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Fracos no bem
| Foto: Andi Graf/Pixabay

Os acontecimentos recentes em duas escolas do nosso país, em Blumenau e em São Paulo, já foram noticiados o suficiente, e o terror que inspiraram já se propagou bastante, de modo que eu posso me desobrigar, nesta ocasião, de narrá-los, seja em geral seja em pormenor, e também de expressar a atrocidade, o horror e a crueldade daqueles eventos. O que pretendo fazer aqui, assim como fiz uma semana atrás em minhas redes sociais, é rechaçar em conjunto toda a série de interpretações falaciosas, subterfúgios e soluções à moda brasileira – umas como que “gambiarras sociais” – para o problema que está no fundo e na fonte desses episódios sangrentos. E para isso eu gostaria de lembrar, uma vez mais, e desta vez na íntegra, um pequeno texto: uma carta escrita por um jovem delinquente alemão que, já nos anos 60, expressava com irredutível realismo a situação de muitas crianças e jovens verdadeiramente abandonados. Ela veio a público no artigo Juventude desenfreada, de Erwin Wolffenbüttel, na Revista de psicologia normal e patológica, 1961, n. 1, pp. 2–3, e leio citada por Rafael Llano Cifuentes, em seu livro Grandeza de coração (Quadrante, 1996, pp. 5–6). Eis a carta (qualquer semelhança com o que se viu ultimamente não é mera coincidência):

“Porque vocês são fracos no bem, deram-nos o nome de fortes no mal, e com isso condenaram toda uma geração contra a qual pecaram.
Nós lhes concedemos dois decênios para nos fazerem fortes, fortes no amor, fortes na vontade; vocês, porém, fizeram-nos fortes no mal, porque são fracos no bem.
Não nos indicaram caminho algum que tivesse sentido, porque vocês mesmos não o conheciam, e não quiseram procurá-lo, porque são fracos.
Com o seu ‘não’ vacilante, disseram-nos ‘sim’, a fim de pouparem os seus frágeis nervos. E a isso deram o nome de ‘amor’.
Porque são fracos, compraram de nós o seu sossego. Quando éramos pequenos, vocês davam-nos dinheiro para irmos ao cinema ou comprarmos sorvete. Com isso, estavam prestando um serviço, não a nós, mas à sua própria comodidade, porque são fracos. Fracos no amor, fracos na paciência, fracos na esperança, fracos na fé.
Nós somos fortes no mal, mas as nossas almas têm apenas a metade da idade de vocês. Nós fazemos barulho, mas é para não termos de chorar por todas aquelas coisas que vocês deixaram de nos ensinar. Sabemos ler e contar, mas vocês não nos ensinaram a enfrentar a vida, a ser homens.
Estaríamos até dispostos a crer em Deus, no Deus infinitamente bom e forte, que tudo compreendesse e de nós esperasse que fôssemos bons, mas vocês não nos mostraram um só homem que fosse bom por crer em Deus. Vocês ganhavam dinheiro com serviços religiosos, murmuravam as suas orações segundo a velha rotina... Será que nós não somos as caricaturas dessa existência que vocês levavam, toda feita de mentiras?
Nós somos desordeiros públicos e fazemos muito barulho; vocês, porém, lutam às ocultas, estrangulam-se comercialmente uns aos outros e armam intrigas para conquistar posições mais rendosas.
Em vez de nos ameaçarem com bastões de borracha, coloquem-nos frente a frente com homens de verdade, que acreditem em Deus e que nos mostrem o caminho certo, não com palavras e sim com a vida.
Mas ai! Vocês são fracos no bem: os que são fortes no bem vão para a mata virgem e curam os negros da África – porque eles desprezam vocês, assim como nós os desprezamos. Porque vocês são fracos no bem e nós somos fortes no mal.
Mãe, procure rezar! Porque esses homens fracos estão armados de pistolas.”

A primeira e mais básica verdade que um texto como este lança em nossa cara é a seguinte: A responsabilidade pelos nossos filhos é inteiramente nossa. Não adianta reclamar das escolas. Pode-se, sim, e talvez até se deva, reclamar delas, criticá-las, e condenar muito do que se passa ali dentro. Mas não adianta fazer isso, simplesmente porque é no núcleo familiar que se educa uma criança, pelo menos até os 12 anos. A melhor maneira de termos um “mundo melhor”, em que não sejam comuns nem esperados gestos de desespero e maldade como os que sofremos, é educando bem os nossos próprios filhos – os nossos, a quem temos muito perto, ao alcance dos olhos e das mãos, e por quem somos inescapavelmente responsáveis. Não adianta queixar-se e protestar que o mundo se tornou um lugar muito ruim, se não colocamos todo o nosso empenho naquilo que nos compete, como pais e educadores. Esse tipo de discurso pode soar um pouco boboca hoje em dia, como algo ultrapassado, uma esperança da geração passada cujas palavras soam como um inócuo manifesto sem ação. Mas não, há muita verdade nessas palavras, e continua certeiro o antigo ditado segundo o qual uma mãe, embalando o bebê, carrega nos braços o futuro da nação.

A melhor maneira de termos um “mundo melhor”, em que não sejam comuns nem esperados gestos de desespero e maldade como os que sofremos, é educando bem os nossos próprios filhos

Por pior que se torne o ambiente social ao redor, por mais maléficas que sejam as influências culturais – desde as mais difusas, que bombardeiam nossos olhos e ouvidos sem qualquer anuência da nossa parte, até as mais próximas, que vêm por meio de familiares descabeçados ou pela própria escola –, se os pais se empenharem em preencher as lacunas da educação infantil, em atender, como exige sua responsabilidade de pais, as demandas do desenvolvimento infantil, a influência do ambiente externo será pequena. A guerra pode ser dura, é verdade, mas os pais têm grande vantagem sobre o resto do mundo, quando assumem a valer o seu papel.

A grande tragédia é que, por inúmeras razões, os pais não estão assumindo seu papel, e muitos deles, por não terem mais clareza de qual papel seja esse, ficam quase sem condições de assumi-lo. E assim, aquelas lacunas da educação moral e afetiva das crianças pequenas não são preenchidas, em sua maioria, por conta de “respeitos humanos”, isto é, por medo do julgamento das outras pessoas, medo da retaliação social e de ter de enfrentar outros agentes que se põem a interferir na educação de nossos filhos. Quando não por isso, é por conta de idéias equivocadas inoculadas pela cultura – e absorvidas de maneira mais ou menos refletida, não importa – sobre a natureza humana e, portanto, sobre a natureza da educação. Estão entre elas o “medo de traumatizar”, que vem de uma visão romântica sobre a infância, e também o desejo de “respeitar a liberdade de escolha das crianças”, advindo da mesma visão romântica, como se a criança fosse capaz de cuidar de si mesma sozinha, de inteligir e escolher o que é realmente bom para si a cada momento, como se ter todos os desejos atendidos fosse “liberdade”, e pior, isentando-se do dever de educar e roubando da criança o direito de ser orientada por seus pais.

Outras ideias desse tipo são “não querer educar os filhos numa bolha”, ou então “educá-los para o mundo”, ignorando a necessidade de que o lar da infância seja, para a criança, um lugar de treinamento, um porto de segurança e tranquilidade no qual fortalecerá as virtudes que, mais tarde, exercerá sozinha na dificuldade do mundo; e ignorando, também, que ficar dentro do que os outros podem chamar de “bolha” é, muitas vezes, nada além de não compactuar com o que é mau, e garantir a saúde e a segurança dos nossos filhos. “E a isso deram o nome de amor.”

Essas frases não são expressão de uma opção educativa, nem mesmo de uma teoria pedagógica, sobre a qual os pais tenham pensado e pela qual tenham optado, como sendo a que lhes parecia a melhor. São meros chavões, são desculpas, pretextos, evasivas verbais para a fraqueza no bem, e o seu resultado é uma geração de pais que estão longe de serem protagonistas na educação dos filhos. Ora, se é assim, o que o mundo espera? Acaso esperamos pessoas fortes, maduras, centradas, amorosas, dedicadas e corajosas? Por que o espanto, quando uma dessas crianças dá um grito de desespero e, como diz a carta, se torna um desordeiro público, e “faz muito barulho para não ter de chorar por aquilo que não lhe ensinaram”? A sentença, meus caros, é muito simples: A mudança tem de vir de dentro das nossas casas. Ou você educa o seu filho para ser forte no bem, ou o mundo – por meio de suas muitas telas – o educará para ser forte no mal.

O ser humano, por sua própria constituição, não pode ficar parado em seus processos. Não existe repouso neste mundo; o descanso do homem é tão-somente após a morte. Se acredita estar satisfeito em sua condição e deixa o curso das coisas comandar, por si mesmo, os processos, não haverá progresso, mas também não haverá repouso, nem permanência daquele estado: haverá necessariamente retrocesso. A vida humana é como se fosse uma escada rolante descendente, pela qual devemos subir: o repouso nos faz descer. É preciso fazer algum esforço ascensional apenas para se manter parado, que dirá para efetivamente subir. Essa é a autoeducação, a ascese que cada um deve impor a si mesmo; no caso das crianças, o nosso trabalho em sua educação consiste em mantê-las sempre andando. Elas devem andar e aprender a andar com as próprias pernas, certamente, mas cabe a nós estimulá-las e conduzi-las – ora, conduzi-las para cima, em direção ao bem. Quando somos fracos ou vacilantes, vacilantes no “sim” ou no “não” para nos poupar o esforço e os incômodos dessa tarefa, em suma, quando somos fracos no bem, estamos ensinando essas crianças – não há saída – a serem fortes no mal.

Ademais, é constitutivo do ser humano também encontrar subterfúgios, evasivas verbais, justificativas mentais para a sua conduta. Damos o nome de “amor” àquelas ideias, e dizemos: “por que privar o coitadinho dessas coisas? Quero dar a ele tudo que eu não pude ter!”, “por que privá-lo das tecnologias e das novidades? Senão vai ficar deslocado da turma, sem participar das conversas”, e “por que obrigá-lo a comer legumes, se cada um tem o seu gosto e pode escolher o que prefere?”, ou “por que obrigá-lo a ler livros, se hoje há tantos meios de adquirir conhecimentos diferentes?”... Na verdade, lá no fundo, os pais dizem sim às telas dos celulares e tablets, aos videogames, às séries da Netflix e aos vídeos no YouTube, aos plays dos prédios sem supervisão, a idas a festas suspeitas, ao uso de roupas questionáveis e à ingestão de alimentos ruins, para a sua comodidade!

Ou você educa o seu filho para ser forte no bem, ou o mundo – por meio de suas muitas telas – o educará para ser forte no mal

“Porque são fracos, compraram de nós o seu sossego (...) prestando serviço, não aos filhos, mas à sua própria comodidade”. É claro que ninguém diz isso porque, se fosse capaz de dizer, significaria que já fez um profundo exame de sua consciência e já assumiu sua verdadeira motivação, o que seria um ótimo começo. A escada rolante da vida, porém, faz o ser humano primeiro agir, atendendo aos seus desejos menos nobres, e depois verbalizar justificativas melhores para suas ações, nas quais, se tiver sucesso, ele mesmo vai acreditar e esquecer que inventou. Acaba, então, pensando conforme agiu, e não agindo conforme deveria ter pensado antes, escolhido seu valor e se decidido – porque isso exige força de vontade, mas não são “fortes no amor, fortes na vontade”, e assim tornam seus filhos “fortes no mal, porque são fracos no bem”.

Quando se pensa em colocar detectores de metal nas portas das escolas já é tarde, pois deveriam ter detectado antes o mal que entrava no coração. Tenham peito, pais, tenham coragem de ser fortes no bem, mais fortes do que vocês acreditam ser capazes agora, porque a força lhes virá do alto para endossar a sua corajosa decisão. O problema dessas crianças é que elas estão sozinhas, estão abandonadas sozinhas na internet, e ali são expostas ao mal, à violência cruel, a imoralidades, a pornografia asquerosa. Talvez os senhores não saibam de fato, não tenham uma ideia clara do que está se passando no reino do YouTube, do Instagram e dos videogames. Não, senhores, não é “apenas” um desenho, “apenas” um programa bobo, que contém “algumas coisas não tão boas, mas que...”. Tudo o que está ali é ruim, muito ruim, péssimo, é o puro creme da porcaria.

Mesmo que sejam mal treinados para identificar o mal e não sejam capazes de ver com clareza, acreditem no que digo, pois eu vejo com clareza, e meu intuito aqui é alertá-los com veemência: Tirem seus filhos de diante das telas, por mais difícil que pareça, e que o seja, de fato, no início. Não os deixem jogar nem assistir, pois sim, isso os educará para serem adolescentes que praticam o mal. As luzes e vozes dessas telas os educarão no seu lugar. E não me dirijo aqui às pessoas totalmente desleixadas e indiferentes, que não me dariam ouvidos, mas aos pais que pretendem se preocupar, às mães que são “boazinhas”, mas que na verdade são fracas; aos pais que não são bons o suficiente, e não são fortes o suficiente no bem. Chega de desculpas, e assumam sua responsabilidade.

As objeções a esse meu manifesto são muitas, é claro, e eu já as ouvi muitas vezes. O cansaço, a dificuldade, o desespero. “Mas eu não queria ter esse filho...” – a isso devo responder que o problema é seu, literalmente, mesmo que a culpa não seja sua. Agora você já tem esse filho, é um fato consumado. E ele é sua responsabilidade. Não seja fraca no bem. “Mas meu marido não colabora...” – lamento, de verdade, pois seria bom que vocês fossem, juntos, a família de que essa criança precisa. Mas, se ele ainda não se deu conta do seu papel, faça você. Não pense “coitada de mim, que meu marido não me ajuda!”, e sim “coitado deste meu filho, que precisa ainda mais de mim”. Você precisa trabalhar, e para isso delegar o cuidado da casa e até de seu filho à escola, à sogra, à mãe, ou à babá? Orquestre as coisas pessoalmente, para que aconteçam do seu jeito quando você não está, e marque em cima. Você precisa conhecer o seu filho e ser o agente principal, a protagonista da educação dele. “Tempo de qualidade” é bom, certamente, mas não substitui a quantidade, a força da sua presença, e você não pode delegar aquela parte que compete somente a você.

E enfim, especialmente para os casos que motivaram este texto, nem doença e nem pobreza são desculpas. Quase a totalidade dos problemas psicológicos infantis advêm de como os pais lidam com a criança e, quanto à pobreza, é fácil constatar a existência de famílias na mesma situação social e financeira, mas muito diferentes quanto à sua inegociável força no bem. Aos que objetam que, dizendo essas coisas, encho o coração das mães de uma culpa indevida, porque na verdade sou rica e tenho uma grande rede de apoio, restrinjo-me a responder que não sabem nada a respeito de minha trajetória como mãe, e que, sim, fiz tudo sozinha por um bom tempo, e tive, sim, a tentação de me aliviar pondo as crianças na frente das telas. Mas não o fiz. Como consegui? Guardei bem fundo em meu coração que estava e está em jogo algo muito maior do que eu, e muito maior do que você; algo que nos transcende, e por isso nós não podemos ser fracos. Digo tudo isso porque eu vivi, eu sei que é possível, e sei que você também é capaz. Não importa quão difícil seja sua circunstância, quão ruim seja seu marido, ou quais sejam os problemas do seu filho: chega de desculpas, amadureça e assuma sua responsabilidade, e seja forte no bem. Se algo é um mal ou pode causar um mal, como é o caso da internet, não negocie nunca: seja forte no bem e diga um resoluto não.

Nem tudo é culpa dos pais, eu sei, e isso também é verdade. Mas não podemos mais negar a realidade da nossa geração. Precisamos assumi-la com franqueza e lançar, de fato, um manifesto em prol do bem, da força do bem. Temos cada um de nós de lutar para “colocá-los frente a frente com homens de verdade, que acreditem em Deus e mostrem o caminho certo, não com palavras, mas com a vida”. Nós devemos ser esses homens. Devemos ser fortes no amor, fortes na paciência, fortes na esperança, fortes na fé, e em vez de ensinar apenas a “ler e a contar”, e hoje vale acrescentar, de proporcionar a eles inglês, jiu-jitsu, cinema, iPhone novo, roupas novas, brinquedos melhores, bicicleta etc., devemos ensiná-los a serem gente, a “enfrentarem a vida”.

Se seu filho vai mal, avalie honestamente se você está de fato preocupado e presente, e não está delegando uma parte intransferível da sua responsabilidade. Esteja com ele, conheça-o, veja de que modo ele está absorvendo o mundo, e transmita seus valores

A afetividade é o aspecto mais importante na formação de uma criança: elas precisam se sentir amadas, e isso não acontece recebendo coisas materiais. Ganhar presentes é uma “linguagem do amor”, concedo, mas não se pode abusar dessa ideia e subvertê-la, pois a presença dos pais sempre será o maior e o verdadeiro presente. Se seu filho vai mal, avalie honestamente se você está de fato preocupado e presente, e não está delegando uma parte intransferível da sua responsabilidade. Esteja com ele, conheça-o, veja de que modo ele está absorvendo o mundo, e transmita seus valores, com conversas, brincadeiras e leituras, pois é assim que você vai ajudá-lo a viver na realidade – no mundo real, e não num mundo falso, virtual, no qual a maldade e a morte são macabras brincadeiras sem consequência.

Não importa o que vão pensar, o que vão dizer, e com quem você vai precisar se indispor para defender o seu bem mais precioso. Não abra exceção para o mal – e estar inserido no contexto do mal é mau. Não diga um “não” vacilante, mas vigoroso. Em vez de deixá-los avançar para o precipício, vamos “indicar-lhes um caminho que tenha sentido” e, para isso, devemos procurá-lo, e conhecê-lo, e ser fortes. Não deixe para depois, não amanhã, nem mais tarde. Aja agora: puxe a tomada, tire da frente e ponha no lixo, onde é o seu lugar, o celular do seu filho. Coragem, não seja fraco no bem.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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