Ensino domiciliar ainda carece de deliberação do Congresso.| Foto: Unsplash
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O homeschooling está se tornando uma realidade cada vez mais próxima no Brasil. No último ano, dois municípios do Oeste do estado do Paraná, Toledo e Cascavel, aprovaram e regulamentaram a prática com leis locais. No Distrito Federal também houve deliberação favorável por parte da Câmara Legislativa ao ensino domiciliar - iniciativa que partiu do próprio Poder Executivo local.

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Apesar dessas vitórias para as chamadas famílias homeschoolers, ainda restam dúvidas quanto à segurança jurídica e reconhecimento acadêmico do ensino em casa. Em julgamento realizado em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF), entendeu que o ensino domiciliar era constitucional, mas vinculou a legalização da prática à sua regulamentação, citando o Congresso Nacional.

Nesse cenário, as aprovações em âmbito municipal e no DF, para muitos especialistas, ainda correm risco de serem questionadas na Justiça. Para outros juristas, leis municipais e estaduais já seriam suficientes para cumprir os pré-requisitos determinados pelo STF. Mas o que, de fato, pode ocorrer nos próximos meses?

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O que estabeleceu o STF

Para compreender o cenário e as perspectivas para a prática do ponto de vista jurídico é preciso entender a decisão do STF de 2018. O caso em análise não era a prática do homeschooling em si, mas a Corte julgava um recurso impetrado por uma família do Rio Grande do Sul. Os pais de uma garota de 11 anos solicitaram à Secretaria Municipal de Educação local permissão legal para ensiná-la em casa.

Embora a decisão final tenha sido pela improcedência do pedido da família - e que isso tenha sido feito justamente porque a Corte entendeu que, inexistindo norma legal que regulamente a prática, não seria possível atendê-la -, o acórdão do julgamento do STF, como já foi dito, confirmou que a prática não é inconstitucional.

Ouvido pela reportagem, André Uliano, do Instituto Politeia, professor de Direito Constitucional e procurador do Ministério Público Federal (MPF), explica que para entender a questão sem cair no senso comum é preciso, também, compreender a dinâmica do estabelecimento de precedente por parte do STF.

"Uma coisa é a tese fixada pelo STF [precedente], outra coisa é um tema que o STF não fixou na tese, mas sobre o qual todos os ministros proferiram uma posição, coisas que aparecem no voto mas não foram decididos pelo STF, digamos", inicia Uliano.

André Uliano.

O especialista lembra que a constitucionalidade da prática do ensino domiciliar foi debatida pelos ministros, em favor da qual, ao fim, houve maioria. A competência exclusiva da União para legislar sobre o assunto, contudo, embora conste no acórdão, não foi tema debatido entre eles.

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Constou no acórdão o seguinte texto: "O ensino domiciliar não é um direito público subjetivo do aluno ou de sua família, porém não é vedada constitucionalmente sua criação por meio de lei federal, editada pelo Congresso Nacional, na modalidade 'utilitarista' ou 'por conveniência circunstancial', desde que se cumpra a obrigatoriedade, de 4 a 17 anos, e se respeite o dever solidário Família/Estado, o núcleo básico de matérias acadêmicas". Isso é, a decisão, segundo o especialista, não poderia ser considerada um precedente impeditivo da prática do homeschooling no país.

"De acordo com a decisão do STF, a educação domiciliar é compatível com a Constituição, mas não tem previsão legal e, por isso, as famílias educadoras não podem exigir do Estado ('direito público subjetivo') o reconhecimento da prática", explica Carlos Eduardo Rangel Xavier, procurador do estado do Paraná e diretor jurídico da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned). "E é por isso que a certificação se dá por meio do ENCCEJA, que originalmente não foi estruturado para a educação domiciliar, mas serve perfeitamente às necessidades das famílias".

É competência exclusiva do Congresso deliberar sobre a matéria?

Um dos questionamentos presentes nos debates sobre a legitimidade de o Distrito Federal e dos municípios de Cascavel e Toledo terem deliberado sobre a matéria é: pela decisão do STF, eles poderiam ter feito isso ou é competência exclusiva do Congresso?

Mais uma vez, segundo Uliano, é necessário recorrer ao acórdão para compreender a questão. "O ensino domiciliar não é um direito público subjetivo do aluno ou de sua família, porém não é vedada constitucionalmente sua criação por meio de lei federal, editada pelo Congresso Nacional, na modalidade 'utilitarista' ou 'por conveniência circunstancial', desde que se cumpra a obrigatoriedade, de 4 a 17 anos, e se respeite o dever solidário Família/Estado, o núcleo básico de matérias acadêmicas".

Uma leitura a contrario sensu do trecho em questão, na opinião dele, indica que o STF não veda que o Congresso edite lei sobre a matéria, mas, ao mesmo tempo, não estabelece que só o Parlamento possa fazê-lo. Em último caso, ao menos, o acórdão não é estritamente claro sobre isso.

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"Embora a decisão do STF no Recurso Extraordinário 888.815 fale em 'lei do Congresso Nacional', em nenhum momento o Tribunal foi taxativo a respeito de se tratar de competência privativa da União (artigo 22 da Constituição)", corrobora Carlos Xavier. "Por isso, pode-se entender que a questão diz respeito à competência legislativa concorrente, prevista no artigo 24 da Constituição, o que – na falta de lei federal – abre a possibilidade para leis estaduais e mesmo municipais".

Em que pese essa interpretação hermenêutica não seja unânime entre os juristas, grande parte a adota. Há certo consenso sobre o limbo jurídico no qual as famílias homeschoolers se encontram. Há, além disso, a seguinte leitura por parte de alguns interlocutores: dada a simpatia do presidente Jair Bolsonaro com o homeschooling, a Corte teria apenas salientado a não razoabilidade de regulamentação do tema por meio de mero decreto do Executivo, o que não significaria impedir regulamentação por Estados e municípios.

Em que pé está a discussão no Congresso Nacional

Pelo menos 15 projetos de lei que tratam do ensino domiciliar já foram endereçados ao Congresso Nacional. Os que prosperaram, acabaram todos apensados ao PL 3179/12, de autoria do deputado federal Lincoln Portella (PL/MG). São eles: o PL 3261/2015, de autoria do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o PL 10185/2018, do deputado Alan Rick (DEM-AC), o PL 5852/2019, do deputado Pastor Eurico (Patriotas-PE), o PL 3262/2019 da deputada Chris Tonietto (PSL-RJ), o PL 6188/2019, do deputado Geninho Zuliani (DEM-SP) e a proposta do Poder Executivo, PL 2401/2019.

No início de sua gestão, num aceno urgente com o intuito de amparar famílias que se encontravam num limbo jurídico, o governo cogitou - e até elencou como prioridade dos 100 primeiros dias - editar Medida Provisória pra regulamentar o ensino domiciliar. Até março de 2019, o Executivo, junto às pastas da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e do Ministério da Educação (MEC), gerou expectativa na sociedade civil de que o texto estaria em seus ajustes finais.

Mais tarde, no entanto, o Executivo "reavaliou" a estratégia. Provocado por parlamentares e famílias, o governo passou a estudar uma "proposta mais sólida que garantisse segurança jurídica às famílias".

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Embora a justificativa, na época, tenha sido de que a prioridade era discutir a Reforma da Previdência, nos bastidores, a leitura era de que o tema teria sido "alocada num local errado". Para alguns interlocutores, a MP ficou parada na Casa Civil porque havia o entendimento, por parte da subchefia de assuntos jurídicos, de que, estrategicamente, não ajudaria as famílias.

Em agosto passado, o líder do governo na Câmara, deputado Vitor Hugo (PSL/GO) apresentou um requerimento de urgência para o projeto do Executivo. Se o pedido for acolhido, o PL não precisa passar por comissões - que sequer foram criadas - e vai direto a Plenário. Nesse momento de transição da presidência da Câmara, simpatizantes da prática também se articulam politicamente para tentar emplacar um nome alinhado à causa.

Rodrigo Maia (DEM/RJ), ainda atual presidente da Casa, é visto por parlamentares da base governista como um entrave a pautas tidas como conservadoras. Ao longo do último ano, Maia segurou várias propostas dessa natureza e não as levou a Plenário. Algumas, até que caducassem.

Sobre isso, Rick Dias, presidente da Aned, afirma que "o melhor candidato [à presidência da Casa] seria aquele que não tem entrave a colocar as pautas consideradas 'conservadoras', na qual, na verdade, o homeschooling foi incluído, erroneamente".

"Um candidato mais próximo ao presidente seria melhor, nesse sentido, uma vez que Bolsonaro apoia o homeschooling. Sabemos que isso, ao menos, faria a pauta tramitar. Se será aprovada ou não, essa é outra história. Nosso desafio, este ano, será tirar do homeschooling o rótulo de pauta conservadora, pois é uma pauta de direitos humanos. Só assim conseguiremos avançar, sair de uma discussão equivocada, ideológica e infrutífera".

Rick Dias, presidente da Aned.
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Enquanto isso, homeschoolers "mandam recado" à Brasília

Frente ao bloqueio e à morosidade do Congresso em discutir o tema, as famílias homeschoolers começam a se movimentar e enviar "um recado à Brasília". O silêncio legislativo da União acaba provocando estados e municípios a atuar a partir da chamada legislação supletiva.

Em Cascavel, a lei que regulamenta o ensino domiciliar foi promulgada em 29 de setembro de 2020. O texto é de autoria do vereador Olavo Santos (Podemos/PR). Meses depois, em 17 de dezembro do último ano, foi a vez de Toledo sancionar projeto de lei que regulamenta o homeschooling. O PL foi proposto pelo vereador Vagner Delabio (PSD/PR). No Distrito Federal, a prática foi sancionada em 16 de dezembro. Neste caso, o texto é de autoria do próprio poder Executivo.

"Isso, além de mandar uma mensagem para Brasília, demonstra como a existência de projetos de lei ou mesmo de leis aprovadas num lugar influenciam em outro. Vimos recentemente esse fenômeno nos municípios de Cascavel e Toledo, cidades vizinhas que aprovaram leis municipais num intervalo de tempo muito próximo", afirma Carlos Xavier. O tema já foi apreciado em várias casas legislativas país afora. Em alguns lugares, com menor sucesso.

"Nas eleições municipais, vimos a educação domiciliar surgir como pauta de diversos candidatos a vereador, e há mesmo casos de parlamentares que, nos primeiros dias de mandato, já protocolaram projetos de lei sobre o tema".

Carlos Xavier, procurador do estado e diretor jurídico da Aned.

Dada a falta de regularização do tema no país, a contabilização das famílias educadoras no Brasil é difícil e, por isso, não é possível saber exatamente quantas adotam o ensino domiciliar e onde elas estão. Carlos Xavier, diretor jurídico da Aned, afirma que embora a associação não consiga compilar oficialmente esses dados, é possível, sem grande rigor, afirmar que "a quantidade maior de famílias educadoras é encontrada no Sul e no Sudeste, mas o número vem crescendo nas demais regiões do país". "Sabemos, pelos contatos que temos, que haveria um aumento crescente [do percentual de famílias que passou a adotar a prática], numa taxa de aumento de 50% ao ano, desde 2012. Isso significa uma projeção de cerca de 17 mil famílias educadoras em 2020", diz.

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O movimento no Oeste do Paraná se explica, segundo Xavier, pelo engajamento e articulação política em favor da matéria nessas regiões. Em geral, a iniciativa parte das famílias educadoras. "Quando famílias engajadas encontram políticos que compreendem a importância da pauta da liberdade educacional e estão dispostos a reconhecer os direitos educacionais dos pais, não é muito difícil que as coisas aconteçam", diz.

Como será a regulamentação

Com os projetos transformados em lei, é necessário que as secretarias de Educação das respectivas regiões normatizem a matéria. Elas devem definir questões infralegais, mecanismos de fiscalização com o objetivo de coibir, por exemplo, abandono intelectual e maus-tratos.

Pais ou representantes legais terão de manifestar interesse à secretaria em aderir ao homeschooling ou a uma instituição privada. Os estudantes serão submetidos a avaliações e terão direito a certificados de conclusão dos ciclos de aprendizagem. No caso do DF, a "família deverá demonstrar aptidão técnica para o desenvolvimento das atividades pedagógicas ou contratar profissionais capacitados, de acordo com as exigências da secretaria de Educação”. Nos municípios isso deve se dar da mesma forma, mas com menor rigor. O detalhamento dependerá das secretarias de Educação.

Para a Aned e juristas favoráveis ao homeschooling, a prática não contraria normativas como a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), uma vez que esta disciplina apenas da educação escolarizada. Isso é, quando a lei determina matrícula obrigatória, por exemplo, ela abarca apenas a educação escolar e não compete a ela o que está fora disso. "O que temos é um total silencio legislativo [em relação ao homeschooling] e é por isso que estados e municípios podem atuar", diz André Uliano.

Do ponto de vista político, porém, esse vácuo legislativo pode dificultar a ação de estados e municípios. "No Brasil temos uma tradição mais centralizadora, estados e municípios não inovam muito e esperam a União fazer, ficam a reboque, simplesmente copiam um texto federal", opina o especialista. "Juridicamente, porém, acho que a gente tem que vencer essa tradição. Particularmente, acho ótimo que estados estejam tomando à frente. O normal, numa federação, é que tenhamos várias legislações distintas a partir das peculiaridades locais".

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Possíveis desdobramentos jurídicos enquanto não há decisão no Congresso

Em que pese a pauta avance gradativamente nos municípios, famílias temem os possíveis desdobramentos jurídicos enquanto ainda não há deliberação por parte do Congresso. Interlocutores falam em "insegurança residual".

Entre os possíveis desdobramentos, como explica Carlos Xavier, há a possibilidade de as famílias sofrerem "perseguição estatal e até mesmo processos judiciais em caso de elas se depararem com agentes públicos – conselheiros tutelares, promotores ou juízes – contrários à prática".

"A questão está em aberto, e é possível que essas leis sejam questionadas judicialmente. Aliás, de fato, elas têm sido: um deputado estadual ajuizou ADI contra a lei de Cascavel, e um Sindicato de Professores ajuizou ADI contra a lei do DF. Esclareço somente que as ações foram dirigidas aos Tribunais de Justiça (do Paraná e do DF) e não ao STF. Numa ação como esta, uma simples liminar pode suspender os efeitos da lei – como aconteceu no caso de Vitória (ES)", explica Xavier.

Ainda segundo ele, a lei do DF, por exemplo, por ter status de lei estadual, pode acabar impugnada por ADI no STF. Leis municipais. por outro lado, podem apenas ser impugnadas diretamente no STF por meio da chamada ADPF. "Além disso, a discussão pode, eventualmente, chegar ao Supremo por meio de recurso extraordinário, mas isso somente após o julgamento dessas ações perante tribunais locais ou na hipótese de a legislação municipal ou distrital ser aplicada ou declarada inconstitucional num caso concreto", explica o especialista.

Há, ainda, riscos como o "eventual impedimento de participação em atividades extracurriculares públicas ou privadas que exijam a comprovação de matrícula em escola, e isso quando a dificuldade não é contornada com uma boa conversa – o que muitas vezes acontece".

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Para Uliano, por outro lado, a situação é juridicamente tolerada: a falta de deliberação do Congresso não gera "grande insegurança", pelo menos até que o tema seja analisado pelo Judiciário. "A legislação do DF, por exemplo, deve ser mantida pelo Judiciário, porque ela é realmente muito boa. Inclusive, é até restritiva demais para famílias. E como foi proposta pelo próprio governador, não vejo qualquer coisa que possa ser alegado com substância e força jurídica. Nos municípios, se houver resistência por parte do poder Executivo, isso poderia gerar algum problema jurídico até a lei ser derrubada pelos tribunais", diz ele.

Se houver deliberação por parte do Congresso, o que acontece?

Se o Congresso aprovar projeto de lei que regulamente o homeschooling, as normas municipais e estaduais poderão ser revistas.

"De acordo com os parágrafos do artigo 24 da Constituição, a superveniência de lei federal suspende a eficácia de normas estaduais (e, consequentemente, também das municipais) editadas no exercício da competência legislativa suplementar. Nessa perspectiva, trata-se de uma competência legislativa que estados e municípios exerceriam de forma transitória, exatamente para suprir a falta de segurança jurídica enfrentada pelas famílias educadoras na falta de uma lei federal", explica Xavier.

Segundo ele, um desdobramento complicada, no entanto, surgiria diante da "superveniência de lei federal mais restritiva do que leis municipais ou estaduais já existentes. Nesse caso, seria possível argumentar a prevalência da lei menos restritiva, mas isso não por uma questão da literalidade do texto constitucional, e sim a partir de princípios hermenêuticos informados pelas teorias dos direitos fundamentais e dos direitos humanos".

"Numa federação madura, o ideal é que a lei federal diga o mínimo possível e deixe cada estado regulamentar de acordo com sua própria característica e tendência política".

André Uliano
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Para o presidente da Aned, Rick Dias, num cenário ideal, a proposta do Executivo que tramita no Congresso deveria ter sido construída "com completo aval das famílias". "Sabemos que não teremos uma lei excelente, maravilhosa, vamos ter algo razoável para bom, mas precisamos aprovar algo que possa tirar essas famílias da condição marginal, e o braço do Estado está cada vez mais comprido", diz.

Ele ainda critica o debate incipiente na sociedade civil: "homeschooling não pode ser colocado como pauta conservadora, pois é uma pauta de direitos humanos. Não importa se é de direita, esquerda ou centro. Direitos humanos são direitos humanos. Em tese, todos devem concordam com isso. Que o ensino domiciliar seja colocado no seu devido lugar: não é pauta conservadora, religiosa, das bancadas cristãs. Não teve sua origem lá. É uma pauta das pessoas".

Leia a íntegra da decisão do STF, de 2018:

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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