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Jurista, historiador e escritor italiano pouco citado no Brasil, Franco Cordero (1928-2020) analisou em profundidade o funcionamento da Justiça durante a Inquisição, um período sombrio da História europeia. A reflexão do jurista italiano serve até hoje de alerta para os perigos de qualquer sistema que abra mão da imparcialidade em nome de uma agenda, seja ela religiosa ou política.
Entre os séculos 15 e 18, em Portugal, na Espanha e outros países, a Inquisição (ou Santo Ofício) foi uma instituição da Igreja Católica que investigou, acusou, julgou e puniu pessoas acusadas de crimes como apostasia, feitiçaria e blasfêmia. Estima-se que, só em Portugal, mais de 40 mil hereges foram condenados. A pena mais grave era a morte na fogueira.
Em sua obra mais famosa, “O processo de Galileu”, Cordero examinou os aspectos jurídicos do sistema inquisitorial, demonstrando que o Direito era usado como ferramenta de controle ideológico e social. Galileu, como se sabe, foi condenado, em 1633, por um tribunal eclesiástico estabelecido pelo Papado em Roma, por contrariar o geocentrismo defendido pela Igreja.
O julgamento não buscava avaliar os méritos científicos da obra de Galileu, mas sim proteger a ordem teológica e política estabelecida. Antes mesmo de ser formalmente acusado, Galileu já estava sob vigilância, e suas ideias eram abertamente classificadas por seus juízes como heréticas.
Esse viés de culpa era reforçado por uma dinâmica na qual a confissão – muitas vezes obtida sob coerção ou ameaça de tortura – era o ápice do processo. A simples ameaça de tortura psicológica foi suficiente para forçar Galileu a abjurar suas ideias publicamente.
Segundo Cordero, o julgamento de Galileu representou a derrota da liberdade de pensamento frente ao autoritarismo institucionalizado. Ele descreveu o episódio como um lembrete sombrio do perigo de centralizar poder judicial em uma única autoridade – risco do qual não estamos livres, no presente.
A Inquisição não era apenas um tribunal religioso, mas também uma entidade política, que usava processos judiciais para reprimir ideias que ameaçavam o sistema. Os tribunais inquisitoriais operavam com métodos que permitiam pouca defesa aos acusados, baseando-se em confissões obtidas sob coação, em uma lógica de culpa presumida.
Cordero critica também a teatralidade dos julgamentos, que, sob um manto de legalidade, transformavam o processo jurídico em um espetáculo público, com objetivos pedagógicos. Esse “Direito teatral” mascarava a injustiça sob uma fachada de legalidade.
O inquisidor apresentava-se como o defensor da fé e, ao mesmo tempo, o árbitro final, sem espaço para qualquer contestação. Ao intimidarem a dissidência, as "penas exemplares" serviam à perpetuação de uma agenda ideológica.
O jurista italiano foi particularmente incisivo ao apontar a confusão entre os papéis de acusador e juiz nos tribunais da Inquisição, concentrando poderes que deveriam ser divididos entre partes distintas. Uma sobreposição problemática não apenas do ponto de vista jurídico, mas também moral.
O inquisidor desempenhava um papel híbrido: era, ao mesmo tempo, investigador, acusador e juiz. Ou seja, o mesmo sujeito que levantava suspeitas de heresia contra o acusado decidia sobre sua culpa ou inocência e o condenava à fogueira. Evidentemente, esse arranjo agredia o princípio fundamental da imparcialidade judicial
As teses de Franco Cordero sobre a confusão entre os papéis de acusador e juiz podem ser evocadas para analisar aspectos da atuação do STF no Brasil
O prejuízo à defesa era evidente. O acusado enfrentava um sistema onde o inquisidor já tinha opinião formada e interesse prévio no caso, tendo conduzido a investigação e formulado as acusações. Isso tornava impossível uma avaliação neutra dos fatos.
O inquisidor não buscava a verdade de maneira imparcial, mas sim a confirmação da culpa do acusado, frequentemente utilizando métodos coercitivos, como a intimidação e a tortura. Ou seja, em vez de presunção de inocência, havia a presunção de culpa. O processo partia do pressuposto de que o réu era culpado.
Os julgamentos da Inquisição também eram marcados pela ausência de contraditório, uma vez que restringiam severamente o direito de defesa. Os acusados raramente tinham acesso às acusações completas, ou mesmo aos nomes das testemunhas, e qualquer tentativa de contestação era interpretada como justificativa para um agravamento da pena.
Cordero via esse modelo como uma perversão do Direito, já que transformava o sistema judicial em uma ferramenta de repressão e doutrinação da sociedade. Ele enfatiza que a confusão entre os papéis de acusador e juiz não era um “erro” do sistema, mas sim um mecanismo deliberado, usado não para buscar a justiça, mas para reforçar o poder e a autoridade da Igreja.
Evidentemente, as teses de Franco Cordero sobre a confusão entre os papéis de acusador e juiz na Inquisição podem ser evocadas para analisar aspectos da atuação do STF no Brasil, especialmente em casos onde sua função extrapola os limites tradicionais do papel de uma corte constitucional.
Assim como Cordero critica a centralização de funções no inquisidor, parte das críticas aos ministros do STF envolve a acumulação de funções vistas como conflitantes. Aos olhos de boa parte da sociedade, essa acumulação compromete a imparcialidade da Corte, que parece inclinada não a julgar de forma isenta, mas a meramente confirmar a própria hipótese inicial, como acontecia nos tribunais da Inquisição. O veredito já parece decidido antes mesmo do julgamento.
De forma análoga, a crítica à presunção de culpa, que nos processos inquisitoriais reduzia o espaço para defesa, também se aplica ao Brasil de 2025. Não são poucas as críticas a medidas do STF (prisões preventivas, bloqueio de contas, censura prévia, etc.) que podem ser interpretadas como punições antecipadas. O uso de decisões monocráticas para determinar sanções sem o julgamento do colegiado é outro ponto de debate.
Críticos também sugerem que o STF atua como árbitro em disputas políticas de uma maneira que extrapola em muito o seu papel técnico-constitucional. Decisões que interferem diretamente em políticas públicas, reformas econômicas, mudanças nos costumes ou disputas entre Executivo e Legislativo são vistas como uma ampliação indevida do papel da Corte, violando a separação dos Poderes.
Cordero, seguramente, apontaria o risco de uma corte que assume claramente o papel de protagonista político, pois isso também compromete sua credibilidade como instituição. Para o jurista italiano, a aplicação de medidas legais deve ser rigorosamente fundamentada na lei, de forma proporcional, discreta e seguindo todos os ritos, e não ser usada de maneira apressada para lidar com crises específicas.
Conteúdo editado por: Aline Menezes




