiram levar um dos editores da obra e houve depoimentos do gênio Ennio Morricone, James Hetfield (vocalista do Metallica) e, claro, Clint Eastwood, que também participaram do documentário. A emoção dos realizadores é comovente ao serem surpreendidos com as falas dos três, agradecendo pelo trabalho. Um deles perdeu o pai quando estava trabalhando ali. Na cruz que levaria seu nome, trocou-o pelo nome do pai. Dos momentos mais belos do documentário. E você pode se perguntar: para que um trabalho desses? Para que recriar algo que nem sequer existiu? Um cemitério que não é cemitério? Cinco mil “túmulos” sem nada enterrado? Para quê?

Por todo o documentário há falas deles, das celebridades citadas e outros comentando sobre isso. Hetflied, por exemplo, disse que não precisa de explicação; seria o desejo de devolver algo como ação de graças. Outro, o cineasta Joe Dante, respondeu que é pela necessidade humana de participar de algo eterno: “É a razão pela qual restauramos filmes, guardamos negativos, para nada se perder. Vivemos num mundo efêmero”. De fato, efêmero como a infância, que para mim explica o que moveu os cinco fãs. Todos assistiram ao filme quando crianças, ao lado de pais e avôs. Só houve a restauração do set de filmagem porque preservaram os meninos que um dia foram. Com isso, fizeram de um cemitério não o lugar da morte, mas o da vida eterna, pois, como disse Goethe: “A vida é a infância da imortalidade”.