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Detalhe de "Moisés e Aarão diante do Faraó", de Giuseppe Diziani.
Detalhe de “Moisés e Aarão diante do Faraó”, de Giuseppe Diziani.| Foto: Reprodução

“Eu sou o Senhor. Eu vos tirarei do trabalho forçado sob os egípcios, vos livrarei da escravidão e vos resgatarei com braço estendido e com grandes feitos de juízo. Eu vos tomarei por meu povo e serei vosso Deus; e sabereis que eu sou o Senhor vosso Deus, que vos tiro do trabalho forçado sob os egípcios.” (Êxodo 6,6-7)

Estamos às portas da Páscoa, a grande festa judaica e cristã que celebra a manifestação do Deus Redentor. Esse é o ponto do ano em que as duas religiões mais se aproximam, num sentido, e mais se separam, em outro. Os judeus celebram o Êxodo, a libertação dos hebreus da escravidão no Egito. Já os cristãos, no seu entendimento, celebram o Novo Êxodo, no qual Deus os libertou de outro “Egito”, no sentido figurado, e os pôs a caminho de outra “terra prometida”.

A Páscoa tem um imenso significado religioso para judeus e cristãos, mas nem todos têm clara consciência do seu significado político. Por outro lado, há quem empregue a história do Deus libertador como uma metáfora, apenas, da libertação política, ignorando completamente o sentido religioso da história. A verdade, no entanto, é que essas duas coisas não podem ser separadas, como vamos destacar aqui.

Mas, primeiro, é mister relembrar a história – e, para os que pouco sabem sobre ela, é uma oportunidade para se informar a respeito. Afinal, a festa já é na semana que vem!

A origem da Páscoa

A origem da celebração judaica está em uma ceia carregada de sentido e emoção que Deus teria ordenado aos hebreus, por meio de Moisés, na mesma noite em que a última das Dez Pragas (a morte dos primogênitos) caiu sobre a nação opressora. Para essa ceia, descrita em Êxodo capítulo 12, cada família matou um cordeiro, passou o sangue nos umbrais de suas portas, e comeu a carne assada com pães sem fermento e ervas amargas.

“E vós o comereis assim: com vossos cintos na cintura, vossos sapatos nos pés e vosso cajado na mão; e o comereis às pressas. Esta é a Páscoa do Senhor. Porque naquela noite passarei pela terra do Egito e ferirei de morte todos os primogênitos na terra do Egito, tanto dos homens como dos animais; e executarei juízo sobre todos os deuses do Egito. Eu sou o Senhor.” (Êxodo 12,11-12)

O trecho transmite algo profundamente dramático, uma sensação de ansiedade, de correria, de uma assombrosa transição, com algumas coisas ficando de repente muito velhas e obsoletas: os lugares de servidão, as amizades e inimizades com egípcios, as belas cebolas e alhos do lugar (das quais os próprios hebreus lamentariam de saudades semanas depois), suas velhas casas e lembranças... Em uma noite tudo aquilo ficaria para trás.

A Páscoa tem um imenso significado religioso para judeus e cristãos, mas nem todos têm clara consciência do seu significado político

Mas havia a ansiedade com o novo: o fim da escravidão, o fim da obrigação de cultuar Faraó e seus deuses, o fim do genocídio hebreu. Imagine o turbilhão de sentimentos no peito e no ventre daqueles hebreus enquanto se esforçavam para dar conta do cordeiro assado! Horas depois eles estariam com o pé na estrada.

No período da Páscoa judaica se deram os eventos fatídicos que culminaram com a morte de Jesus, há quase 2 mil anos, num julgamento problemático que implicou lideranças religiosas de Jerusalém, a realeza local e o próprio governador romano da Judeia. Segundo os relatos de testemunhas oculares e da Igreja primitiva, depois de celebrar uma ceia pascal judaica, Jesus anunciou sua morte iminente e ordenou a seus discípulos que repetissem essa ceia como norma perpétua.

Segundo o relato dessas testemunhas, ao constatar que Jesus havia ressuscitado (para os que perderam essa parte da notícia, recomendo a obra A Ressurreição do Filho de Deus, de N.T. Wright, bispo anglicano e atualmente professor em Oxford), seus discípulos entenderam que aquela ceia não era apenas mais uma ceia judaica. Cristo havia se oferecido como cordeiro pascal, e instituído uma nova ceia pascal, que os cristãos passariam a chamar de “eucaristia”; e por sua morte e ressurreição ele havia inaugurado um novo Êxodo. Esse novo êxodo é recapitulado por cada cristão em seu batismo, que o transporta do império – Babel, ou o Egito, ou Roma – para o reino de Deus.

Êxodo e política

“Desde o fim da Idade Média e do princípio dos tempos modernos, tem existido no Ocidente um modo característico de pensar sobre a mudança política, um padrão que comumente impomos aos eventos, uma história que repetimos uns aos outros. A história tem, grosso modo, a seguinte forma: opressão, libertação, contrato social, luta política, nova sociedade (e perigo de restauração). Nós chamamos todo esse processo de revolucionário, embora os eventos não concluam um círculo a não ser que a opressão seja trazida ao fim; intencionalmente, ao menos, apresentam um forte movimento para frente. Essa história não é contada em todos os lugares; não é um padrão universal; ela pertence ao Ocidente, mais particularmente aos judeus e cristãos do Ocidente, e sua fonte, sua versão original, é o Êxodo de Israel do Egito.” (Michael Walzer, Exodus and Revolution).

Se celebramos a Páscoa atentos ao seu sentido religioso, como memória comunitária, já andamos metade do caminho. É um grande avanço em relação às pobres mentes que se ocupam de ovos de chocolate nas calendas de abril. Mas essa ainda não é a jornada completa. A Páscoa é um momento maravilhoso para os pequenos, e uma ameaça latente para os grandes. Porque seu assunto é, basicamente, a ruptura do poder. E muitos cristãos, em parte por sua proximidade com o poder, evitam pensar no assunto.

A observação de Michael Walzer, o conhecido cientista político de Princeton, deve ser levada em conta enquanto refletimos sobre o significado do Êxodo para a presença pública cristã. Ela nos informa de que, na verdade, ele já tem um lugar fundamental na imaginação política ocidental, independentemente do que se pense sobre a autoridade da Bíblia ou sobre a forma correta de interpretá-la. Como Walzer mostra, mesmo com a secularização da política, a subestrutura narrativa de todas as políticas radicais, de revolução ou de emancipação é a história do Êxodo, de libertação, contrato social, luta política, nova sociedade.

Um Deus libertador?

Uma coisa seria termos um relato puramente revolucionário, tendo à frente Moisés, como um político radical. Mas, se considerarmos o relato bíblico, havia menos ideologia e menos articulação estratégica do que o revolucionário moderno gostaria de encontrar. E a razão para tanto é clara como o dia: quem fez a revolução, no caso, foi Deus mesmo. Isso tornou o fato inteiro um grande evento de revelação. Diferentemente de um projeto político que usa a religião, temos aqui o nascimento de uma religião da libertação. Consideremos o que o texto sagrado diz sobre Deus. Ele se manifesta a Moisés como um Deus que compreende e que se importa com o sofrimento humano:

“Então o Senhor disse: Tenho visto a opressão sobre o meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus opressores; conheço os seus sofrimentos. Eu desci para livrá-lo dos egípcios e levá-lo daquela terra para uma terra boa e espaçosa, uma terra que dá leite e mel; o lugar do cananeu, do heteu, do amorreu, do perizeu, do heveu e do jebuseu. O clamor dos israelitas chegou a mim; e também tenho visto a opressão com que os egípcios os oprimem. Agora, portanto, vai. Eu te enviarei ao faraó, para que tires do Egito o meu povo, os israelitas.” (Êxodo 3,7-10)

Deus, em primeiro lugar, é aquele que a opressão. Ele vê e ouve o clamor; vê, ouve e conhece o sofrimento do povo; vê, ouve, conhece e também envia um libertador, com a missão impossível, em desproporcional ajuste de forças, de tirar o povo do Egito. Além disso, a Escritura diz que ele se lembrou das promessas feitas a Abraão, o pai dos hebreus, na aliança relatada em Gênesis 12, e que por isso olhou para os israelitas (em Êxodo 2,24-5).

Por incrível que pareça, o Êxodo conta a história de um Deus que se importou com o sofrimento. Evidentemente isso não significa que cada um dos hebreus, à época, ou dos seres humanos, em qualquer época, foi livrado das mãos de seus opressores. Cada um tem uma história com Deus, e cada um terá a oportunidade de queixar-se e ouvir a resposta, diante do seu trono. Mas muitos dão testemunho, como os hebreus antigos fizeram, de que embora Deus nem sempre impeça o opressor e a violência de se levantar, ele vê e desaprova essas coisas. E que ele pode virar o jogo dos opressores, quando eles menos esperam.

E Deus age, então, para libertar. Ele não apenas se comove, mas mostra o seu caráter diante do opressor: Deus é o Deus da liberdade. Mais à frente, ao doar a sua lei ao povo, ele dirá, no prólogo dos Dez Mandamentos: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2). Deus assim dá um conteúdo positivo para a sua autodescrição a Moisés como o “eu sou”, e se define como um Deus da liberdade e da libertação.

Mas é aqui que a pinguela estreita. Muitos cristãos entendem que essa libertação era política, no tempo de Moisés, mas hoje seria apenas “espiritual”. O novo êxodo seria uma coisa metafórica apenas; Deus teria se aposentado das revoluções ocupando-se agora da capelania, apenas.

Idolatria e opressão

É claro que essa história está mal contada. Se o Êxodo não é mero relato revolucionário, tampouco é mera alegoria moral ou psíquica. A narrativa mostra um pathos divino, um caráter, um compromisso celestial com a justiça e contra o opressor, e isso exige uma leitura mais atenta.

Israel no Egito não estava tão somente sob a força de um poder político. É certo que se tratava de mais uma versão do império, ou de Babel, a invenção de Nimrode, nosso assunto na coluna há algumas semanas. Mas o sistema egípcio era uma ideologia que tinha, em seu centro, uma religião. E, ao se levantar para libertar seu povo, Deus se levantou também contra os deuses do Egito. O teólogo Walter Brueggemann explica muito bem o que Moisés precisou enfrentar:

“Os deuses do Egito eram inamovíveis senhores da ordem. Eles evocam, sancionam e legitimam uma sociedade da ordem, que é precisamente o que o Egito apresentava. No Egito, como Frankfort mostrou, não havia revoluções, nem rupturas pela liberdade. Havia apenas os necessários arranjos políticos e econômicos para proporcionar a ordem, ‘naturalmente’, a ordem de Faraó. Assim a religião dos deuses estáticos não é e não pode ser desinteressada, mas inevitavelmente serviu aos interesses dos encarregados, presidindo a ordem e se beneficiando dela. E o funcionamento dessa sociedade testificava a favor da retidão de sua religião, porque os reis prosperavam e os tijolos eram fabricados.”

Os sinais miraculosos operados por Moisés nas Dez Pragas não foram apenas ataques à infraestrutura imperial do Egito, mas o confronto e a humilhação dos deuses do Egito, que davam sustentação religiosa a um sistema de opressão e legitimavam a escravidão. E humilhar o panteão egípcio era também, num sentido, desnaturalizar a ordem social egípcia. Via-se, agora, que ela não refletia uma ordem criada e divina, mas era expressão da consciência imperial: deuses falsos, criados para justificar um modo de vida social perverso.

Por isso mesmo, paralelamente, o propósito divino ao libertar Israel não era apenas possibilitar uma nova ordem social, mas uma nova ordem religiosa. Não apenas uma nova cultura, mas um novo culto. O novo culto, com suas liturgias, colocaria o povo de Deus em contato com a verdadeira ordem celestial, e seria a base para a reconstrução da ordem social segundo o modelo divino, como uma comunidade sacerdotal.

O Êxodo conta a história de um Deus que se importou com o sofrimento. Embora Deus nem sempre impeça o opressor e a violência de se levantar, ele vê e desaprova essas coisas. E Ele pode virar o jogo dos opressores, quando eles menos esperam

Nesse sentido a condenação dos ídolos e dos crimes que os ídolos legitimam é inseparável. As práticas de opressão e as prioridades e absolutos impostos pelos falsos deuses se alimentam e se sustentam mutuamente, de modo que todo movimento de libertação deve ser, sempre, simultaneamente teológico e ético. Essas são coordenadas necessárias para a autenticidade da religião. Uma teologia supostamente correta que legitima a opressão é um engano, assim como um discurso de libertação ancorado em uma falsa divindade não pode, também, ser considerado verdadeiro e confiável.

Desse modo, a atividade profética contra a opressão não pode prescindir da afirmação do Deus verdadeiro e tomar emprestada a força de ídolos ou contraídolos para construir a resistência contra os deuses escravizadores. Ela deve manter sua pureza, derivando da revelação bíblica a sua compreensão do Deus libertador, e trazer discernimento crítico sobre as relações existentes entre os deuses falsos e as práticas, triangulando o conhecimento sobre o Deus verdadeiro, uma antropologia bíblica, e a crítica da opressão.

Uma libertação integral

Ao interpretar o evento libertador, alguns teólogos da esquerda insistem em puxar o fogo para a sua sardinha ideológica, alegando que se trata de um fato fundamentalmente temporal e terreno, uma ruptura no processo histórico e uma justificativa para a ação revolucionária, como foi o caso da finada Teologia da Libertação. E do outro lado não faltam teólogos conservadores que passam pelo Êxodo assobiando e desviando o olhar.

Mas, se há uma ligação interna entre idolatria e escravidão, não podemos separar adoração de libertação. Deus não humilha os deuses do Egito para que, em seguida, os hebreus libertos continuem cultuando os miseráveis em outro lugar. Ou incorporando outros ídolos. Ao mesmo tempo, se o caráter do Deus verdadeiro é o de um Deus libertador e que se importa com a injustiça, não é possível que uma sociedade que oprime pessoas socialmente, economicamente e politicamente tenha Deus no coração.

Em Exodus and Revolution, Michael Walzer argumentou que a libertação realizada pela mão de Moisés foi inegavelmente social, econômica e política, e ponto. Não há o que espiritualizar aqui; foi Deus quem quis assim. Os evangélicos precisam encarar esse fato de frente, com todas as suas implicações para a participação na política moderna.

Se o caráter do Deus verdadeiro é o de um Deus libertador e que se importa com a injustiça, não é possível que uma sociedade que oprime pessoas socialmente, economicamente e politicamente tenha Deus no coração

“No Êxodo respondeu a todas as dimensões das necessidades de Israel. A ação primordial da redenção efeituada por Deus não se resumiu a resgatar os israelitas da opressão política, econômica e social para então deixá-los à própria mercê, adorando a quem quisessem. Deus também não se limitou a oferecer a seu povo conforto espiritual ou a esperança de um futuro melhor no céu, enquanto deixava sua condição histórica inalterada. O Êxodo efetuou uma mudança real na situação histórica concreta desse povo, ao mesmo tempo chamando-o a um novo relacionamento, concreto, com o Deus vivo. Foi uma resposta integral de Deus à ampla necessidade de Israel.” (Christopher Wright)

As palavras de um teólogo perfeitamente ortodoxo e confiável como Chris Wright sumarizam o que é, na verdade, o entendimento ecumênico e verdadeiramente “católico” sobre o Êxodo: Deus quer libertar o homem inteiro, alma e corpo. Por essa razão Jesus Cristo ressuscitaria dos mortos: com isso Deus anulou a condenação do Império Romano e redimiu a vida física do seu Filho, como sinal de esperança para todos os homens.

As misericórdias do Senhor não se dirigem apenas a nossas necessidades espirituais, mas à totalidade de nosso ser

O tema da libertação integral se repetirá nas Escrituras como um fio unificador, expressando a natureza do reino e da salvação bíblica. Assim, aludindo à profecia de Isaías sobre o futuro jubileu escatológico, o próprio Jesus anunciou em Nazaré:

“Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías; ele o abriu e achou o lugar em que estava escrito: ‘O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar boas-novas aos pobres; enviou-me para proclamar libertação aos presos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e para proclamar o ano aceitável do Senhor’. E, fechando o livro, devolveu-o ao assistente e sentou-se; e os olhares de todos na sinagoga estavam fixos nele. Então ele começou a dizer-lhes: ‘Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabais de ouvir’.” (Lucas 4,17-20)

É muito importante reconhecermos a continuidade entre o Deus do Êxodo e o próprio Jesus Cristo, de modo a não perdermos de vista a natureza integral da libertação que ele oferece. As misericórdias do Senhor não se dirigem apenas a nossas necessidades espirituais, mas à totalidade de nosso ser; e a condenação do Egito envolve a um só tempo a sua idolatria e sua violência contra o próximo. Jesus é o libertador do homem todo – corpo, alma, espírito, e todas as suas relações sociais.

A libertação como agenda teológico-política

“Pois o Senhor, vosso Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores; o Deus grande, poderoso e terrível, que não faz discriminação de pessoas nem aceita suborno; que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe comida e roupa. Amareis o estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra do Egito.” (Deuteronômio 10,17-19)

Às vezes se alega, em ambientes teológicos conservadores, que a mensagem do Êxodo não pode ser universalizada, já que Deus escolheu e salvou exclusivamente Israel. Mesmo filossemitas críticos, como eu, às vezes acolhem essa linha de argumento, e gigantes da teologia pública evangélica, como John Stott, defenderam essa ideia.

Mas ela é insustentável. Não a eleição de Israel e o milagre do Êxodo, em si; eles são fundacionais e singulares. Mas tudo indica que Deus não queria tão somente libertar Israel; ele queria transmitir uma mensagem. Uma mensagem de esperança a todos os oprimidos, e uma advertência a todos os poderosos.

Deus faz justiça, mas não meramente garantindo o cumprimento da lei positiva, nos estritos limites constitucionais, à moda de Hart ou Kelsen; nem meramente punindo o crime, como querem alguns teólogos conservadores, mas buscando ativamente os oprimidos, exatamente como ele fez com os hebreus no princípio. Deus faz justiça a todos, mas especialmente a um grupo que é mais injustiçado, precisamente por ser mais fraco e vulnerável: órfãos e viúvas – os miseráveis da época – e, especialmente, estrangeiros!

Deus não queria tão somente libertar Israel; ele queria transmitir uma mensagem. Uma mensagem de esperança a todos os oprimidos, e uma advertência a todos os poderosos

Ora, os hebreus foram oprimidos pelos egípcios enquanto estrangeiros! Eles devem, então, constituir uma sociedade na qual não repitam o erro tornando-se opressores como os egípcios. O êxodo deve levar a uma nova sociedade.

O tema da libertação dos oprimidos revelou-se inseparável da autorrevelação de Deus e entranhou-se na religião bíblica e na ética social dos hebreus. E isso levaria, também, a uma mudança nas relações de trabalho e servidão. Embora a instituição da escravidão antiga não tenha sido imediatamente abolida naquele contexto histórico, a fé mosaica introduziu uma afirmação da igualdade de todos os israelitas e uma progressiva humanização da relação de trabalho. Peço licença ao leitor para incluirmos algumas referências bíblicas, para o caso de a curiosidade exigir confirmação.

Os escravos em Israel poderiam se livrar depois de seis anos de trabalho sem pagar alforria (Ex 21,1), com direito a provisões para não ficarem desamparados (Dt 15,13-14) e poderiam, mas apenas por livre escolha, ficar de modo permanente com seus mestres (Ex 21,5-6). Além disso, os Israelitas eram proibidos de escravizar outros israelitas (Lv 25,39-43); e, contrariamente aos costumes de outros povos, havia leis protegendo escravos da violência de seus senhores (Ex 21,20-21) e garantindo o abrigo a escravos fugidos (Dt 23,15-16). Essa mudança seguia uma lógica bastante clara:

“Eu sou o Senhor vosso Deus. Eu vos tirei da terra do Egito, para vos dar a terra de Canaã, para ser o vosso Deus. Se teu irmão empobrecer a ponto de vender-se a ti, não o farás trabalhar como escravo. Ele estará contigo como diarista, como peregrino; trabalhará para ti até o ano do jubileu. Então, deixará de trabalhar para ti, ele e seus filhos, e voltará para a família, para a propriedade de seus pais. Não serão vendidos como escravos porque são meus escravos, que tirei da terra do Egito. Não dominarás sobre ele com rigor, mas temerás o teu Deus.” (Levítico 25,38-43)

Os hebreus foram oprimidos pelos egípcios enquanto estrangeiros! Eles devem, então, constituir uma sociedade na qual não repitam o erro tornando-se opressores como os egípcios. O êxodo deve levar a uma nova sociedade

O que vemos nesse trecho exemplar é que a libertação promovida pelo Senhor coloca todos os israelitas não apenas sob o reinado do mesmo Deus, mas também numa condição igualitária, quando cria a obrigação ética de uma relação de trabalho justa e não exploratória. A mesma lógica foi transmitida para outras pessoas em situações de vulnerabilidade:

“Não oprimirás o estrangeiro, pois sabeis como ele se sente, uma vez que fostes estrangeiros na terra do Egito.” (Êxodo 23,9)

“Seis dias trabalharás e farás todo o teu trabalho; mas o sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo, nem tua serva, nem teu boi, nem teu jumento, nem qualquer animal teu, nem o estrangeiro que vive em tuas cidades; para que teu servo e tua serva descansem como tu. Lembra-te de que foste escravo na terra do Egito e que o Senhor, teu Deus, te tirou dali com mão forte e braço estendido. Por isso, o Senhor, teu Deus, te ordenou que guardasses o dia do sábado.” (Deuteronômio 5,13-15)

A própria lei do sábado, segundo a versão do Deuteronômio, estabeleceu que o descanso concedido aos servos e até mesmo aos estrangeiros é uma obrigação imposta pela relação com um Deus que liberta da escravidão e de relações de trabalho opressivas. O Senhor deseja que a graça recebida se torne uma norma regulatória para todas as relações dos israelitas entre si e com os estrangeiros. O que temos aqui é nada menos que a constituição de uma nova economia do trabalho, resultante da libertação realizada pelo Senhor. Essa nova economia é necessária para proteger o povo de Deus de criar outro Egito ou outra Babel em Canaã.

Seria esse o jejum que escolhi? Um dia para que o homem se humilhe, incline a cabeça como o junco e deite-se em pano de saco e cinza? Chamarias isso jejum e de dia aceitável ao Senhor? Por acaso não é este o jejum que escolhi? Que soltes as cordas da maldade, que desfaças as ataduras da opressão, ponhas em liberdade os oprimidos e despedaces todo jugo? Não é também que repartas o pão com o faminto e recolhas em casa os pobres desamparados? Não é que vistas o nu, o cubras e não deixes de socorrer o próximo? Então a tua luz romperá como a alva, e a tua cura logo chegará; a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do Senhor será a tua retaguarda.” (Isaías 58,5-8)

Falando ao povo por meio do profeta Isaías, muitos anos depois, o Senhor eleva o tema da emancipação com uma linguagem forte, referindo-se às “ataduras da opressão” e ao jugo que deve ser despedaçado, e associa-o ao tema do socorro ao faminto, ao pobre e ao desamparado, e ao socorro ao próximo no sentido mais amplo possível. E isso é chamado, pelo Senhor, de “justiça”. Não há justiça, do ponto de vista judaico e cristão, sem libertação.

Páscoa e libertação

Hora de voltarmos à Páscoa cristã. Do que os cristãos foram libertos por meio de Jesus Cristo? “Do pecado”, é a resposta-padrão, e ela não está errada. Mas é incompleta.

“Ele nos tirou do domínio das trevas e nos transportou para o reino do seu Filho amado, em quem temos a redenção, isto é, o perdão dos pecados.” (Colossenses 1,14,15)

Em sua carta o apóstolo Paulo usa a linguagem do resgate, com uma alusão direta ao Êxodo, para falar sobre o perdão dos pecados, sim. Mas esse perdão realiza um transporte, uma travessia: do império para o reino. O perdão, como o sacrifício pascal, é o passaporte para a transição, mas ela é inevitavelmente política, espiritualmente política.

O que ocorre no novo Êxodo é que o batismo e a remissão de pecados tornam a Civitas Mundi – seja ela Babel, o Egito, Roma, ou o moderno Estado constitucional liberal –obsoleta. Isso não significa que tais poderes sejam sempre inteiramente ruins; o patriarca José serviu no Egito e viveu bem lá. Mas Egito é Egito; seus reis são filhos de Nimrode, e à primeira oportunidade dirão ao povo de Deus, como o disse Faraó: “não conheço o seu deus”.

No entanto, desde a morte e a ressurreição de Jesus, os cristãos podem retrucar a ele: “tanto faz”.

O perdão, como o sacrifício pascal, é o passaporte para a transição, mas ela é inevitavelmente política, espiritualmente política

O ponto é que a certeza do perdão e esperança da ressurreição retiram dos poderes terrenos qualquer pretensa absolutidade. Sua criaturidade, relatividade e temporalidade ficam expostas. E o mesmo vale para utopias: sejam elas liberais, ou libertárias, ou tecnicistas, ou socialistas-marxianas, ficam todas imediatamente para trás. Se a ressurreição de Cristo aconteceu, todas as ideologias alternativas são irrecuperavelmente reacionárias.

Isso não significa que o cristão deva viver em descompromisso histórico – lembremo-nos de Abraão, e da política peregrina. A política de Abraão, fora de Babel, sabia agir historicamente e lutar guerras, mas antecipava uma cidadania celestial que não lhe permitia naturalizar-se entre as nações da época.

Isso é o que é esperado dos cristãos, de certo modo; que suas consciências se vejam libertadas dos sistemas de idolatria-opressão como o moderno capitalismo emocional, o liberalismo expressivo, o neopopulismo conservador, ou o socialismo marxiano. Se há coisas boas no Egito? Há, sim; a Escritura diz que os hebreus espoliaram os egípcios levando suas riquezas no Êxodo. Há de se aprender muito e reconhecer os valores de todos os projetos humanos de poder.

Se a ressurreição de Cristo aconteceu, todas as ideologias alternativas são irrecuperavelmente reacionárias

Mas o cristão está livre. Não precisa mais acreditar, nem temer, nem pertencer a nenhum Faraó; não apenas espiritualmente, por meio de uma práxis, resistindo de forma ativa a processos de opressão, discriminação de vulneráveis e aprisionamentos que sejam legitimados pelas modernas estruturas imperiais.

Assumimos, aqui, que o Senhor é contrário a toda e qualquer opressão. A força do ensino bíblico se estende para além da opressão histórica dos hebreus sob muitas nações, e deve ser aplicada também hoje a quaisquer situações nas quais o poder e a autoridade são empregados de modo a empobrecer e desumanizar indivíduos ou grupos de pessoas. Devemos, portanto, reconhecer que o tema emancipatório deve ser considerado parte indispensável de uma doutrina social cristã.

Nesse sentido a espiritualidade da libertação se aplica diretamente ao racismo moderno, à xenofobia e à discriminação contra estrangeiros, contra indígenas locais ou imigrantes regionais (como se dá com os nordestinos no Sudeste e no Sul). Ela também se aplica a situações nas quais se caracterize a opressão contra a mulher, contra a criança, contra pessoas pobres e de periferias. Podemos dizer que se aplica até mesmo a toda opressão justificada pela diferença de religião (quando alguém não é cristão, por exemplo) ou explorações e desumanizações legitimadas por comportamentos sexuais que, para os cristãos, são inteiramente reprováveis (como no caso de pessoas LGBTQIA+ que defendem e praticam uma ética sexual contrária à Palavra de Deus).

Se o nosso discurso nos deixa pendurados no Faraó, legitima os grandes deuses modernos e paralisa a nossa compaixão por quem é oprimido por eles... mais cedo ou mais tarde Deus virá contra nós

Mas acima de tudo, devemos dizer, as injunções bíblicas referem-se a relações de trabalho e sua corrupção até o ponto de torná-las relações de dominação e escravidão. De um ponto de vista teológico essa prioridade é derivada do fato de que o trabalho é um mandato criacional básico, e o lócus da demonstração da Imago Dei, como função sacerdotal e representativa do homem. De um ponto de vista filosófico e antropológico, porque o trabalho é o ponto de partida de toda a atividade cultural humana, e a subestrutura a partir da qual as ordens econômica, social e política se estabelecem.

Diante de tudo isso, podemos celebrar a Páscoa com a consciência impune? Lembre-se, na próxima semana, que essa festa traz muita esperança, mas também impõe uma advertência a todos os cidadãos de bem: se o nosso discurso nos deixa pendurados no Faraó, legitima os grandes deuses modernos e paralisa a nossa compaixão por quem é oprimido por eles... mais cedo ou mais tarde Deus virá contra nós, e com dez pragas na aljava.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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