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Ócio e festa
| Foto: Luis Pacheco/Pixabay

Nos dias que correm, considerando a maneira como a maioria das pessoas compreende e vive o seu tempo – o tempo de trabalho e o “tempo livre”, de descanso e de lazer –, fazer uma defesa do verdadeiro ócio, segundo o sentido primitivo e profundo que tem essa palavra, pode ser extremamente difícil. Mas parece-me que tocar neste ponto seja tão útil, tão fundamental, tão central para o esclarecimento de muitos dos problemas contemporâneos que pretendo me lançar à empreitada de ensaiar a seguir algumas reflexões a respeito.

Este tema é difícil de abordar porque, para uns, inteiramente focados na produtividade, na eficiência e no aproveitamento máximo do tempo tendo o dinheiro em vista, falar de ócio pode parecer algo até inesperado, um elemento estranho, despropositado e até absurdo. Segundo os critérios dessas pessoas, essa conversa soa como sinônimo de vadiagem ou de indolência, de gente preguiçosa, que não “entrega”. Foram essas pessoas que popularizaram a palavra “workaholic”. Há outras, diferentes dessas, que vivem quase o inverso: trabalham, sim, porque é preciso trabalhar, mas todo o seu esforço está voltado para o fim do trabalho, para o descanso, para o prazer regalado – em boa parte dos casos, ao menos no Brasil, para a dissolução na música e no álcool: passam cada instante da semana esperando “sextar”. Para elas, os prazeres e viagens são a justa recompensa por seu trabalho, mas, se realizassem o sonho de ganhar na loteria e pudessem parar de trabalhar, passariam a vida como numa grande tarde de sábado. Mas é preciso dizer que o ideal desse segundo tipo de pessoas também não é o ócio tal como desejo explicar, e esses dois tipos de gente têm muito mais em comum do que pode parecer.

Essas duas vidas não são tão diferentes assim: ambas são sugadas pela mesma dinâmica, por essa dualidade entre trabalho e descanso com prazer. A primeira, que encontra algum gosto na correria, no dinheiro e no desempenhar eletrizante de muitas atividades; a segunda, que prefere o conforto e a comodidade, o momento de gozar os frutos materiais desse trabalho. Ambas, porém, são apenas dois lados, dois polos de um mesmo plano horizontal, do jogo de esforço e recompensa do corpo e da psique operativa, e não apresentam nenhuma abertura para algo que o transcenda.

As nossas festas devem ser ocasiões para experimentarmos, com um coração renovado e de maneira especial, a nossa concordância com a vida, como nossa vocação, com nossos princípios e propósitos

De acordo com o ensinamento dos antigos (Aristóteles, por exemplo), não apenas o segundo, mas esses dois modos de viver estão relacionados a uma espécie de “preguiça”, que tem a ver com uma incapacidade de parar, de abandonar temporariamente quaisquer demandas do plano horizontal e de se aproximar do eixo, de voltar-se para dentro ou para cima e considerar as coisas que mais importam. Quando falo de ócio, é a respeito disso que falo. Custa-nos fazer essa pausa, que é um profundo descanso e uma espécie de prazer, mas também um trabalho interior, que inclui um esforço de outra natureza. É um prazer intelectual, que se dá no repouso da contemplação, e é um trabalho espiritual, o esforço de elevar-se do plano material e de suas exigências corporais. Esse momento de ócio é reservado para o cultivo do amor e da paz, e de todas as coisas cujo valor não é deste mundo, pois são a fonte do sentido de nossa vida visível.

Esse desassossego em relação ao trabalho, antes de estar relacionado à avareza por conta da riqueza que ele produz, está relacionado, segundo os antigos, ao vício capital da “acídia”. Para o filósofo dinamarquês Kierkegaard, a essência da acídia seria um “desejo desesperado de não ser si mesmo”, uma preguiça de não se realizar em sua vocação – e tanto o bon vivant como o workaholic estão, em suas atividades preferidas, fugindo do ócio, do momento privilegiado que os faria pensarem sobre o sentido de suas vidas, o que mais importa em seus relacionamentos, e o que sentirão no momento da morte. E como buscar esses momentos de ócio? Como fazer para se desligar um pouco das preocupações do trabalho, e também para resistir aos chamados do cansaço e dos lícitos prazeres que o aliviam?...

As necessidades da vida em família, especialmente, exigem bastante de nós, e por mais que tenhamos a disciplina de criar horários e mecanismos de memória para meditar, orar e nos alçar um pouco acima das atividades e vislumbrar o sentido de tudo o que fazemos, nós não precisamos fazer tudo sozinhos, como grandes ascetas que não somos. Existe uma enorme fonte de auxílio, um trilho ao qual podemos nos agarrar; esse auxílio foi inscrito pelo Criador tanto na própria natureza como nas manifestações culturais — muito especialmente, no calendário litúrgico. Estou me referindo às festas, aos marcos que se faz no tempo e que nos convidam a lembrar e a celebrar; e o feriado, ao menos o feriado religioso, primordialmente, não é senão uma data reservada do trabalho para o ócio, e não para o descanso indolente. Ou acaso o terceiro dos dez mandamentos da lei de Deus seria dedicado ao descanso e às festas se isso não fosse importante?

O filósofo Josef Pieper, que tão bem explicou e defendeu essas ideias, afirma em seu famoso ensaio que “o espírito festivo, presente no íntimo de quem celebra, faz parte daquilo que chamamos de ócio. Este só é possível sob a condição de o ser humano concordar não apenas com o verdadeiro ser dele próprio (uma vez que a indolência resulta da negação dessa concordância), mas que esteja também em acordo com o sentido deste nosso mundo. [...] Pois é na festa que se entrelaçam os três elementos que constituem também o conceito de ócio: primeiramente, tranquilidade e ausência de atividades; em segundo lugar, facilidade e leveza; e em terceiro lugar, distanciamento das funções do trabalho realizado nos dias úteis”. Se os nossos fins de semana ou os nossos feriados forem considerados apenas pausas do trabalho, estarão inseridos ainda em sua dinâmica, serão parte integrante do seu mundo, e não ganharão outro sentido senão este de fuga ou de recompensa pelo mesmo trabalho – que, por sua vez, é visto tão somente como um mal necessário para se ter o divertimento. Podemos chamar isso de “festa”?

As nossas festas devem ser muito mais que isso. Elas devem ser ocasiões para experimentarmos, com um coração renovado e de maneira especial, a nossa concordância com a vida, como nossa vocação, com nossos princípios e propósitos (e existe concordância maior com a vida do que o louvor de seu divino autor? Por isso o rito religioso é também, em sua essência, festa e celebração). E o nosso trabalho, quando abarcado por esse movimento, deixa de ser uma labuta crua e desesperada, e torna-se uma possibilidade diária de ligar-se indiretamente ao louvor da festa, de ser inserido no sentido da vida.

Mas o cultivo da celebração e da festa não deve se limitar às comemorações comuns a todos, aos feriados cívicos e às grandes datas religiosas. Esse sentido de banhar, na alegria do ócio, os nossos dias comuns deve correr, por assim dizer, no sangue da vida de nossa família. Nós devemos festejar uns aos outros, nossa vida e nossas conquistas, nossas passagens e batalhas vencidas, encontros e despedidas. O carinho que despendemos nas nossas festas é um sinal importante, para os adultos e mais ainda para as crianças, do nosso afeto e da importância que lhes damos.

O cultivo da celebração e da festa não deve se limitar às comemorações comuns a todos, aos feriados cívicos e às grandes datas religiosas. Esse sentido de banhar, na alegria do ócio, os nossos dias comuns deve correr, por assim dizer, no sangue da vida de nossa família

Quando dois namorados começam a sair e a considerar a longa vida que podem passar juntos, logo passam a comemorar tudo: as semanas, os meses, as datas mais importantes, em que fizeram isto ou aquilo juntos, e assim vão transformando, com base na memória do que passou, os dias comuns em novos dias festivos e memoráveis, construindo assim um presente e desejando um futuro que se apega às alegrias, e não aos enganos e desencontros, que são perdoados. Mais tarde, a grande festa do casamento não é outra coisa a não ser uma grande celebração do amor; não do amor em si mesmo, em abstrato, mas do amor que se concretizou no encontro daquelas duas pessoas, que naquele dia fincam no tempo – na alegria memorável daquela festa – o seu desejo de futuro: o amor que prometem cultivar até o fim de suas vidas.

No decorrer de sua vida matrimonial, o mesmo espírito de comemoração e festa vai continuar, de maneira diferente, é claro, assim como será diferente esse amor maturado pelos anos: os aniversários de casamento e outras memórias importantes para o casal, ao serem festejados, reavivam a alegria e o sentido profundo da vida que estão levando juntos, e contribuem para que renovem seus votos, que assim são revitalizados. “Isso nos mostra”, diz Tomás Malmierca, “que toda celebração é a constatação do afeto que se tem, é a expressão de um intenso sentimento amoroso, é a necessidade de se sentir em uma festa contínua porque o que está sendo vivido vale a pena ser vivido”. Deve sempre haver motivos para celebrar, pois isso significa que o que é vivido tem valor, tem importância, e portanto merece ser exaltado e reconhecido, e também relembrado – e é daí que vem o costume generalizado de fotografarmos e filmarmos as nossas festas.

Quando vêm os filhos, mais que nunca, esse caso de que falávamos ganha motivos vivos de comemorar. Cada dia, cada mês, cada passo, cada palavra e cada conquista dos nossos filhos nos enche de alegria e nos faz comemorar, ainda que muito intimamente – modestamente, pois que o êxito de uma festa não carece de grandes manifestações materiais, como decoração, comida, bebida e música, necessariamente. Cada alegria merece ser simbolizada em sua justa celebração, e algumas são mais sutis, e mais singelas.

Mas é claro que, já a partir do terceiro ano de vida, pode ser muito importante para a criança ver, materializado diante de seus olhos, o amor que seus pais têm por ela – não na quantidade de coisas, no preço da festa, mas na quantidade e na qualidade da atenção e do cuidado que tiveram na preparação de sua comemoração, de uma festa que celebra a sua existência. É uma grande ocasião de os pais demonstrarem, com gestos e atitudes que os filhos não estão acostumados a ver serem feitos por eles (como encher balões, mudar os móveis de lugar e agilizar petiscos), todo o seu afeto e o acolhimento de seu coração. E o mesmo se dará em outras situações ao longo da vida dos filhos – coisas mais vistosas, como formaturas, vitórias nos esportes, em concursos e competições, mas também coisas mais delicadas, e no entanto de valor maior, talvez, e que só nós e eles saberemos: as vitórias sobre seus medos, dificuldades, vícios e problemas, em que nós nos alegraremos muito profundamente com eles.

No lar da família podemos comemorar tudo. Se as festas forem simplesmente um ato social, uma ocasião de entretenimento ou mesmo de ostentação, então se estará tratando de outra coisa, e não do ócio verdadeiro, que pontuei a princípio. As verdadeiras festas refletem, como um oásis na vida comum, a sua abertura para o que a transcende, e que lhe confere o sentido. O nosso empenho para organizar a festinha de aniversário de um filho, e a sua efetiva realização, servem para nos lembrar quem é o nosso filho, quem somos nós, o que estamos fazendo, qual nosso papel com relação a eles, enfim, voltar à fonte invisível do sentido de nossa vida visível, como quem bebe da água viva numa oração. Celebrar uma pessoa com uma festa é amá-la, é dizer que a amamos numa linguagem coerente com a estrutura temporal da vida humana.

Além do mais, não é possível comemorar sozinho: para uma festa sempre se convida as outras pessoas, se convida os familiares e os amigos (e inclusive muitas vezes se é levado a perdoar alguém, para convidá-lo, o que faz muito sentido), para compartilharmos com eles a nossa alegria, e então desfrutarmos as benesses da festa com eles. Como diz a velha máxima, “o bem é difusivo de si”, isto é, as coisas boas, por sua própria natureza, tendem a se espalhar, a se compartilhar. Fazendo os convites, transmitimos nosso reconhecimento e consideração para com essas pessoas, que afirmamos serem dignas de participarem da nossa alegria.

Lembra-nos o professor Ricardo Yepes Stork: “A festa é sempre um evento do qual se participa, uma tarefa comum [...] e onde a beleza se cria e se desfruta junto com os outros: toda festa é harmonia; é um tempo de contemplação comunitária, que exclui a solidão e a mera utilidade”.

No lar da família podemos comemorar tudo. Se as festas forem simplesmente um ato social, uma ocasião de entretenimento ou mesmo de ostentação, então se estará tratando de outra coisa, e não do ócio verdadeiro

Para compreender a verdadeira dimensão que uma simples festa pode ter, gosto de lembrar de uns episódios bíblicos que, como sempre, iluminam para nós as realidades da nossa vida. Recordo, em primeiro lugar, das “bodas celebradas em Caná da Galileia, em que se encontrava a Mãe de Jesus, e também Ele e seus discípulos”. Foi então que se deu aquele acontecimento que todos conhecem, registrado no Evangelho de João, em que “se manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram n’Ele”. Ora, foi uma festa a ocasião em que se manifestou a sua glória, que até então estava oculta. Isso pode nos fazer ver que, nas festas, nós vemos como as pessoas são de verdade, e algumas coisas que ficam ofuscadas no dia a dia, na festa são manifestadas, e o coração das pessoas é rejuvenescido, como os nossos humores pelo vinho bom.

Recordo também daquela parábola, a do filho gastador que esbanjou sua vida em terra distante, e em pouco tempo se viu enlameado junto aos porcos. Quando regressa, o filho pródigo é recebido com amor pelo pai, cuja primeira atitude é dar uma festa. A festa tem, portanto, a potência de marcar os novos inícios, de selar o perdão e de purificar para uma vida nova. E onde mais começaríamos uma vida nova a não ser num dia especial, e não em mais um dia comum, igual aos anteriores?

Por fim, recordo aquela outra parábola, a que compara o Reino dos Céus a um rei que preparou, para a festa de núpcias do seu filho, um banquete. Tendo chamado seus convidados, estes não quiseram ir, deram desculpas, e uns até agrediram o mensageiro. Depois de muito tentar, o rei enfim manda que se chamem quaisquer pessoas pelas ruas, sejam más ou sejam boas, para que o salão da festa fique cheio – assim como diz também, em outra parábola, como é meritório convidar os pobres e os cegos. Ora, a festa é, em si mesma, um convite, um vetor que quer reunir as pessoas na comunhão de uma alegria, e esse movimento não nos faz convidar só as pessoas que são “fáceis” para nós, mas também as que precisam do nosso perdão, ou da nossa paciência, e da nossa tolerância. Pois não será assim nessa festa que é o Reino dos Céus, para a qual somos todos convidados, embora não mereçamos de modo algum? “Felizes os convidados para a ceia do Senhor”, para a festa perpétua que virá após nossa labuta neste vale de lágrimas, em que o tempo será transmutado em eterno presente, em infinita e jubilosa celebração.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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