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Rashida Jones e Bill Murray em cena de On the Rocks, filme de Sofia Coppola.
Rashida Jones e Bill Murray em cena de On the Rocks, filme de Sofia Coppola.| Foto: Divulgação

1. Amigos meus, com filhas, vivem os dramas dos pais-helicóptero. Elas crescem, namoram, casam. Mas o instinto do pai-macho é sempre o de proteger a filha-fêmea das garras de outros machos. Não os critico. Entendo. Primeiro, eles projetam nos outros o que eles próprios, enquanto homens, são ou foram para as mulheres. Nada como um homem para conhecer outro homem.

E, depois, consigo imaginar-me no lugar deles. Tenho um filho. Durante 24 horas por dia, tenho de me controlar para não remover todas as pedras do seu caminho. Se tivesse uma filha, e se ela por hipótese sofresse às mãos de um homem, eu seria obrigado a espancá-lo com requintes de malvadez. Só depois do serviço feito, e já com a polícia no meu encalço, perguntaria ao moribundo: “A propósito: é mesmo verdade que você magoou a minha filha?”

Sofia Coppola conhece homens desses e resolveu filmá-los no seu On the Rocks (disponível na Apple TV). Dizer que é um filme perfeito seria um eufemismo. Qualquer filme com Bill Murray corre esse risco. Se juntarmos ao programa a atriz Rashida Jones, o prato está feito.

A grande responsabilidade dos pais perante os filhos é o exemplo que deixamos. O resto é com eles e com a vida que lhes pertence

É a história de Laura, escritora, casada, com duas filhas. O casamento é feliz, ou parece feliz, mas já os antigos diziam: mãos ociosas são a oficina do diabo. Laura, em bloqueio criativo, começa a desconfiar do marido. Quando partilha essas suspeitas com o pai, ele avança como um cavaleiro medieval, disposto a salvar a sua donzela. Como? Seguindo os passos do suspeito.

A primeira hora de On the Rocks é Bill Murray vintage. O pai, debitando sabedoria sobre as relações entre os sexos, parece um cavalheiro da velha escola: no porte, nos gestos, nos gostos. E no cuidado com a filha, deplorando as alegadas infidelidades do genro. Mas existe uma dissonância no comportamento do pai: aquilo que ele exige do genro não é propriamente o que praticou e pratica. Como exigir fidelidade e monogamia a alguém quando essas duas virtudes não foram praticadas lá em casa? E até que ponto a hiperproteção do pai não é uma forma, ainda que inconsciente, de iludir o seu próprio currículo perante a filha?

On the Rocks é uma fábula moral, em tom ligeiro, sobre as responsabilidades últimas dos pais perante os filhos. Entre essas responsabilidades não está a atitude insana de tratar os filhos como se fossem propriedade nossa. Muito menos protegê-los do mundo e dos outros com paranoia asfixiante. A grande responsabilidade é o exemplo que deixamos. O resto é com eles e com a vida que lhes pertence.

2. Joe Biden é o novo presidente dos Estados Unidos. Não é destino que se inveje. A América está dividida entre dois mundos que parecem irreconciliáveis. A pandemia não acabou, nem ameaça acabar tão cedo. E Biden terá ainda de controlar a ala mais radical do Partido Democrata, que encara a sua vitória como uma espécie de tomada da Bastilha.

Seja como for, sempre gostei de Biden. Não por razões políticas, embora a sua moderação seja estimável para uma alma conservadora como a minha. Por razões pessoais. O caráter de um homem se mede perante a tragédia. E quando nessa tragédia existe a morte de dois filhos, o pior dos castigos terrenos, é impossível não ver em Biden um dos últimos estoicos da vida pública americana.

Sempre gostei de Biden. Não por razões políticas; por razões pessoais. O caráter de um homem se mede perante a tragédia

Aliás, nessas semanas de campanha, não me limitei aos discursos de Biden (fracos) ou ao seu programa eleitoral (vago, demasiado vago). Também li as memórias que o próprio escreveu (Promise Me, Dad: A Year of Hope, Hardship, and Purpose) sobre a morte do filho Beau, vitimado aos 46 anos por um câncer no cérebro. Melhor dizendo: o livro não é apenas sobre o filho. É um relato sobre os 12 meses que mediaram entre o diagnóstico e a morte de Beau, período em que Biden foi obrigado a equilibrar a tragédia pessoal com a vice-presidência da administração Obama.

Não vou resumir aqui a experiência, porque ela é, em vários sentidos da palavra, intransmissível. Digo apenas que, lendo o calvário do católico Joe, entendi melhor o que Hemingway designava por grace under pressure. Sim, é uma forma de coragem, mas é mais que isso: é atravessar o inferno e conseguir sair vivo do outro lado. Respeito isso.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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