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Adélia Prado
Adélia Prado: “porque o zelo do espírito é sem meiguices”.| Foto: Reprodução/ Twitter

Para minha surpresa, na terça-feira (14) muitos leitores reagiram ao texto “Zema não é melhor nem pior por não conhecer Adélia Prado” exaltando a própria ignorância. “Quem é essa sujeita?”, perguntou um, com inegável desprezo. “Não conheço e não me faz falta”, disse outro. Ou outros, porque os clichês disfarçados de argumento ou refutação se reproduzem por cissiparidade.

Reprovável, mas compreensível – e eu não quero briga! Sobretudo quando se pensa na corrupção que assola também o mundinho da cultura. E aqui uso a palavra corrupção num sentido mais amplo. A corrupção da vaidade representada pelos poetas-de-auditório, por exemplo. A corrupção intelectual de transformar todo espetáculo ou livro em peça de propaganda política. A corrupção espiritual de se promover tatuando partes recôndidas do corpo. E por aí vai.

De fato não vivemos uma época boa para falar de cultura; a menos que seja para apontar o dedo e, escandalizados, eterna e constantemente escandalizados, gritarmos que é! um! absurdo! essa! atriz! receber! milhões! para! montar! uma! peça! que! ninguém! vai! ver! Daí porque muita gente, no afã de posicionar do lado certo dessa contenda, recorre à saída fácil do “não li e não gostei”.

Mas quero crer que o que parece anti-intelectualismo é, na verdade, apenas mágoa. O brasileiro está machucado. O brasileiro se sente traído por gerações de poetas, escritores, pintores, arquitetos, músicos, compositores, atores, dramaturgos, cineastas e críticos (provavelmente me esqueci de alguma categoria) comprometidos em viver da arte à custa da sociedade. Como se fôssemos obrigados a pagar pelo reconhecimento de vários medíocres famosos justamente por sua mediocridade.

Epifanias

Em se tratando de Adélia Prado, a notável desconhecida que a esquerda usou para menosprezar a inteligência de um inimigo político, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, é uma grandessíssima pena que ela seja reduzida a um papel que certamente não lhe compete: o de sarrafo cultural a separar homens cultos de incultos.

Adélia Prado é mais do que isso. E também é menos. É uma poetisa que não usa sua vocação para alcançar o sucesso como o entendemos. E, em sua discrição admirável, ela é necessária. Principalmente aos que desejam trocar a indignação permanente (e impotente) pela contemplação e transcendência.

Por isso vou aproveitar que é carnaval e você está com tempo para lhes apresentar dois poemas de Adélia Prado. Minha esperança é de que esses poemas possam revelar um pouco da poetisa das epifanias – que é aquela descoberta súbita de que somos filhos de Deus. Aliás, a obra de Adélia Prado está cheia de referências religiosas caras aos cristãos. Por isso ousaria dizer que é um crime de lesa-inteligência ignorar Adélia Prado, ainda mais num ar literário majoritariamente materialista e ateu como o que somos obrigados a respirar hoje em dia.

O primeiro poema é “Órfã na Janela”. E aqui sugiro que você leia o poema tendo em mente que a poesia exige do leitor algo mais do que o consumo rápido a que estamos acostumados. É um poema, não um tuíte; é um poema, não uma crônica. Às vezes é preciso ler uma, duas, três, dez vezes. (Mas se você preferir desistir e simplesmente entrar no Twitter para se deparar com a mais recente análise política de um influencer qualquer... Sinta-se à vontade também).

Órfã na janela

Estou com saudades de Deus,
uma saudade tão funda que me seca.
Estou como palha e nada me conforta.
O amor hoje está tão pobre, tem gripe,
meu hálito não está para salões.
Fico em casa esperando Deus,
cavacando a unha, fungando meu nariz choroso,
querendo um pôster dele, no meu quarto,
gostando igual antigamente
da palavra crepúsculo.
Que o mundo é desterro eu toda vida soube.
Quando o sol vai-se embora é pra casa de Deus que vai,
pra casa onde está meu pai.

Antes de prosseguir, quero falar com você que chegou até aqui e disse ou pensou: “Tá, e daí?”. Daí nada, eu responderia, talvez com um “ué” de falsa indignação no final da resposta. A poesia é feita para a contemplação e ninguém contempla uma paisagem e diz “tá, e daí?”. Se você leu, e leu com um cuidado, é bem possível que cada uma das palavras e versos tenham evocados sentidos e memórias diferentes. É na compreensão íntima disso que reside a Beleza.

De volta ao poema, nos primeiros dois versos me vejo perdido em busca da aceitação que o mundo me nega. E é melhor que me negue mesmo. Como também “meu hálito não está para salões”, me vejo em casa, esperando Deus, curtindo minha melancoliazinha, chafurdando na minha miséria, em vez de tomar vergonha na cara e buscá-Lo.

Já para o fim, há esse momento triste e comum de autocomiseração, quando a gente se dá conta de que “o mundo é desterro”. E os versos finais podem ser lidos como um chamado para que acompanhemos o ritmo do sol e do dia e da própria vida, voltando sempre para a casa de Deus. Agora eu o convido a ler o segundo poema, intitulado “Poema Esquisito”.

Poema Esquisito

Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
Ninguém tem culpa.
Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.
Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros,
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia.

Esse é um dos meus preferidos. Mas dói ler. Ah, se dói. No poema, Adélia Prado começa anunciando a excepcionalidade da dor de cabeça, que nada tem a ver com uma enxaqueca e na verdade é uma forma de dizer que ela raramente pensa na morte. Daí ela entra no assunto propriamente dito: como a orfandade se relaciona com a eternidade. Gosto principalmente do trecho em que ela diz que nasceu no lugar onde estão enterrados os pais “um pé de saudade roxa” e que “quem plantou foi o vento, a água da chuva”, para logo em seguida desconcertar o leitor com um verso simples: “quem vai matar é o sol”.

Na parte final do poema, vem um quê de culpa, imediatamente aplacada pela triste realidade da morte. “Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?”, pergunta Adélia Prado, recorrendo depois ao que meu amigo João Filho descreveu muito bem: um gemido longo e sofrido que mal cabe em todos aqueles ôôôôs. O gemido é aplacado pela voz tenaz e dura dos pais porque, atenção!, “o zelo do espírito é sem meiguices” – algo que o verso final, cheio de... meiguice, contradiz.

Se você chegou até aqui, obrigado. Essa foi minha tentativa de despertar seu interesse pela obra de Adélia Prado. Agora voltemos ao carnaval.

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