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Enfermeira Sandra Lindsay recebe a primeira dose da vacina contra Covid-19 nos EUA: plano de imunização no Brasil não será decidido pelo STF ou por políticos, mas sim pela ciência.
Enfermeira Sandra Lindsay recebe a primeira dose da vacina contra Covid-19 nos EUA: Evangélicos tendem a ser mais céticos em relação à vacina na comparação com a média da população.| Foto: Mark Lennihan/Pool/Getty Images/AFP

Semana passada li no Washington Post uma história tão curiosa quanto triste: a de um pastor no Texas que não pode mais ter nenhum contato com os membros de sua igreja pois, apesar de ser relativamente jovem, tem comorbidades que tornariam uma contaminação pelo coronavírus quase que certamente fatal. Para piorar, boa parte dos que frequentam sua igreja não está nem aí para as medidas de proteção, como o uso de máscaras.

Este cenário poderia começar a mudar, com os Estados Unidos estando entre os primeiros países do mundo a iniciar a vacinação de seus cidadãos; o problema é que o ceticismo em relação às vacinas é especialmente alto entre evangélicos brancos norte-americanos: praticamente metade deles não pretende se vacinar. A resistência é ainda maior entre negros evangélicos: 59% disseram que “provavelmente” ou “certamente” não irão se imunizar. Neste caso específico, conta a jornalista Sarah Pulliam Bailey, há um trauma histórico que envolve as experiências antiéticas realizadas no Alabama, quando negros foram intencionalmente infectados com sífilis e observados durante décadas sem receber tratamento algum.

“Deus nos deu um cérebro e a chance de entender Sua criação, a natureza, que inclui coisas como os vírus. E acho que Deus espera que usemos esse cérebro para descobrir como protegermos a nós e aos outros da doença.”

Francis Collins, chefe dos National Institutes of Health dos Estados Unidos.

Há motivos e motivos para pessoas religiosas estarem com o pé atrás em relação à vacina. Há quem se preocupe com o fato de tudo ter sido desenvolvido muito rapidamente, embora o caso do coronavírus tenha envolvido muito mais dinheiro, tecnologia e cooperação internacional que outras vacinas criadas no passado. Existe um questionamento ético bastante legítimo sobre algumas vacinas terem sido desenvolvidas por meio do uso de linhagens celulares de fetos abortados décadas atrás, uma questão que já analisamos em detalhe aqui no blog e à qual voltaremos mais adiante. Por fim, há o alarmismo puro e simples, que se aproveita da ingenuidade religiosa, do tipo “a vacina é a marca da Besta do Apocalipse”, ou da ingenuidade científica, como as lorotas sobre as vacinas de RNA mensageiro, como a da Pfizer/BioNTech, terem a capacidade de alterar o DNA das pessoas (o que é impossível, entre outros motivos porque o RNAm não entra no núcleo das nossas células, onde está o DNA). Como diz Steve Bezner, o pastor que já não pode chegar perto de seu rebanho, se as pessoas o ouvem uma hora por semana e estão lendo essas besteiras 15 horas por semana, essa é uma batalha perdida.

Mas, felizmente, continua a haver quem esteja disposto a lutar essa batalha. Francis Collins, o geneticista que comanda os National Institutes of Health norte-americanos, cristão convicto e bastante conhecido entre os evangélicos do país, vem buscando o apoio de influentes líderes religiosos. Uma de suas estratégias é fazer vídeos com pastores-celebridades como Rick Warren, com o objetivo de reduzir a resistência às vacinas. Na entrevista que ele deu ao Post, Collins explicou que muitos pastores se veem pressionados pela postura antivacina dos membros de suas igrejas, mas que ao mesmo tempo os fiéis esperam uma palavra de orientação dos líderes.

Collins ainda lembrou que fazer pouco da prevenção com abordagens do tipo “Jesus vai me proteger” são não apenas arriscadas do ponto de vista científico, mas também são inapropriadas do ponto de vista teológico: “Deus nos mostrou Seu amor, cuidado e compaixão, mas também nos deu um cérebro e a chance de entender Sua criação, a natureza, que inclui coisas como os vírus. E acho que Deus espera que usemos esse cérebro para descobrir como protegermos a nós e aos outros da doença. Se temos a oportunidade de curar por meio da medicina, creio ser isso que Deus quer que façamos, em vez de esperar que uma intervenção sobrenatural nos salve quando Ele nos deu a chance de nos salvarmos de outras maneiras” (adendo meu: não acho que Collins queira dizer que é besteira rezar para que Deus livre o mundo da pandemia, mas que é besteira fazer apenas isso e desprezar os outros meios que Deus colocou à nossa disposição).

Questionado sobre as vacinas que recorrem a linhas celulares oriundas de abortos, seja em sua fabricação, seja na fase de testes, Collins aponta para a reflexão ética feita pela Igreja Católica, que já expusemos aqui. O que talvez ele não saiba é que a posição católica está sendo bombardeada internamente. O site pró-vida LifeSiteNews, por exemplo, tem estado na linha de frente da ofensiva que considera os documentos da Pontifícia Academia para a Vida permissivos demais e anda recorrendo até mesmo a fake news. Um caso gritante (ao menos para mim) foi a distorção de uma apresentação feita à FDA (o equivalente norte-americano da Anvisa) em que se fala de situações que precisarão ser monitoradas em quem for vacinado, para se investigar se há alguma relação entre a condição (por exemplo, um AVC) e a vacina. Um procedimento padrão que foi transformado pelo site em uma “confissão”, por parte da autoridade sanitária norte-americana, de que as vacinas teriam todos esses possíveis efeitos colaterais.

E essa ofensiva interna católica contra a postura da Pontifícia Academia para a Vida (que foi repetida literalmente pela conferência de bispos católicos dos EUA) não é coisa de extremistas. Tem gente excelente no meio, como a ativista pró-vida Abby Johnson, que já foi diretora da Planned Parenthood antes de deixar o abortismo e se converter; ou bispos muito bons, como Athanasius Schneider e Joseph Strickland, que assinaram um manifesto classificando como “intrinsecamente contraditória e inaceitável para os católicos” a ideia de que, na ausência de qualquer outra alternativa, um católico pode recorrer a tais vacinas por já se tratar de uma cooperação muito remota, ou seja, bastante atenuada, com a perversidade do aborto.

Reparem na diferença. Se todo esse pessoal estivesse dizendo apenas que é melhor, mais nobre, mais aconselhável etc., recusar a vacina, como demonstração de rejeição ao aborto, estariam todos no seu direito. Mas eles vão além e afirmam que a orientação da Igreja, por meio da Pontifícia Academia para a Vida, está equivocada e que o católico erra quando toma tais vacinas, mesmo quando são as únicas disponíveis. Isso é bem complicado de aceitar. Correndo o risco de cair na falácia do argumento de autoridade, lembro que, se tem gente boa do lado rigorista, por outro lado o parecer da Pontifícia Academia para a Vida não foi escrito por um Rino Fisichella qualquer da vida; é obra do bispo Elio Sgreccia, um gigante da bioética, que jamais transigiu com ameaças à vida humana por nascer. E essa postura foi reafirmada pelo papa Bento XVI, que deu sua aprovação à declaração Dignitas Personae, da Congregação para a Doutrina da Fé.

“Quanto às vacinas sem alternativa [eticamente produzida], deve-se reafirmar a necessidade de contestação para que possam surgir outras [vacinas], bem como a licitude da sua utilização neste intervalo, em caso de necessidade, para evitar um risco grave não só para as crianças, mas também, e talvez mais especificamente, para a saúde da população como um todo.”

Parecer de 2005 da Pontifícia Academia para a Vida sobre o uso de vacinas produzidas com o uso de linhagens celulares provenientes de fetos abortados.

Isso me lembra um pouco a mensagem do Concílio de Jerusalém aos ex-pagãos convertidos ao cristianismo, descrita em Atos 15: “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor outro peso além do seguinte indispensável”, dizem os apóstolos, antes de elencar as regras que os egressos do paganismo deviam seguir, contra a pressão dos que queriam impor costumes judaicos como a circuncisão a todos os convertidos, mesmo os não judeus. No nosso caso, o indispensável é: recorrer a vacinas que usaram linhagens celulares de fetos abortados só é ilícito se houver outras opções disponíveis e que tenham sido eticamente produzidas; do contrário, o católico pode escolher entre tomar essas vacinas ou exercer a objeção de consciência. De qualquer maneira, independentemente da vacina usada, todos têm o dever de pressionar a indústria farmacêutica e os governos para que produzam e adquiram apenas vacinas e medicamentos que não envolvam o uso dessas linhagens celulares. E as obrigações terminam aqui.

Eu já disse, em tom de brincadeira, a alguns amigos que o lado bom de haver tanto antivacina por aí é que talvez já sobre alguma para mim e para minha família logo na primeira leva. Mas a verdade é que isso é bastante triste. Triste que haja tantas pessoas acreditando nas mentiras mais absurdas, desconfiando tanto da ciência, querendo impor aos outros um fardo que a Igreja – no caso dos católicos – não impõe. Os líderes religiosos têm um papel fundamental para desarmar essas resistências, mas também nós, os leigos, não podemos nos omitir.

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