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Passou o carnaval e o ano “começou”, como se diz por essas terras; estamos na quaresma e caminhando para a Páscoa. É um tempo especial para os cristãos, e que anualmente clama por sua atenção; mas devo admitir que neste ano atípico será mais difícil obtê-la, esticados como estamos entre os terrores políticos e geopolíticos. As eleições presidenciais de outubro têm o aspecto de um pequeno fim-do-mundo, e a guerra de Putin evoca graves medos apocalípticos.
Mas não vamos nos entregar ao desespero. Entre as luzes trazidas pela Páscoa, uma das mais brilhantes é a descoberta de que a ordem escatológica governa a ordem histórica. Mudanças geopolíticas, colapsos civilizacionais e grandes transformações históricas não escapam ao controle da providência e formam, antes, o substrato do tempo escatológico, que é a condução da história de modo a convergir em Jesus Cristo.
Pense naquelas imagens artísticas, os fotomosaicos, criados em 1993, com uma grande imagem sendo formada a partir de milhares de pequenas fotos, cada uma fazendo as vezes de um pixel. Não é a melhor analogia possível, mas serve: cada fenômeno histórico, como se dá também com os fenômenos da natureza, tem sua lógica e sua causalidade interna; as conquistas de Alexandre e depois a hegemonia imperial romana sobre muitos povos seguiram sua lógica histórico-formativa puramente terrena, essa que historiadores tentam esclarecer. Mas a providência usou a universalidade greco-romana como preparação para a catolicidade de Cristo e como vetor do seu evangelho. Os atos dos homens e os fenômenos da história são como pixels e camadas de tom num desenho que a providência tornará nítido no tempo certo.
Na tradição hebraica isso é belamente representado, por exemplo, na história de José: vendido como escravo pelos irmãos, atirado de um lado para o outro por forças políticas e histórias além da sua compreensão. O patriarca se viu de repente o próprio braço direito de Faraó e o resgatador de seus irmãos traidores. Misteriosamente, segundo admite o próprio José, até mesmo a maldade dos seus irmãos ganhou um lugar na tapeçaria e um sentido benigno nas mãos divinas.
Assim, enquanto as criaturas fazem suas coisas e lutam entre si, a providência faz outras coisas, maiores e mais abrangentes. Putin é como o Faraó do Egito; e os que sofrem sob sua opressão são como os infelizes hebreus antes de Moisés. Não sabemos como e quando a justiça de Deus virá, mas sabemos que os fios soltos da história não estão soltos. A providência costura seu plano usando cada um deles.
Colocando as coisas desse modo, fica mais clara a importância da Páscoa, precisamente em tempos assim. Quando a desordem do mundo se acentua, a esperança precisa de algo mais do que otimismo e bons palpites, e a história da Páscoa faz transparecer a própria mão que governa o tempo. Considere a amplitude e o assombroso contraste nessa história: um homem insignificante, oriundo da periferia (Nazaré), sendo esmagado pela roda do poder político e então... ressuscitando dos mortos para anunciar um novo reino indestrutível; e uma crescente comunidade que perde o medo desses poderes, e que passa a agir como consciência crítica, moderadora e testemunha perpétua contra a sua hegemonia. Os poderes terrenos nunca mais tiveram sossego.
O caso é que ninguém sabia em que Jesus Cristo enfim se tornaria. Os romanos, em particular, não faziam a menor ideia de com quem estavam lidando. Deus estava presente agindo, o tempo inteiro, mas sua presença sutil foi ignorada. Só uns poucos, muito atentos, pescaram alguma coisa. Como ninguém sabia, também, o que Deus faria por meio de José, nem seus irmãos que o venderam como escravo, nem os Egípcios, e nem ele mesmo. A presença ignorada de Deus é a humilhação dos arrogantes, que pensam controlar a história com seus Pilatos, suas cruzes, seus aparatos estatais e suas bombas atômicas, mas ao fim e ao cabo são pixels. Não importa o que eles façam, não deixam nem por um instante de ser meros fios na tapeçaria de Deus.
Eis porque importa celebrar a Páscoa e meditar sobre ela durante todo o caminho da quaresma. Esses grandes momentos nos quais o mundo e a história tornaram-se transparentes, a ponto de divisarmos, espantados, a mão da providência em plena atividade, são necessários para enfrentarmos os outros momentos nos quais essa mão se oculta. Rememorá-los é preciso, com toda a diligência. A Páscoa nos faz entender que às vezes Deus parece ausente, mas na verdade está apenas escondido das nossas vistas, sutilmente costurando a sua tapeçaria. É por isso que nem a guerra é maior do que a Páscoa.