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A Via-Sacra no Coliseu de 2004 foi a última de que João Paulo II participou pessoalmente; no ano seguinte, as imagens do papa doente em sua capela, segurando um crucifixo enquanto acompanhava a cerimônia pela televisão, correram o mundo.
A Via-Sacra no Coliseu de 2004 foi a última de que João Paulo II participou pessoalmente; no ano seguinte, as imagens do papa doente em sua capela, segurando um crucifixo enquanto acompanhava a cerimônia pela televisão, correram o mundo.| Foto: EPA/Patrick Hertzog

Poder participar da Semana Santa em Roma é um privilégio com o qual Deus me abençoou duas vezes até agora, em 1998 e 2010. Em ambas as ocasiões, além das cerimônias litúrgicas do Tríduo Pascal, pude participar também da Via-Sacra no Coliseu. Mas, para mim, a Via-Sacra mais marcante não foi nenhuma que eu presenciei pessoalmente, mas a de 2005, que completou 19 anos ontem, segunda-feira. A imagem do papa João Paulo II em sua capela, já bastante afetado pela doença, acompanhando a transmissão televisiva da procissão enquanto segurava um crucifixo, é inesquecível. Aquela seria a última Semana Santa de João Paulo II entre nós; ele faleceria oito dias depois, na véspera do domingo da Divina Misericórdia.

Mas aquela Via-Sacra não entraria para a história apenas pelas imagens do papa – ou melhor, do Cristo crucificado, já que João Paulo II sempre apareceu de costas para a câmera; segundo George Weigel, biógrafo papal, não se tratava de esconder seu sofrimento, mas de “fazer o que ele sempre fez, que era dizer não ‘olhem para mim’, mas ‘olhem para Cristo’”. Muitos se lembram da Via-Sacra de 2005 também pelas meditações redigidas pelo então cardeal Joseph Ratzinger, que menos de um mês depois seria eleito sucessor de João Paulo II. “Quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele!”, afirmava Ratzinger ao meditar sobre a nona estação, a terceira queda de Jesus no caminho para o Calvário. A frase causou furor e foi entendida como uma crítica direta aos padres abusadores, que tanto mal haviam feito e cujos escândalos estavam estourando freneticamente naquele início de século 21. A citação completa, no entanto, revela muito mais:

“Quantas vezes se abusa do Santíssimo Sacramento da sua presença, frequentemente como está vazio e ruim o coração onde Ele entra! Tantas vezes celebramos apenas nós próprios, sem nos darmos conta sequer d’Ele! Quantas vezes se contorce e abusa da sua Palavra! Quão pouca fé existe em tantas teorias, quantas palavras vazias! Quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele! Quanta soberba, quanta autossuficiência! Respeitamos tão pouco o sacramento da reconciliação, onde Ele está à nossa espera para nos levantar das nossas quedas!”

E hoje a Igreja segue sofrendo. Não apenas com os escândalos, alguns dos quais envolvendo celebridades como o padre Marko Rupnik, mas com tudo o mais que Ratzinger descrevia. Gente de muita soberba e pouca fé querendo levar a Igreja para caminhos que não são os de Cristo, declarando “desatualizados” os ensinamentos católicos sobre moral, casamento e família, e fazendo tudo isso a partir de posições privilegiadas, como relatorias de Sínodos e presidências de academias pontifícias. Se em 2005 Ratzinger já dizia ao Senhor que “muitas vezes a vossa Igreja parece-nos uma barca que está para afundar, uma barca que mete água por todos os lados”, quanto mais em 2024.

Vivamos bem o Tríduo Pascal, e ao menos por esses dias tentemos esquecer um pouquinho dos Hollerichs, dos Paglias, dos Bätzings, dos Martins para olhar apenas para o Cristo que se doa na Eucaristia, que sofre por nós na cruz e que ressurge vencendo a morte

Sabemos, no entanto, que a história não termina aí. “Vós erguer-Vos-eis. Vós levantastes-Vos, ressuscitastes e podeis levantar-nos também a nós”, diz o então cardeal na mesma oração naquela Via-Sacra. Na 13.ª estação, a descida da cruz, Ratzinger continuará sua mensagem de esperança:

“A fé não está completamente morta, não se pôs totalmente o sol. Quantas vezes parece que Vós estais a dormir. Como é fácil a nós, homens, afastar-nos dizendo para nós mesmos:  Deus morreu. Fazei com que, na hora da escuridão, reconheçamos que em todo o caso Vós estais lá. Não nos deixeis sozinhos quando tendemos a desanimar. Ajudai-nos a não deixar-Vos sozinho.”

Deus não abandona sua Igreja, nem mesmo quando parece que ela está abandonada. A esse propósito, e nem de longe tendo a pretensão de me equiparar a Ratzinger, recordo uma coisinha que eu mesmo escrevi depois de ter voltado de uma outra viagem, em 2014. Os leitores que conhecem Lisboa hão de ter visitado a igreja de São Domingos, no bairro do Rossio, cujo interior parece “derretido”. Relatei no Facebook a impressão de ter entrado nessa igreja exatamente no momento de uma adoração eucarística:

“Vimos muitas igrejas bonitas em Lisboa, mas uma que me deixou impressionado foi a de São Domingos, no Rossio. É uma sobrevivente: passou pelo terremoto de 1755 e por um grande incêndio em 1959. Depois de um tempo, resolveram deixar a igreja como estava. O resultado é esse, colunas danificadas, imagens desfiguradas. Mas, quando chegamos lá, estava terminando a missa e começou a adoração ao Santíssimo Sacramento. O ostensório sobre o altar, naquela igreja maltratada pelos elementos, mostra que, mesmo que tudo à nossa volta esteja desmoronando ou derretendo, Cristo segue firme ao nosso lado.”

A igreja de São Domingos, no bairro do Rossio, em Lisboa, em foto de 2014. Foto: Marcio Antonio Campos/Gazeta do Povo
A igreja de São Domingos, no bairro do Rossio, em Lisboa, em foto de 2014. Foto: Marcio Antonio Campos/Gazeta do Povo

Assim é. Meu desejo para os leitores nesta Semana Santa é que vivamos bem o Tríduo Pascal, e que ao menos por esses dias tentemos esquecer um pouquinho dos Hollerichs, dos Paglias, dos Bätzings, dos Martins para olhar apenas para o Cristo que se doa na Eucaristia, o Cristo que sofre por nós na cruz e o Cristo que ressurge vencendo a morte. Ele está sempre ao nosso lado, e ao lado de Sua Igreja; peçamos, como escreveu o cardeal Ratzinger, que ele não nos deixe sozinhos e que não O deixemos sozinho também. Uma santa Páscoa a todos!

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