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O papa Bento XVI durante a Jornada Mundial da Juventude de 2011, em Madri (Espanha).
O papa Bento XVI durante a Jornada Mundial da Juventude de 2011, em Madri (Espanha).| Foto: Alberto Martin/EFE

No seu Discurso ao Parlamento Alemão (Palácio Reichstag), em setembro de 2011, o papa Bento XVI definiu, em poucas palavras, a natureza da política e, com isso, traçou um critério para identificar sua antípoda, a tirania: “A política deve ser um compromisso em prol da justiça e, assim, criar as condições de fundo para a paz”. Nesse sentido, a tirania seria o compromisso em prol do poder, criando assim as condições de fundo para a violência – sempre legitimada como “necessidade de Estado”. O sucesso de um político, nesses termos, só faz sentido quando subordina sua vontade à objetiva realidade da justiça, e não falsificando o direito como expressão de seu poder.

Mesmo com o coração dominado pelas melhores intenções, uma ação não se torna justa só porque o político tem o poder ilimitado de decretá-la como justa. É exatamente o oposto: o político só tem o poder de decretar em virtude da realidade da justiça, que limita todo poder de sua ação. Não é justo porque ele ordena; ele ordena porque é justo. Como analisa o papa, “naturalmente um político procurará o sucesso, sem o qual não poderia jamais ter a possibilidade de uma ação política efetiva; mas o sucesso há de estar subordinado ao critério da justiça, à vontade de atuar o direito e à inteligência do direito”. Isto é: a excelência política não está subordinada à sua mera boa vontade, uma vez que “o sucesso pode tornar-se também um aliciamento, abrindo assim a estrada à falsificação do direito, à destruição da justiça”.

Uma ação não se torna justa só porque o político tem o poder ilimitado de decretá-la como justa. É exatamente o oposto: o político só tem o poder de decretar em virtude da realidade da justiça, que limita todo poder de sua ação

Recorrendo à famosa sentença de Santo Agostinho acerca da definição de Estado – que obedece à lógica do corrompido amor sui –, Bento XVI chama a atenção para o fato de que “se se põe de lado o direito, em que se distingue então o Estado de uma grande quadrilha de bandidos?” E conclui, apresentando, assim, uma nítida – porém difícil – diferença entre o político e o tirano: “Nós, alemães, sabemos pela nossa experiência que estas palavras não são um fútil espantalho. Experimentamos a separação entre o poder e o direito, o poder colocar-se contra o direito, o seu espezinhar o direito, de tal modo que o Estado se tornara o instrumento para a destruição do direito: tornara-se uma quadrilha de bandidos muito bem organizada, que podia ameaçar o mundo inteiro e impeli-lo até à beira do precipício. Servir o direito e combater o domínio da injustiça é e permanece a tarefa fundamental do político”.

O tema não é uma invenção de Bento XVI. Na República, o famoso diálogo sobre a justiça, cujo tema é também a crise na pólis como expressão da crise da alma, Platão enfrentou o desafio proposto por Trasímaco de que a justiça não passa da conveniência do mais forte. Trasímaco é o sofista, representante da alta intelectualidade política da época, que Platão coloca no Livro I da República como aquele a desafiar o velho Sócrates, para cuja filosofia moral-política vale o preceito, um tanto otimista, de que ninguém erra voluntariamente.

Em Platão a pergunta é simples: o que é justiça? No diálogo com Sócrates, Trasímaco radicaliza a definição ao colocar a justiça apenas no terreno da política – entendida aqui como terreno exclusivo do poder (tese que só será retomada com Maquiavel mil anos depois). Em poucas palavras, a perturbadora tese de Trasímaco pode ser definida assim: “justiça é o conjunto de normas e de vínculos que quem detém o poder impõe a seus súditos, com o objetivo da manutenção do próprio poder”, como resume o historiador da filosofia Mario Vegetti.

Se justiça é só o exercício e a manutenção do poder, objeta Sócrates, “não pode haver qualquer sociedade, sequer uma sociedade de predadores e de ladrões”. Com efeito, é sempre necessário um “mínimo de consentimento em torno de normas de ‘justiça’ comuns e compartilhadas” – uma “comunidade de bandidos” seria um contrassenso. Caso contrário, segundo a famosa crítica platônica aos sofistas, justiça não passa de um nome vazio para indicar apenas relações de poder, a qual, sem grandes dificuldades, não passa de relação de submissão: a do mais fraco sob o mais forte (isso para não mencionar o problema do servilismo, que é a autossubmissão). Sócrates, já platonizado, indicava, com isso, a violência inerente a esse tipo de democracia regida pelas teses relativistas e niilistas dos sofistas – que continuam sendo, depois de dois milênios, a nossa tentação.

Na lapidar frase de abertura de seu novo livro, Sobre a tirania, o historiador americano Timothy Snyder diz: “a história não se repete, mas ensina”. E o que nos ensina a história a não ser que a política também é a história da usurpação do poder por uma única pessoa ou um grupo, ou, como diz Snyder, “a violação da lei pelos governantes em benefício próprio”? Embora limitado às lições do século 20, é com este espírito que o autor de Terras de sangue e Terra negra convida o leitor a “recorrer à história quando a nossa [atual] ordem política está em perigo”. Pois, assim como o passado tem exemplos de pessoas más praticando o mal, nós também temos o exemplo de pessoas que se opuseram com bravura contra a tirania.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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