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Detalhe de “O Jardim do Éden”, de Lucas Cranach o Velho.
Detalhe de “O Jardim do Éden”, de Lucas Cranach o Velho.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Lembro-me, como se fosse ontem, do dia em que chegamos no fusquinha branco da irmã Susi, por alguns anos amiga inseparável da minha avó Esmeralda, a um morro bastante alto com uma vista de encher os olhos. Era uma manhã fresca com ares muito limpos, transparentes como se cidades não houvesse, com umas poucas nuvens movendo rápido suas sombras sobre a paisagem verdinha. Criança, não fazia ideia de onde estávamos, mas lembro-me da minha avó sorrindo e dando alegremente glórias a Deus pela beleza da vista. E eu pensando que ela estava certa, no belo horizonte não há só uma beleza, há uma bondade engraçada, silenciosa, que dá na gente a vontade de cantar.

Mas eu não era de cantar, e ver minha avó agradecer a Deus tão espontaneamente me fez notar que meu mundo não era igualzinho ao dela. Ou melhor, o mundo era o mesmo, mas eu ainda não estava totalmente dentro dele. Ela via coisas de outro jeito; e sua jovial espontaneidade religiosa me fez sentir velho. Era eu o velho e a criança era ela, que fazia a verdade do mundo se manifestar tão fácil; ela cultuava a Deus como um ato da natureza, assim como o vento soprava, o passarinho cantava e a sombra da nuvem corria nos morros. Mas eu quis aquele mundo e ela acabou me arrastando para ele.

Antiquíssimo era esse mundo, no entanto! A ideia de que o universo seja um templo de Deus já era celebrada pelos antigos, dos construtores de Stonehenge aos sumérios. Esses últimos construíam os templos de seus deuses como versões miniaturizadas de seus templos celestiais, para os quais eles desciam através de escadas celestiais – os zigurates – para se manifestar através de imagens esculpidas que povoavam essas casas-de-campo dos deuses. Tanto os sumérios quanto os egípcios construíam esses templos em lugares sagrados nos quais havia fontes de águas, que se espalhavam em quatro direções, representando a vida e a fertilidade doada pelos deuses, e ali eles plantavam jardins, bosques, e mantinham animais escolhidos. Desses pomares eram trazidas as ofertas para alimentar a divindade, e o culto era administrado pelos sacerdotes escolhidos.

A ideia de que o universo seja um templo de Deus já era celebrada pelos antigos, dos construtores de Stonehenge aos sumérios

Foi nas últimas três décadas, no campo da exegese bíblica, que a natureza fundamentalmente cúltica do relato de Gênesis foi amplamente recuperada e popularizada. Estudiosos como J. D. Levenson, Meredith Kline e, mais recentemente, John H. Walton e G. K Beale demonstraram para além de qualquer dúvida que a criação do Éden foi, na verdade, a constituição de uma habitação divina no mundo, e de um sacerdócio humano da criação.

Está tudo lá, na primeira obra de Moisés: um ritual ascendente de sete dias de formação/consagração do santuário cósmico, com a introdução de uma imagem da divindade (o ser humano) no sexto dia e um clímax de alegria no sétimo; o jardim sagrado, que deveria ser protegido por seu rei-sacerdote, com duas árvores ainda mais sagradas, com um rio divino se dividindo em quatro grandes rios, e a divindade passeando com os homens no fim da tarde. Nas palavras de Beale, “o jardim do Éden foi o primeiro templo arquetípico, onde o primeiro homem adorava a Deus”.

No relato bíblico os seres humanos são expulsos do jardim – o lugar do encontro com Deus – e o acesso fica bloqueado por dois anjos querubins, com suas espadas flamejantes. Muito mais tarde, quando Deus começa a cumprir as promessas feitas ao patriarca Abraão livrando o seu povo do Egito, somos informados de que esse povo será sua “nação separada” e “sacerdócio real” – ou seja, que de algum modo os planos litúrgicos de Deus não foram abandonados. E assim, depois da tremenda experiência de Deus se apresentando como fogo consumidor, no topo do Monte Sinai, Moisés recebe a ordem de construir um tabernáculo, uma tenda para que a presença divina possa habitar no meio de Israel.

E adivinhem: a estrutura desse tabernáculo é perfeitamente consistente com os grandes padrões dos santuários do antigo Oriente Próximo. Há um átrio representando a terra, com um altar de sacrifícios e uma bacia com água; um lugar sagrado com um altar de incenso, um castiçal e uma mesa de pães, símbolos da oração, da árvore e do alimento, no qual só sacerdotes poderiam entrar; e, depois de um espesso véu, havia o lugar santíssimo, com suas partes feitas de materiais nobres sinalizando o próprio céu, com uma arca, contendo os símbolos da aliança de Deus como o povo, e dois querubins de ouro sobre a tampa, olhando na direção dela. Só o sumo-sacerdote de Israel podia entrar nesse lugar, uma vez por ano, no dia da expiação, sob o olhar vigilante dos querubins – os mesmos que guardavam a entrada do Éden.

Essa mesma estrutura básica seria repetida no templo de Salomão e no grande templo de Herodes, na época de Jesus Cristo. Mas Ele revolucionou a coisa toda, quando proclamou que o santuário de Jerusalém seria destruído e que seu próprio corpo seria o novo santuário, reconstruído em três dias através da sua ressurreição. E depois, os apóstolos de Jesus entenderam que o povo renovado de Deus seria o novo lugar santíssimo e um novo sacerdócio no templo cósmico de Deus. Um templo do tamanho do universo, com um lugar santíssimo feito de gente!

Mas isso será no fim da história, que lemos no fim da Bíblia. Voltando ao começo da história, os biblistas notaram que havia uma diferença importante entre os santuários israelitas e os outros templos antigos. Ao passo que, nesses templos, os homens alimentavam os deuses, no Éden era Deus quem alimentava os homens. Essa ideia habitava o âmago da religião hebraica: a vida depende da graça de Deus, e não do trabalho do homem. A vida na criação é uma dádiva, e não somos escravos de divindades cansadas de trabalhar, criados para servi-las e alimentá-las, como pensavam os babilônicos, segundo o épico Enuma Elish.

Ao passo que, nos templos antigos, os homens alimentavam os deuses, no Éden era Deus quem alimentava os homens. Essa ideia habitava o âmago da religião hebraica: a vida depende da graça de Deus, e não do trabalho do homem

“Compactarei o sangue, farei nascerem ossos,
Porei de pé um ser humano, e ‘Homem’ será o seu nome.
Criarei a humanidade,
E eles carregarão a carga dos deuses, para que estes possam descansar.”

Assim dissera Marduque, o deus supremo da Mesopotâmia, quando executou o deus Quingu para de seu sangue criar seus escravos, os homens. Nas escrituras hebraicas temos muito claramente uma polêmica contra essa concepção ético-religiosa. Ali cada ser humano é um rei-sacerdote, feito à imagem de Deus, incluindo as mulheres (que no mundo antigo eram vistas como subumanas), e o jardim é plantado por Deus para alimentar os homens. Em outras palavras, Deus levantou um grande templo cósmico, e pôs ali os homens para cuidar do jardim e desfrutar do seu descanso divino. Esse é o sentido da palavra Éden: “delícias”.

Ler o Gênesis com plena consciência de seu contexto histórico-literário nos ajuda a compreender o erro de interpretá-lo como se fosse um relato científico da criação. É um erro cometido por muitos descrentes, que julgam o texto por critérios da ciência moderna, mais ou menos como quem compara cavalos com automóveis como se fossem duas versões da mesma coisa, mas também por crentes, que tentam construir com o texto um arcabouço de história natural do planeta Terra.

No entanto, a finalidade de texto é claramente litúrgica; ele representa a constituição e a consagração de um espaço sagrado e de um ritmo sagrado, focalizando o privilégio e a responsabilidade do rei-sacerdote divinamente apontado, o ser humano, nesse templo da criação. Esse texto não precisa ser cientificamente estruturado para comunicar essa verdade sobre a ordem e propósito da criação; a questão de como Deus fez o que fez pode ser investigada pela ciência e pela filosofia, mas a questão sobre o que é o mundo é inacessível para elas. É assunto de revelação, e o Gênesis foi escrito com esse propósito: revelar o sentido do mundo.

E a grande revelação recebida por Israel através desse trecho foi a de que o Deus que construiu o templo do mundo não era como pensavam as outras nações. Afirma John Walton:

“A ideologia do templo não é notavelmente diferente em Israel do que era para o antigo Oriente Próximo. A diferença é no Deus, não no modo como o templo funcionava em relação a Deus. O ciclo da vida cósmica era construído diferentemente em Israel, uma vez que a provisão de alimento divino não servia a seus propósitos, em última instância, pelo atendimento de suas próprias necessidades.”

Ler o Gênesis com plena consciência de seu contexto histórico-literário nos ajuda a compreender o erro de interpretá-lo como se fosse um relato científico da criação. É um erro cometido por muitos descrentes e também por crentes

É claro que isso fazia uma diferença espetacular. Significa que o mundo era experimentado pelos hebreus como uma dádiva e um lugar de celebração; não apenas de encontro com Deus, mas de desfrute com Deus; um Éden. E cuidar e desfrutar desse jardim não seriam gestos distintos e separados da comunhão e do culto a Deus. É assim que os salmistas bíblicos viam o mundo: “Ruja o mar e tudo o que nele existe, o mundo e os que nele habitam; batam palmas os rios; juntos regozijem-se os montes diante do Senhor.” Eles contemplavam e cantavam no templo do Senhor como fazia a minha avó.

Mas seria isso estranho demais aos nossos ouvidos? Poderíamos viver a fé assim hoje, em plena era científica, como se isso fosse um ato da natureza? Na aurora da modernidade os arquitetos da revolução científica eram frequentemente tão jovens quanto a minha avó:

“Que se conclua assim nosso envoi a respeito da obra de Deus, o Criador. Resta ainda enfim, com meus olhos e mãos afastados da mesa de demonstrações e erguidos em direção aos céus, que eu ore devota e suplicantemente ao Pai das luzes: ‘Ó Tu que pela luz da natureza promoves em nós o desejo pela luz da graça, que por tais meios tua majestade nos transporta para a luz da glória, a ti dou graças, ó Senhor Criador, que me tem deliciado com duas obras e nas obras das duas mãos tenho exultado. Vede! Agora, tenho completado a obra da minha profissão, havendo empregado tanta força em minha mente quanto tu me deste a mim; aos homens que virão a ler essas demonstrações tenho manifestado a glória das tuas obras, tanto da sua infinitude quanto as estreitezas do meu intelecto puderam apreender. Minha mente foi entregue para filosofar do modo mais correto: se há qualquer coisa indigna de teus desígnios trazida por mim – um verme nascido e formado em um chiqueiro de pecados –, sopra também em mim aquilo que tu queres fazer saber aos homens, para que eu possa fazer a correção: se tenho sido atraído à imprudência pela maravilhosa beleza das tuas obras, ou se tenho amado a minha própria glória entre os homens, enquanto avanço na obra cujo destino é a tua glória, sê gentil e misericordioso e perdoa-me; e finalmente age graciosamente para que essas demonstrações abram o caminho para a tua glória e para a salvação das almas, e jamais sejam o obstáculo para elas.”

Essas foram as palavras do grande Johannes Kepler, um dos pais da astronomia moderna, na obra Harmonia do Mundo (Harmonices Mundi, de 1619), um pouco antes de citar um salmo de Davi e concluir o livro. Na famosa obra ele apresentou a sua terceira lei do movimento planetário, abrindo o caminho para a física newtoniana.

Na dedicatória do livro ele o descreveu como um hino que ele, como “sacerdote de Deus junto ao livro da natureza”, redigiu para honrar o Criador. Essa era mesmo a visão protestante: cada um dos trabalhos do ser humano pode ser um hino cantado a Deus. E a última frase do livro? “A Ele seja o louvor, a honra, e a glória, pelos séculos dos séculos, Amém”. Kepler, fervoroso cristão luterano, com sua teologia compreendeu a graça de Deus, e com sua ciência entendeu que vivia em um templo; como Moisés, milênios antes dele, e como a minha avó, poucos anos atrás.

Estou ciente de que nosso momento político torna dificílimo desgrudar a mente do processo eleitoral, mas eu convido o meu leitor, em nome da alegria e da sanidade, a se lembrar que o mundo é bem maior do que as nossas ansiedades, e a se entregar a essa venerável tradição litúrgica. Nenhum de nós é maior que Moisés ou Kepler; nenhum de nós é melhor que uma criança; e nenhum de nós vive no mundo real enquanto não se achou no grande templo da Criação.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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