Os personagens Jesse Brown (à esquerda, interpretado por Jonathan Majors) e Tom Hudner (à direita, interpretado por Glen Powell) em cena de “Irmãos de honra”, ambientado na Guerra da Coreia.| Foto: Divulgação
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O filme Irmãos de honra, que tem por título original Devotion, foi lançado nos cinemas do Brasil no dia 8 de dezembro deste ano. Ele tem perfil similar do grande lançamento deste ano, Top Gun: Maverick, que também foi matéria desta coluna.

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Inspirado num best-seller

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Estrelado por Glen Powell (que também atuou em Top Gun Maverick), interpretando o tenente Thomas Jerome Hudner Jr., e Jonathan Majors, em ótima atuação, interpretando o guarda-marinha Jesse LeRoy Brown, o filme foi baseado em fatos reais, em eventos ocorridos na “guerra esquecida”, a Guerra da Coreia, que durou de 25 de junho de 1950 a 27 de julho de 1953, e foi a única vez em que norte-americanos e seus aliados ocidentais, como Grã-Bretanha, Austrália e Grécia, se defrontaram no campo de batalha contra soldados e aviadores da União Soviética e China comunista, além dos militares da Coreia do Norte. O filme é baseado no livro Devotion: An Epic History of Heroism, Friendship, and Sacrifice, escrito por Adam Maklos, autor de vários livros sobre história militar, tais como o ótimo O amigo alemão, que trata da improvável amizade entre o segundo-tenente Charles Brown, da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos, e o tenente Franz Stiegler, ás da Luftwaffe alemã, com 28 vitórias aéreas na Segunda Guerra Mundial. A história destes dois pilotos foi dramatizada num clip animado do grupo sueco de heavy metal Sabaton.

A crueldade do racismo

Irmãos de honra conta a história do guarda-marinha Jesse Brown – o único piloto afro-americano no VF-32, esquadrão de caça da aviação naval da Marinha dos Estados Unidos, conhecido como “Fighting Swordsmen” – e do recém-chegado tenente Tom Hudner Jr.. Eles desenvolvem uma sólida amizade após uma inicial hostilidade de Brown, desconfiado de tudo e de todos, por causa de sua luta com o racismo na Marinha. Enquanto Hudner é solteiro, Brown, criado em uma igreja protestante, tem uma esposa chamada Daisy, interpretada por Christina Jackson, e uma filha, chamada Pamela. Aliás, os dois se conhecem quando, ainda na Estação Aérea Naval de Quonset Point, Hudner encontra Brown no banheiro, proferindo palavras ofensivas ao espelho enquanto olha para si mesmo; mais à frente, Brown conta que essas ofensas foram desferidas para si; ele as anotara em um caderno e tem o hábito de recitá-las para si enquanto se observa no espelho do banheiro, para se motivar no treinamento.

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Brown em momento algum se vitimiza ou usa as ofensas sofridas como justificativa para fazer algo errado ou validar algum outro tipo de reação intensa que venha a ter consequências ruins, ainda que as dores das ofensas e do racismo o atinjam

Assim, um dos temas ressaltados pelo filme é o racismo; Brown sofre hostilidade dos próprios colegas de farda, bem como de militares de outras forças. Hudner sempre sai em defesa do amigo, mas é sempre reprovado por Brown. Um fato perceptível é que Brown em momento algum se vitimiza ou usa as ofensas como justificativa para fazer algo errado ou validar algum outro tipo de reação intensa que venha a ter consequências ruins, ainda que as dores das ofensas e do racismo o atinjam. Exatamente por ser subestimado pelos superiores e pares, ele usa a raiva como fator motivacional para se impor disciplina e superação no que tange a sua missão como marinheiro aviador, buscando a excelência no que se propôs a fazer. Digno de nota é o fato de Brown ser o primeiro afro-americano a completar um curso de piloto naval da Marinha americana.

O filme se inicia um pouco antes da Guerra da Coreia, nos estágios iniciais da Guerra Fria, quando o porta-aviões em que seu esquadrão opera, o USS Leyte, é destacado para patrulhar o Mar Mediterrâneo por causa de uma possível agressão soviética naquela área. Aliás, o VF-32 operava o icônico Chance-Vought F4U-4 Corsair, uma das melhores e mais longevas aeronaves em pistão usadas por forças militares, usada sobretudo como caça na Segunda Guerra Mundial e, na Coreia, usada em missões de ataque ao solo.

A questão do racismo retorna quando o porta-aviões atraca em Cannes, na França. Num momento de recreação, Brown, passeando pela praia, conhece a famosa e premiada atriz Elizabeth Taylor, interpretada por Serinda Swan, e é convidado para levar seus colegas a um cassino. Desconfiados, ainda assim os colegas aceitam o convite, mas são impedidos de entrar. Brown novamente é alvo de preconceito do recepcionista, que fica desconcertado quando Brown lhe conta – em francês, que ele havia aprendido na escola – quem o convidou. E, depois que Hudner entra em uma briga com um fuzileiro naval que já havia assediado Brown, este diz a Hudner que não lute suas batalhas por ele, mas simplesmente que esteja nas batalhas por ele.

A mais sangrenta batalha da guerra esquecida

A história, então, se move para a Guerra da Coreia, que começou em 25 de junho de 1950, quando os exércitos da Coreia do Norte, estimulados por Josef Stálin e equipados pela União Soviética, invadiram a Coreia do Sul. O USS Leyte é transferido para a região, em 6 de setembro de 1950, para se unir à Força Tarefa 77; em novembro o VF-32 estava operando nos céus coreanos num momento muito crítico para as forças da ONU na campanha, quando os exércitos da China comunista, em muito maior número, atacaram de surpresa as tropas ocidentais que já ocupavam praticamente todo o norte da Coreia.

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Quando em missão nos céus da Coreia, o esquadrão tem em Brown um aviador audacioso e corajoso que não mede riscos ao colocar a própria vida em risco para o cumprimento da missão. A principal delas era prestar apoio aéreo para a 1.ª Divisão de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, sitiada no Reservatório de Chosin, com tropas do Exército dos Estados Unidos e Fuzileiros Reais britânicos. Esta foi uma batalha brutal, que durou 17 dias em um clima gelado, quando 30 mil militares ocidentais, mais tarde apelidados de “Os Poucos de Chosin”, sob o comando do major-general Oliver P. Smith, foram cercados e atacados por 120 mil soldados chineses, que haviam recebido ordens do sanguinário ditador Mao Tsé-tung para destruir as forças da ONU na Coreia. A Força-Tarefa Faith, do exército norte-americano, elemento-chave em cobrir o recuo das demais tropas ocidentais, foi completamente destruída pelas hordas chinesas, mas as demais forças da ONU conseguiram romper o cerco e operar uma retirada, combatendo selvagemente até chegar ao porto de Hungnam, onde foram evacuados pela Marinha dos Estados Unidos para lutar noutro dia.

Na longa retirada, as tropas ocidentais infligiram pesadas baixas aos chineses. Enquanto as forças da ONU tiveram cerca de mil mortos e 5 mil soldados desaparecidos, os chineses comunistas sofreram cerca de 30 mil mortos e desaparecidos no combate. A Batalha do Reservatório de Chosin é considerada por alguns historiadores como a mais brutal da guerra moderna pela violência, taxa de baixas, condições climáticas e resistência. S.L.A. Marshall chamou-a de “o mais violento combate travado por pequenas unidades [das forças americanas] na história da guerra americana”. Nessa batalha, que entrou para os anais do Corpo de Fuzileiros dos Estados Unidos, junto com Belleau Wood, Guadalcanal, Tarawa, Peleliu, Iwo Jima e Okinawa, foi proferida a famosa frase “recuar o inferno! Estamos apenas atacando em outra direção”. A batalha ilustra a força, esprit de corps, orgulho, profissionalismo e heroísmo dos Fuzileiros Navais dos Estados Unidos.

Morte na neve

E foi justamente na batalha do Reservatório de Chosin que o Corsair de Brown foi atingido e ele foi forçado a fazer um pouso forçado, em uma clareira nas montanhas da Coreia do Norte, próximo do campo de batalha. Hudner percebeu que Brown estava vivo, mas preso em sua carlinga; deliberadamente, e contra ordens diretas, aterrou sua própria aeronave na clareira para ajudar Brown. Embora tenha conseguido apagar o incêndio no motor do Corsair, Hudner não conseguiu extrair Brown dos destroços. O helicóptero HO5S-1, de busca e resgate da Marinha, chegou ao lugar da queda, mas Brown não resistiu e morreu preso nas ferragens da aeronave em 4 de dezembro de 1950. Brown se tornou o primeiro oficial afro-americano da Marinha dos Estados Unidos a morrer numa guerra.

Em tempos de flexibilidade moral e ausência de resiliência, Irmãos de honra é um alento para aqueles que são sensíveis à busca pela verdade, coragem, beleza e integridade

Hudner, bastante emocionado, fez de tudo ao seu alcance para tentar salvar o amigo, e esse é o momento mais tocante do filme. Ali, vemos o ápice que faz justiça ao subtítulo do livro que serviu de base para o filme: heroísmo, amizade e sacrifício. Hudner renuncia ao instinto de proteger sua própria vida para salvar o amigo, a quem, a pedido da esposa, prometeu cuidar enquanto estivesse embarcado. De volta ao USS Leyte, o comandante de Hudner determina que seria muito arriscado tentar recuperar o corpo de Brown na área controlada pelos chineses, e o restante do esquadrão é enviado para destruir com napalm os Corsairs abatidos, com o cadáver de Brown ainda dentro de um deles. Segundo se conta, os pilotos recitaram o Pai Nosso no rádio enquanto observavam o corpo de Brown ser consumido pelas chamas.

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O fim do filme apresenta fotos dos personagens reais e revela a informação de que Hudner, que recebeu a Medalha de Honra do Congresso por suas tentativas de salvar Brown, lutou por toda a sua vida para trazer o corpo de Brown de volta para os Estados Unidos, chegando a ir à Coreia do Norte, em 2013. Brown recebeu postumamente a Distinguished Flying Cross (Cruz de Voo com Distinção). Os descendentes das duas famílias permanecem amigos até hoje. Powell, que leu o livro de Adam Makos quando foi lançado em 2015, visitou Tom Hudner pouco antes de ele falecer, em 2017. Powell ficou impressionado com as fotos e lembranças de Jesse Brown pela casa, comentando: “Eu percebi o peso que estava sobre ele. Não era uma comemoração, era uma lembrança constante de um amigo que ele perdeu, e eu tentei carregar esse peso neste papel”. Em 2012 a Marinha dos Estados Unidos batizou um destroier da classe Arleigh Burke como USS Thomas Hudner, e uma fragata da classe Knox foi batizada em 1972 como USS Jesse L. Brown.

Equilíbrio entre drama e realismo

São ressaltados no filme o patriotismo, o heroísmo, o sacrifício, a lealdade, a fidelidade e a família, bem como a superação dos limites e a real masculinidade. O filme é bastante tocante, emocionalmente falando, e oferece ao espectador um imaginário robusto de virtudes e valores. As sequências do relacionamento entre Hudner e Brown são tocantes e convincentes, fornecendo boas percepções sobre a dicotomia entre solidão e fraternidade que a guerra proporciona. Isso – junto com a ótima atuação dos atores, direção visual e trilha sonora – torna Devotion um filme cativante. Sobretudo, lida com o racismo com classe e foco, mostrando como a camaradagem militar e a amizade entre os dois pilotos ultrapassou as limitações das divisões raciais, mas não as encobriu. Também se pode perceber as múltiplas perspectivas que os dois personagens podem ter experimentado durante seu serviço militar na Guerra da Coreia, o que ressalta o caráter respeitoso do filme, uma verdadeira fusão de história, drama e ação, recriando de forma realista os acontecimentos da época. No entanto, este filme poderia ter se saído melhor como uma minissérie, ampliando as cenas de batalha e expandindo a história de Brown, além de explorar a camaradagem dos demais pilotos do VF-32 durante a guerra.

A diferença entre Top Gun: Maverick e Devotion, que abordam a aviação embarcada da Marinha dos Estados Unidos, é que o primeiro é um filme ficcional com mais ação, enquanto o segundo, baseado em fatos, é um drama focado na amizade entre os pilotos navais e no ambiente cultural no qual estavam inseridos, com menos cenas de combates aéreos, mas com foco na vida pessoal dos dois personagens. Ainda assim, todas as aeronaves que aparecem no filme são reais: F4U-4 Corsair, AD Skyraider, F8F Bearcat, o helicóptero HO5S-1 e o temível caça a jato soviético MiG 15. E as cenas de batalha são muito bem filmadas. Acima de tudo, Hudner e Brown são retratados como verdadeiros heróis. Filmes como este nos ajudam a conhecer a história da cultura americana e a vida de seus soldados no front. Eles são os verdadeiros heróis, e são esses filmes que nos ajudam a perceber o quão difícil é a vida de um verdadeiro militar no front, o impacto da guerra sobre eles e suas famílias, e por que os veteranos devem ser respeitados e homenageados.

Rapidamente retirado dos cinemas, o filme estará disponível em streamings para alugar e será um programa muito agradável e valoroso para as famílias. É uma ótima história de heróis de uma guerra esquecida, sobre uma amizade baseada em uma relação de confiança. É um filme sobre dois heróis e seu dever para com seu país. Desejamos a todos uma ótima sessão do filme. Em tempos de flexibilidade moral e ausência de resiliência, essa história em forma de filme é um alento para aqueles que são sensíveis à busca pela verdade, coragem, beleza e integridade.

(Este texto foi preparado em coautoria com Juan de Paula Siqueira, pastor da Igreja Batista do Redentor, no Rio de Janeiro.)

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Coluna em férias até o início de fevereiro

O colunista deseja boas festas e ótimo ano novo a todos os seus leitores! Os textos dessa coluna retornarão em 2 de fevereiro de 2023.

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