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Até quando as redes sociais vão proteger criminosos anônimos?
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Não é do dia para a noite que perfis anônimos passam a agir como legislador, polícia, promotor, juiz, carrasco, CMO, CEO, padre, pastor e pai-de-santo de todo um país. Aceitar a existência de um fenômeno como o Sleeping Giants, que discorda de algo em uma empresa e se mete a tentar fechar outra, é uma construção. A popularização das redes sociais é recente e estamos no momento de decidir se essas empresas vão ter de obedecer leis como todas as demais ou se continuam inimputáveis.

O anonimato nas redes começa confundido com o conceito de pseudônimo. Quando, há alguns anos, começamos a postar coisas pessoais, alguns tiveram dissabores e decidiram não mais se expor. Um pseudônimo foi a saída de diversas pessoas para ficar por dentro das conversas sem criar problemas desnecessários. Só que essa situação é muito tentadora e não faltou quem enxergasse no anonimato uma forma de colocar para fora o pior lado da alma. Eles puseram e as redes acobertaram. Chegamos agora ao ápice do poder: um anônimo que empresta credibilidade de pessoas reais e consegue dobrar grandes empresas a tomar atitudes sem sentido via chantagem.

Temos no topo da pirâmide do poder dos anônimos brasileiros a patrulha Sleeping Giants, que parece sentir-se no direito de reescrever a legislação ao melhor estilo "l'etat c'est moi". Tem quem aceite. Há, por outro lado, os estandartes da crueldade, que utilizam-se do anonimato nas redes para criminalidade comum. Pouco importa a ação, são todos protegidos pelas redes sociais mesmo à revelia da Justiça.

Na semana passada, o Tribunal Regional Federal da 1a Região reiterou a condenação do Facebook a multa diária de R$ 10 mil até fornecer à Justiça os dados de usuários anônimos envolvidos numa investigação de tráfico de drogas em Vilhena, interior de Rondônia. Desde o ano passado a Justiça Federal havia decidido em primeira instância bloquear R$ 625 mil da empresa e impor a multa diária. O Facebook não pagou nem revelou os dados dos usuários anônimos, decidiu recorrer.

Longe de ser uma prática apenas desta empresa e neste caso, trata-se de comportamento padrão de todas as redes sociais em praticamente todos os casos judiciais envolvendo requisição de dados de perfis anônimos no Brasil. Digo quase porque pode haver uma exceção que confirme a regra. Twitter, Facebook, Instagram, YouTube e Google recusam-se por regra a identificar anônimos, qualquer que seja a gravidade do caso.

Os especialistas em tecnologia que você tem ouvido dizer da inexistência de total anonimato nas redes e das diversas formas de identificar quem está por trás de um perfil anônimo estão certos, não se enganaram. A questão é que entre a possibilidade de fornecer dados necessários ao Poder Público do Brasil e a conveniência para as redes sociais existe um abismo. Até hoje, as redes sociais alegam o que os antigos provedores de internet discada faziam há 20 anos: a sede delas é nos Estados Unidos.

Em 2001, Brasil e Estados Unidos assinaram o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, que se tornou lei aqui, o decreto 3810/2001. Naquela época, o Vale do Silício ainda começava a ser o que é hoje. Não existiam as redes sociais e usávamos muito menos internet, para muito menos funções. Hoje, as gigantes da tecnologia contratam os melhores escritórios de advogados do Brasil para seguir uma estrutura de defesa que vai questionando se o uso do tal acordo é obrigatório. Caso o pedido se baseie no acordo, alegam que naquele caso não se aplica. Caso não cite o acordo, o reivindicam. O problema não é das leis brasileiras, há uma dificuldade mundial em fazer com que essas empresas cumpram leis.

Nos processos judiciais brasileiros defendendo manter em sigilo a identidade dos anjos por trás de perfis anônimos que praticam de tráfico de drogas a exposição de vítimas de assédio sexual no transporte público, os advogados das redes sociais parecem estar na Corte de Haia. Falam em soberania nacional, princípios de não intervenção e devido processo legal. Só não explicam por que julgam não ter de obedecer a lei de país nenhum.

Jogar com as brechas, pelo menos no Brasil, é uma forma de ganhar tempo. Os Estados Unidos já decidiram por quanto tempo os provedores têm o dever de armazenar dados e o Brasil não. Se empurram o processo com a barriga o suficiente, quando sair a decisão, dizem que não têm mais os dados porque a sede é nos EUA e já passou o prazo para mantê-los gravados. Há alguns anos essa ladainha não tem mais nenhuma chance nos tribunais superiores e em muitos tribunais de primeira instância. Na segunda instância, nos Tribunais de Justiça, ainda cola.

Durante algum tempo, mesmo depois de estabelecer os primeiros escritórios, as redes sociais nem tinham empresa aberta no Brasil. Pressionadas pelas autoridades, todas foram obrigadas a legalizar as operações. Agora, pressionadas a se legalizar, acharam uma desculpa impressionante: a sede de controle de dados é nos EUA. É importante ter em mente que não se trata de uma grande conspiração ou de maldade, mas da oportunidade única de atuar em vários países sem cumprir a lei de nenhum, maximizar lucros e não ressarcir prejuízos causados pela atividade.

O pulo do gato já era previsto há 20 anos. Por isso, o artigo 11 do Acordo entre Brasil e EUA já prevê que os dois países podem requisitar às empresas originárias do outro país operando em seu território dados de comunicação telemática, não importando onde esteja localizada a sede de controle de dados. Se sabem disso, por que argumentam? Porque ganham tempo. Argumentam, o Minsitério Público ou o advogado da vítima precisam responder, o magistrado analisa e precisa responder, passa-se aí mais um aninho rumo ao sumiço dos dados.

Dar a possibilidade da operação de perfis anônimos na plataforma é uma forma de maximizar lucros nos países democráticos. Dessa forma, as redes sociais podem inflacionar a própria importância alegando ter mais usuários do que têm e permitir o uso de todo tipo de manipulação de usuários reais para que se engajem de forma obsessiva na interação, cliquem em anúncios e mostrem números para as anunciantes. Haverá um ponto de equilíbrio em que esse processo será feito dentro da lei e dará lucro, mas não tanto como hoje. Até lá, as Big Techs desfrutam dos benefícios de não obedecer regras.

O Superior Tribunal de Justiça já botou um ponto final nessa brincadeira em 2013, numa ação em que o Google se recusava a dar os dados de um usuário do Gmail investigado por corrupção e lavagem de dinheiro. “A ordem pode ser perfeitamente cumprida, em território brasileiro, desde que haja boa vontade da empresa. Impossibilidade técnica, sabe-se, não há”, disse a ministra Laurita Vaz, que lembrou o óbvio: “por estar instituída e em atuação no País, a pessoa jurídica multinacional submete-se, necessariamente, às leis brasileiras".

O baile nos tribunais segue com a mesma coreografia. No STF, a lendária Ação Direta de Constitucionalidade 51, que ouve diversos setores da sociedade em audiências públicas há anos, pretende dar uma solução final à história. Hoje, um dos mais prestigiados e caros escritórios de advocacia do Brasil entrou na ação como representante do Facebook, utilizando a mesma argumentação do processo de Rondônia para tratar de outro caso, o do Inquérito 4828, conhecido como o das Fake News. O impasse não é o drama da suspensão de contas, é do fornecimento de dados.

Na última sexta-feira, a Polícia Federal solicitou dados de contas específicas pelo sistema eletrônico de solicitações de dados internacionais. O Facebook não forneceu e o ministro Alexandre de Morais anunciou que o CEO da empresa seria responsabilizado penalmente. A rede social entrou em outro processo, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, pedindo o que batizo de habeas corpus preventivo-coletivo: uma decisão de que nenhum funcionário da empresa pode ser punido por não fornecer dados pedidos pela Justiça brasileira.

Parece algo muito bem intencionado, em defesa da privacidade e da liberdade de expressão, como tudo o que ronda o excelente discurso do marketing das plataformas de redes sociais e seus anônimos de estimação. A narrativa é que são empresas novas, estão cientes dos danos que têm causado a indivíduos e a investigações, mas temem que ceder diante da pressão coloque em risco a liberdade de expressão de todo o planeta. Há quem acredite.

O que aconteceria se o anonimato e a privacidade prejudicassem o faturamento dessas empresas em vez de beneficiar de maneira desmedida? O mercado chinês, por exemplo, tem 800 milhões de usuários de redes sociais e é fechado para essas plataformas. No entanto, elas têm todos os dados de diversos indivíduos em postos estratégicos para o Partido Comunista Chinês, tanto a resistência opositora do regime quanto a competição econômica. Se esses dados virassem moeda de troca para explorar esse mercado, a resistência feita nos países democráticos se repetiria?

No final de setembro, o jornal inglês The Guardian revelou que todas essas redes sociais defensoras da liberdade são acusadas pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos de fornecer dados dos usuários de Hong Kong envolvidos em protestos à polícia local, que é do Partido Comunista Chinês. A cooperação seria forçada, decorrente de uma nova lei local que obriga empresas estrangeiras ao compartilhamento de dados em caso de segurança nacional.

Segundo o jornal inglês, as redes sociais negaram ter fornecido dados de rebeldes de Hong Kong. A única empresa a realmente dar uma resposta foi a Microsoft: “Como faríamos com qualquer nova legislação, estamos revisando a nova lei para entender suas implicações. No passado, normalmente recebíamos apenas um número relativamente pequeno de solicitações das autoridades de Hong Kong, mas estamos pausando nossas respostas a essas solicitações enquanto conduzimos nossa análise. ”

A denúncia deixou ativistas pró-democracia em pânico porque isso já aconteceu antes. Em 2004, o governo da China pediu ao Yahoo os dados dos usuários das contas que estavam informando a usuários norte-americanos das proibições à cobertura de imprensa no aniversário da praça da Paz Celestial. O Yahoo entregou o jornalista Shi Tao, preso por 10 anos, e o dissidente Wang Xiaoning, preso por 8 anos. Depois, a empresa pediu desculpas.

O negócio das plataformas é o marketing direcionado ou até a propaganda direcionada a partir dos dados coletados de usuários modelados por Inteligência Artificial. Esses dados são bem mais do que você posta. Incluem, por exemplo, tudo o que o microfone do seu celular capta até quando ele está desligado. Dados são o petróleo do século XXI e é determinante ter poder sobre eles. Por isso, a relação tão íntima e apaixonada das redes sociais com os dados dos anônimos.

Nas ditaduras, o anonimato é uma isca. Os dados são o passaporte para pegar carona no poder estabelecido. Nos países democráticos, anônimos bem organizados podem implodir instituições, empresas, marcas e reputações. O poder desmedido deles confere um poder ainda maior às empresas de redes sociais. Não é a toa que os Sleeping Giants poupam essas empresas, movidas a discurso de ódio, para atacar outras, como a Gazeta do Povo.

A atual jihad da milícia tupiniquim contra o jornal, que incluiu intimidação contra a minha pessoa, merece uma medalha olímpica de contorcionismo intelectual. Os Sleeping Giants dizem usar o anonimato e discurso de ódio para chantagear quem patrocina discurso de ódio que não for deles nem dos amigos. Sem fazer juízo de valor, a atual estratégia é capenga até neste contexto.

O tal discurso de ódio foi feito e monetizado em quais lugares? Um canal pessoal do YouTube. Também foi feito, sem monetização, numa conta do Twitter. Nenhuma das duas redes derrubou o discurso. O YouTube, que desmonetizou meu vídeo questionando por que o Sleeping Giants me deu a honra de ser a única assalariada nominalmente cobrada por eles, não desmonetizou o vídeo original nem impediu que ele recebesse contribuições por superchat. Por que se poupa quem faz e monetiza o discurso de ódio? Maldosos diriam que a relação íntima entre anônimos e redes sociais tem algo com isso, mas eu aposto que foi só um engano.

Os anônimos Sleeping Giants pouparam as empresas que protegem anônimos e estão divulgando e monetizando discurso de ódio. Passaram a ir atrás de empresas que não participaram de nada mas empregam o dono do canal e exigir a demissão dele, sem explicar como isso iria desmonetizar o discurso de ódio que não foi feito nessas empresas. Decide então expor uma mulher que trabalha na mesma empresa a receber diariamente o discurso de ódio dos seguidores da conta anônima sem jamais se posicionar contra os ataques.

Vivemos uma distopia completa. Enquanto houver otário, malandro não morre de fome. Ser otário é escolha individual, do cidadão, não das instituições de Estado, autoridades públicas e líderes. A aliança entre perfis anônimos destinados a delinquir e as redes sociais já ultrapassou todos os limites mas aposto que ainda é capaz de produzir mais estragos.

Já temos pessoas sérias confiando nas boas intenções de um grupo como o Sleeping Giants mesmo diante das ações disparatadas e da irresponsabilidade com as consequências. Assusta ver sempre a proposital inação diante do chiqueiro moral que se torna a reação da turba adoradora dos anônimos a quem os confronta. Anonimato não pode ser jamais combinado com poder, é a senha da barbárie.

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