Políticas identitárias levadas ao extremo: incêndios em Minneapolis durante protesto do Black Lives Matter.| Foto: Kerem Yucel / AFP
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“A confiança social é a medida da qualidade moral de uma sociedade – se suas pessoas e instituições são confiáveis, se podem cumprir suas promessas e trabalhar pelo bem comum. Quando pessoas em uma igreja perdem a fé ou confiança em Deus, a igreja desmorona. Quando pessoas em uma sociedade perdem a fé ou a confiança em suas instituições ou umas nas outras, a nação colapsa.” (David Brooks)

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A convulsão moral e o colapso da confiança social nos Estados Unidos foram temas de um longo e indispensável ensaio por David Brooks na The Atlantic, no último dia 5 de outubro. Brooks vê um grave risco de declínio da civilização americana e, corretamente, desce a subterrâneos éticos e espirituais em sua análise. Mais do que problemas estruturais, admite causas morais para a corrente crise, e conta a história de como a América se tornou uma sociedade indigna de confiança, carente de confiança, e alienada. Sem confiança, as pessoas não se veem mais como irmãs, e não cumprem seus deveres umas para com as outras. Perdendo-se a fraternidade e o bem comum, perde-se a sociedade.

Há muito o que disputar e discordar na encíclica Fratelli Tutti, do papa Francisco, da qual também tratamos na semana passada; mas ela inegavelmente expõe a ferida de nosso tempo. Essa ferida precisa ser aberta e limpa; o problema precisa ser compreendido e encarado com toda a honestidade. Sua dor precisa ser sentida e levada a sério.

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Sem confiança, as pessoas não se veem mais como irmãs, e não cumprem seus deveres umas para com as outras. Perdendo-se a fraternidade e o bem comum, perde-se a sociedade

O problema reside na dissolução do tecido social em nossas sociedades modernas. Se, como assume a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o princípio da fraternidade é um dever universal e tão fundamental quando os princípios da dignidade humana, da liberdade e da igualdade de direitos, a incapacidade de realizar a fraternidade levará ao fracasso de todo o projeto moderno de Direitos Humanos e, eventualmente, ao colapso de nosso sistema de Estado Constitucional Democrático de Direito.

Não se trata, apenas, de não sermos capazes de atingir avanços civilizacionais maiores, como obter maior cooperação entre as religiões, menos conflitos internacionais e uma articulação global em defesa do meio ambiente – todos objetivos imensamente relevantes e urgentes –, mas de perdermos até mesmo o que alcançamos após a Segunda Guerra Mundial.

O sistema de Direitos Humanos está emperrado

Enquanto no governo fiz repetidamente essa observação, em falas públicas e conversas estratégicas: logo no princípio do vigente Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH, MMFDH), lê-se a admissão de que o crescente reconhecimento jurídico-institucional dos direitos humanos no Brasil não tem sido acompanhado de correspondente superação das muitas violações de direitos humanos. Sinais diversos de aumento de tensão e conflito social têm sido amplamente reconhecidos, especialmente com o advento da internet e das mídias sociais.

Esse quadro é frequentemente associado a mudanças da ordem política contemporânea, com a retomada de discursos populistas e autoritários, sugerindo-se que a tolerância a tais movimentos, enquadrados como manifestações “conservadoras”, seriam estimuladores do aumento da intolerância e do desrespeito. Muito embora tal leitura tenha plausibilidade ao senso comum, carece de verdadeira consciência crítica, capaz de explicitar as origens estruturais do fenômeno no modo de organização da sociedade moderna; e por essa inconsciência, adianta-se à politização do problema sem a necessária mediação explanatória.

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O artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que a razão e a consciência nos incumbem do “dever de agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. Trata-se de um ponto de consistência lógica em nosso sistema político: a existência de direitos impõe exigências e deveres para efetivá-los. E o dever fundamental, derivado de nossa dignidade humana compartilhada, é o dever de reconhecer e preservar o que nos une, a nossa irmandade comum.

A moderna sociedade dos indivíduos certamente avançou muito, em relação às culturas tradicionais, ciosas das obrigações coletivas, mas carentes de respeito pela pessoa humana. No entanto, o nosso “avanço” em relação a isso foi disfuncional. Elevamos a nossa capacidade de reconhecer direitos, mas de algum modo a nossa capacidade de efetivá-los vem desacelerando, e estamos próximos de uma paralisação.

Em termos muito simples, a origem dessa evidente impotência para a realização de direitos encontra-se na crescente incapacidade de reconhecer e assumir deveres. E, para além da política e do sistema jurídico, essa enfermidade se encontra no próprio tecido social.

Introversão, atomização, tribalização

Quero lembrar as palavras fortes que Mark Lilla, da Universidade de Columbia, escreveu após a eleição de Donald Trump, e que já citei em outro artigo nessa coluna:

nos anos 1980 essa política [identitária da esquerda] cedera lugar a uma pseudopolítica de autoestima e de autodefinição cada vez mais estreita e excludente, hoje cultivada nas faculdades e universidades. Seu principal resultado foi fazer os jovens se voltarem para a sua própria interioridade em vez de se abrirem para o mundo exterior. Isso os deixou despreparados para pensar no bem comum e no que deve ser feito, na prática, para assegurá-lo – especialmente a difícil e nada glamorosa tarefa de persuadir pessoas muito diferentes de si a participarem de um esforço comum. Todo progresso da consciência identitária liberal tem sido marcado por um retrocesso da consciência política liberal. (...)

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(...) durante os anos 1970 e 1980 houve uma mudança. A atenção passou a se concentrar menos na relação entre nossa identificação com os Estados Unidos como cidadãos democratas e mais na nossa identificação com diferentes grupos sociais dentro do país. A cidadania desapareceu do mapa. E as pessoas se puseram a falar em identidade pessoal nos termos do homúnculo interno, dessa pequena coisa composta de partes matizadas por raça, sexo e gênero. (...)

(...) De todos os desdobramentos que discuti neste livro, o mais autodestrutivo do ponto de vista liberal é a educação baseada na identidade... A pedagogia liberal da nossa época, com seu foco em identidade, é na verdade uma força de despolitização... ao enfraquecer o nós democrático universal, sobre o qual a solidariedade pode ser desenvolvida, o dever, instilado, e a ação, inspirada, desfaz em vez de fazer cidadãos. No fim, essa atitude apenas intensifica todas as forças de atomização que dominam nossa época.

A sociedade se pulveriza em indivíduos com egos protegidos e focados na expressão de suas identidades e reconhecimento de seus direitos

Introversão, psicologização, Identitarismo, atomização, despolitização, perda da solidariedade e do bem comum. Palavras duras, mas brutalmente verdadeiras. O que está ocorrendo?

Segundo o autor, as políticas de identidade teriam reforçado processos de fragmentação social, atomização e introversão da consciência individual, destruindo a consciência cívica e a capacidade de pensar em termos de bem comum. Essa “crise do bem comum” resultou em uma reação política conservadora e uma crise na influência política do progressismo liberal (a esquerda, no contexto dos EUA). Ao mesmo tempo, a radicalização desse liberalismo de esquerda cria condições propícias ao retorno de uma extrema-direita.

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Patrick Deenen, outro crítico da sociedade moderna, recorreu à sociologia de Robert Nisbet para encontrar aqui um padrão: o liberalismo político leva à fragmentação e à alienação social, criando as condições para o tribalismo, o autoritarismo e o totalitarismo. Isso explicaria os 200 anos de liberalismo antes dos totalitarismos do século 20, e a similar crise do liberalismo contemporâneo. Tratamos disso noutro artigo, “A guerra civil dos sentimentos morais”.

No mesmo artigo destacamos a contribuição da psicologia social de Jonathan Haidt (em The Righteous Mind, de 2012), analisando o problema de um ponto de vista científico: está em curso uma bifurcação na imaginação moral em todo o ocidente. De um lado do “ringue”, uma elite cultural cheia de escrúpulos morais sentimentais, mas com um forte espírito anticultural e aversão por autoridades, lealdades e sacralidades (o setor W.E.I.R.D. da cultura moderna: “ocidental, educado, industrializado, rico e democrático”); do lado oposto, as grandes massas de espírito conservador, abrindo-se a personalidades e narrativas antiestablishment. Os primeiros prezam a emancipação e a individualidade, e os outros querem ordem, representação e qualidade de vida. Essas duas formas opostas de imaginação moral estão por trás de um processo de radicalização e polarização política.

O grupo do acróstico WEIRD é precisamente o grupo que vem encontrando dificuldades para construir uma linguagem moral e política de bem comum, segundo a observação política de Mark Lilla, e que tende a promover versões mais acentuadas de liberalismo expressivo e formas combativas de laicismo. No extremo oposto, ultraconservadores expressam um pathos fascista.

Considerando que o crescimento do conservadorismo – e, juntamente com ele, de forças de extrema-direita na Europa, nos EUA e na América Latina – deu-se de modo simultâneo e em resposta a políticas de esquerda liberal cada vez mais uniformes, e também que as políticas identitárias expandiram sua influência no Brasil a partir dos anos 1990 sob influência da mesma mente liberal (ou “liberalismo expressivo”), com similares resultados em termos de mudança de poder e de polarização política, podemos generalizar a leitura de Lilla para o caso do Brasil.

Essa questão foi levantada entre as esquerdas brasileiras logo após a eleição de Jair Bolsonaro. Independentemente dos méritos particulares das lutas identitárias, é evidente que elas expressam e reforçam o processo de introversão e atomização da consciência moderna. O fato é que a imaginação moral WEIRD e seu estilo político sentimental e subjetivista foram exportados para o mundo todo por meio da educação universitária e de sistemas globais de consumo, de comunicação, de indústria cultural e de direitos humanos; e o Brasil foi um ávido consumidor dessa cultura.

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Charles Taylor descreve esse processo como um “centramento subjetivo”: a ordem social e moral girando cada vez mais ao redor da individualidade e da subjetividade. E assim a sociedade se pulveriza em indivíduos com egos protegidos e focados na expressão de suas identidades e reconhecimento de seus direitos.

O ideal emancipatório desembocou, trágica, mas não inesperadamente, em uma “cultura de direitos sem deveres”

Mas não permanece necessariamente pulverizada. Reagregações podem ocorrer em outras bases. Com o empurrão das políticas identitárias, temos uma tribalização moral e política – fenômeno detectado por David Brooks nos EUA. As novas tribos identitárias fornecem uma experiência de coletividade, mas o seu centro não é tanto o bem comum quanto um sofrimento compartilhado e o espírito revolucionário.

Seria um erro, naturalmente, atribuir o atoleiro tupiniquim no campo de direitos humanos a essas políticas identitárias de forma exclusiva. O somatório cultural de valores europeus, africanos e indígenas, girando ao redor da latinidade ibérica, desaguou numa sociedade familista com sentido reduzido de solidariedade social e de consciência pública, voltada para interesses privados e “tribais”, e pobre de confiança pública, de transparência e de cooperação pelo bem comum. O brasileiro cuida da sua casa, mas não da sua rua.

Desse modo, a colonização espiritual do Brasil pelo processo de centramento subjetivo e, mais recentemente, pelas políticas identitárias, encontra um terreno de cooperação social já degradado e o esgarça ainda mais. Em vez de fazer o brasileiro aprender a cuidar da sua rua, ameaça fazê-lo desaprender o cuidado da sua própria casa, e ainda quebrar a casa dos outros.

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Direitos sem deveres

O centramento subjetivo leva, portanto, à atomização social – outra expressão cara a Charles Taylor, – à psicologização da política e à perda do sentido de bem comum. Suas raízes mais distantes se encontram nos ideais emancipatórios modernos, capitaneados pelo liberalismo político e moral.

Esse impulso emancipatório recebeu um upgrade com a transformação terapêutica da subjetividade e das instituições a partir da psicologia moderna, como sustenta, em The Therapeutic Turn, Ole Madsen, professor de Psicologia Crítica da Universidade de Oslo, sob forte influência das ideias do antropólogo Philip Rieff:

A estruturação psicoterápica da situação social é suspeitamente reminiscente da crise cultural na cultura moderna posterior do Ocidente descrita por críticos sociais. Vivemos em uma cultura de direitos sem deveres. Essa é a impressão do modelo e teoria social psicológica sobre a conexão entre o indivíduo e os sistemas que o circundam, e que foi transportada para a cultura.

O ideal emancipatório desembocou, trágica, mas não inesperadamente, em uma “cultura de direitos sem deveres”; uma cultura anticultural, que educa, forma e pastoreia o individuo para ensaiar, de novo e de novo, a história da luta contra o “sistema” em busca da felicidade. E a reprodução da anticultura é a tarefa da terapêutica moderna, por meio da psicologia, da pedagogia, do cinema e da indústria cultural, e dos campos afetivos em geral.

Uma mente terapêutica e individualista está por trás do colapso político contemporâneo, portanto. A mente terapêutica é essa degradação – ou, talvez, tão somente o amadurecimento – dos ideais modernos de emancipação e autonomia. Seu compromisso máximo é a felicidade individual; e seu método é usufruir de todos os recursos do progresso tecnocientífico e da proteção do Estado terapêutico, ao mesmo tempo em que combate heroicamente todo vestígio de uma cultura compartilhada, de valores e de uma ordem comunitária. Precisamente o narcisismo cultural denunciado por Christopher Lasch: dependente daquilo que odeia.

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Esse indivíduo narcisista não consegue pensar em articulação comunitária construtiva, embora seja capaz da mentalidade tribal; ele não dá conta dos deveres da fraternidade, embora possa odiar em grupo. O resultado disso é a atrofia do tecido social, a perda da capacidade da fraternidade e de efetivar igualdade e liberdade.

A crise de confiança

No caso dos EUA, esse processo de atrofia tem sido acompanhado com preocupação há décadas, não consistindo em mera hipótese de Lilla para explicar recentes resultados eleitorais. Em sua teoria da democracia, o cientista político Robert Putnam sustenta há muitos anos que a capacidade de cooperação de uma sociedade está diretamente relacionada à qualidade da democracia, e essa capacidade, sinalizada pelos índices de confiança, normas compartilhadas e sistemas de coordenação, pode ser medida como capital social.

O capital social é, de forma muito simples, a capacidade de cooperação entre as pessoas, sinalizada por hábitos morais, como a confiança e a cultura do voluntariado; coesão ideológica, como o compartilhamento de valores e visões de mundo; e recursos institucionais, como agências, fundações e iniciativas coletivas. Quando o capital social é alto, temos mais responsabilidade social, mais produtividade econômica e mais democracia. A mesma tese foi defendida por Francis Fukuyama numa obra antiga que deveria ser recuperada: Trust (“Confiança”), de 2002:

O capital social tem vantagens que vão muito além da esfera econômica. É vital para a criação de uma sociedade civil sadia – os grupos e sociedades que ficam entre a família e o Estado. A sociedade civil, alvo de considerável interesse em antigos países comunistas desde a queda do Muro de Berlim, é tida como fundamental para o sucesso da democracia. O capital social permite que diferentes grupos de uma sociedade complexa se juntem para defender seus interesses, que de outra forma poderiam ser desprezados por um Estado forte.

Sociedades com altos níveis de confiança apresentam sociabilidade espontânea: as pessoas se conectam com mais facilidade, cooperam, se associam, iniciam projetos, empreendem juntas, se sacrificam umas pelas outras. Isso favorece o mercado, o engajamento cívico, a democracia, a responsabilidade social, a religião e o trabalho da polícia.

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A capacidade de cooperação de uma sociedade está diretamente relacionada à qualidade da democracia

Putnam detectou, no entanto, um decréscimo do capital social na sociedade americana a partir dos anos 1960 em Bowling Alone: The Collapse and Revival of American Community, de 1995. Um dos aspectos desse decréscimo é a diminuição da confiança entre as pessoas, o que dificulta a sua cooperação. A queda contínua no índice de confiança entre as pessoas e no governo foi registrada no General Social Survey desde os anos 1970, e tem sido confirmada recentemente nos EUA, como mostra o recente relatório “Trust and Distrust in America”, publicado pelo Pew Research Center em julho de 2019.

Essa perda de capital social, sinalizada pelo decréscimo da confiança entre as pessoas e no governo, é um fenômeno muito grave. A confiança age como um “lubrificante” que aumenta a eficiência na atividade de grupo, segundo Fukuyama. Ela tem ligação causal com outros fenômenos importantes, como a prosperidade econômica, a democracia e a redução da corrupção, e seu decréscimo seria uma confirmação mensurável do processo de atomização e fragilização do tecido social.

Considerando o caso brasileiro, temos razões extras para a preocupação. Segundo o informe 2018 do Latinobarómetro:

O problema com a confiança em instituições é que em 2018 não se registraram aumentos. Somos a região do mundo mais desconfiada da terra, e pelo segundo ano consecutivo temos um mínimo histórico na confiança interpessoal. O Brasil não tem confiança interpessoal, registrando 4% em 2018.

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FONTE: Latinobarómetro, informe 2018, p. 46.

Como se vê no gráfico acima, o Brasil apresenta índices baixíssimos de confiança generalizada, o que certamente impacta em nossa capacidade de cooperação social.

Os dados da World Values Survey têm confirmado que o Brasil apresenta índices de confiança generalizada consistentemente baixos, em comparação com outros países do mundo. Segundo os resultados da Sétima Onda (2017-2020) do WVS recentemente disponibilizados, em resposta à pergunta “De forma geral, você diria que pode confiar na maioria das pessoas ou que é necessário ser cuidadoso com elas?”, 6,5% dos brasileiros dizem que sim, e 91,6% dizem que não. Para o comparativo, nos EUA, onde a confiança entre as pessoas tem caído vertiginosamente, os índices são de 37% e 62,5%.

Esses resultados são graves e reveladores. Indicam que o Brasil apresenta um tecido social enfraquecido, e uma espécie de pobreza moral e social que limita seus progressos em empreendedorismo, combate à corrupção, direitos humanos e democracia. Considere a observação de Francis Fukuyama:

O bem-estar de uma nação, assim como a sua capacidade de competir, são condicionados por uma única e pervasiva característica cultural: o nível inerente de confiança na sociedade.

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O Brasil apresenta um tecido social enfraquecido, e uma espécie de pobreza moral e social que limita seus progressos em empreendedorismo, combate à corrupção, direitos humanos e democracia

Se Fukuyama estiver certo – e penso que ele está –, o Brasil apresenta um tipo de pobreza e de enfermidade espiritual que os atuais programas partidários de direita e esquerda mal compreendem.

Nosso baixo desempenho no índice de confiança generalizada tem um paralelo com a baixa pontuação brasileira no Ranking Mundial da Solidariedade (World Giving Index), que mede e compara globalmente os índices de doação financeira e voluntariado. Os resultados brasileiros são historicamente baixos, mas sofreram uma queda forte segundo o relatório de 2018 (World Giving Index 2018), caindo da 75.a para a 122.a posição, entre os 30 países com pior desempenho.

Os conhecidos problemas brasileiros quanto ao respeito à dignidade humana e efetivação de direitos, os altos índices de violência, o enfraquecimento das famílias e a fragilidade do sistema educacional brasileiro, são em parte desafios de cooperação, e são sinalizadores de baixo capital social. Fukuyama afirma:

em vez de medir o capital social como um valor positivo, pode ser mais fácil medir a ausência de capital social usando medidas tradicionais de disfunção social, como taxas de criminalidade, dissolução familiar, consumo de drogas, litígio, suicídio, evasão fiscal e coisas do gênero. A suposição é de que, se o capital social reflete a existência de normas cooperativas, o desvio social reflete ipso facto a falta de capital social.

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Abordagens políticas e educacionais, no entanto, que não promovem o enfrentamento direto da promoção da solidariedade, da fraternidade e da cooperação, ou pior, que acentuam a atomização social, a conflitividade e a desconfiança, têm pequena probabilidade de trazer verdadeiras soluções nacionais. A generalização das políticas de identidade sinaliza esse agravamento no processo de centramento subjetivo que enfraquece ainda mais o já frágil tecido social nacional.

Essa é uma das razões por que, em minha opinião, tanto a política tradicional de esquerda, baseada na exacerbação do conflito social, quando o estilo confrontador e polarizador de política praticado pelo bolsonarismo e pela escola de Olavo de Carvalho não passam hoje de fósseis vivos. Esse estilo político está condenado e deve ser rejeitado com todas as forças.

Urge o desenvolvimento e a priorização de abordagens políticas e pedagógicas capazes de fortalecer nosso tecido social, a confiança entre os cidadãos e simbiose social. Em outros termos, há uma demanda por soluções nacionais para efetivação do princípio da fraternidade.

Como desemperrar a fraternidade?

Nem tudo são más notícias, em nosso caso. Segundo o World Values Survey, o brasileiro ainda mantém um alto índice de confiança em seus familiares, em suas igrejas, na polícia, no Exército e nas universidades.

Temos ao menos de onde partir, portanto. O problema imediato seria o de como fazer com que a capacidade de cooperação interna a esses grupos se projete para fora deles – na linguagem de Francis Fukuyama, que se obtenha um “raio de confiança” (trust radium) maior do que 1 (com a confiança intragrupal transbordando como uma confiabilidade entre pessoas e grupos não aparentados). Será possível que as pessoas, a partir da experiência de confiança e cooperação dentro de círculos tradicionais, se movam para confiança e cooperação para fora desses círculos?

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A questão é ideológica, por um lado, e técnica, por outro. Do ponto de vista ideológico, urge admitir que cultura e moralidade fazem diferença para a economia, a democracia e o respeito aos direitos humanos. Para uma parcela significativa dos agentes sociais brasileiros, no entanto, os problemas sociais teriam causas fundamentalmente “estruturais”, e não espirituais. Nossos problemas seriam de organização econômica, de organização do Estado, de representação política.

O princípio da fraternidade não pode mais ser tratado como perfumaria retórica; ele deve se tornar um projeto moral coletivo, público e político

Assim, políticas públicas são desenvolvidas assumindo uma compreensão da realidade humana pessoal totalmente abstrata e fantasiosa, como se as moralidades não importassem e como se a confiança entre as pessoas fosse um fator desprezível. Essa espécie de wishful thinking reducionista dificulta, por exemplo, o reconhecimento da importância da religiosidade como ponto de partida real para enfrentar os problemas da sociedade brasileira, e oculta as motivações profundamente morais dos arquitetos da mudança social, iludidos por uma alegada neutralidade espiritual.

A questão técnica diz respeito ao tipo de tecnologia social que poderia enfrentar o problema da dissolução do tecido social de nossa civilização. Se temos problemas de capital social e de capital moral, é preciso construir políticas públicas com foco na produção desses capitais. Para tanto seria necessário converter as ideias de fraternidade e bem comum em metodologias de cooperação ao redor de bens públicos, relativizando ou abandonando intervenções que estimulam o conflito social ou que deixam a musculatura comunitária inerte.

Mas a fonte verdadeira de soluções não será uma política de Estado, mas necessariamente a sociedade civil. É aí que o tecido social precisa ser reatado e fortalecido, e para tanto o Estado pode apenas fornecer esparadrapos aqui e ali. Tateando por soluções para a crise nos EUA, David Brooks faz uma útil observação:

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Como Robert Putnam e Shaylyn Romney Garret notam em seu livro no prelo, The Upswing, o reavivamento cívico americano que começou nos anos 1870 produziu uma impressionante corrente de novas organizações: United Way, NAACP, escoteiros, Serviço Florestal, Federal Reserve System, clubes 4-H, Clube Sierra, movimento de assentamentos de moradia, movimento da educação compulsória, Associação Americana de Bares, Legião Americana, ACLU etc. Essas eram organizações missionais, com propósitos de cruzadas claramente definidos. Elas colocavam uma ênfase tremenda no cultivo do caráter moral e do dever social – a honestidade, confiabilidade, vulnerabilidade e cooperativismo, e também em valores compartilhados, rituais e normas. Elas tendiam a colocar a responsabilidade sobre pessoas que não haviam antes recebido poder. “Poucas coisas ajudam mais um indivíduo do que colocar sobre ele a responsabilidade, e deixa-lo saber que você confia nele”, segundo escreveu Booker T. Washington em sua autobiografia de 1901.

Segundo o conselho de Brooks, a promoção da confiança deve começar pelo estímulo à formação de círculos de cultivo da fraternidade e do bem comum. E as esferas que detêm maior confiança e autoridade moral, como a igreja, devem ser persuadidas a promover uma formação moral voltada para a sociedade toda, e não apenas para o seu consumo interno. Articulações, instituições e coletivos “ecumênicos” devem ser formados reunindo os diferentes em nome de propósitos comuns; e a educação liberal deve ser substituída por uma educação para a virtude.

O princípio da fraternidade não pode mais ser tratado como perfumaria retórica; ele deve se tornar um projeto moral coletivo, público e político.