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O movimento abortista nega a personalidade às crianças ainda não nascidas, de modo a reduzir sua importância moral, desumanizá-las e defender o direito de abortá-las | Pixabay
O movimento abortista nega a personalidade às crianças ainda não nascidas, de modo a reduzir sua importância moral, desumanizá-las e defender o direito de abortá-las| Foto:

Poucos dias depois do Natal, o New York Times divulgou um longo editorial sobre as ameaças contra os direitos ao aborto, afirmando que o movimento pró-vida inventou o conceito de “personalidade fetal” para corroer a autonomia feminina.

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A série de reportagens faz uma investigação profunda sobre aplicações extremamente raras da legislação estatal que protege crianças ainda em gestação – projeto de lei que criminaliza o abuso de drogas por mulheres grávidas, por exemplo – para ilustrar a alegação da esquerda de que as mulheres americanas estão vivendo em um ‘Handmaid’s Tale’ criado por opositores ao aborto.

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Mas essa tentativa de exposição bombástica é, de fato, uma compilação malfeita de mitos abortistas, imprecisões históricas e omissões filosóficas, amontoadas para coagir o movimento pró-vida, pelo qual o Times nutre uma indisfarçável animosidade.

A grande maioria dos defensores do movimento pró-vida concorda com o jornal, e considera inaceitáveis quaisquer leis que penalizem mulheres por sofrer um aborto espontâneo ou por dar a luz a natimortos.

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E, no entanto, toda a série de reportagens se baseia numa falsa premissa: opositores ao aborto regozijam-se quando mulheres grávidas são condenadas à prisão, porque supostamente se preocupam mais em punir quem erra do que em proteger a vida humana.

Longe de ser uma reflexão ponderada sobre os direitos legais concorrentes de mãe e feto, o artigo do New York Times ultrapassa os limites do alarmismo, com ajuda de histórias de terror excepcionalmente incomuns, que são usadas para demonizar a perspectiva pró-vida.

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Aqui estão as três afirmações mais imprecisas do artigo:

1) O conceito de personalidade fetal é “uma forte ruptura com as grandes tradições da lei ocidental” e foi inventado pelo movimento antiaborto para despojar as mulheres de direitos fundamentais.

O artigo do Times afirma que “a criação do alicerce jurídico para a ideia de que o feto é uma pessoa tem sido o trabalho constante do movimento antiaborto”.

Ainda de acordo com o artigo, essa noção “se afasta de uma tradição de séculos da lei ocidental, e vai em direção a um conceito relativamente novo: o de que um feto no ventre tem os mesmos direitos que uma pessoa totalmente formada”.

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Na verdade, tanto a tradição do common law inglês, quanto a da lei estadual norte-americana reconheciam o valor da vida humana ainda no ventre, e frequentemente a protegiam.

A lei pública inglesa proibia o aborto tão logo o feto pudesse ser considerado um ser vivo, usando o termo “apresentando sinais de vida” antes dos avanços na ciência médica, e vários casos históricos trataram o aborto como um crime, mesmo antes de ser explicitamente codificado como tal no início do século XIX.

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Várias colônias americanas adotaram a proibição inglesa do aborto, e ao longo dos séculos XIX e XX a maioria dos estados reforçou essas proibições, criminalizando o aborto em qualquer fase da gravidez, não apenas no estágio em que “apresenta sinais de vida”. Não há provas históricas de que, na lei pública inglesa ou na tradição constitucional americana, o aborto tenha sido considerado um direito legal antes de Roe v. Wade.

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Além desse erro gritante, o New York Times não retrata honestamente Roe vs. Wade e o caso subsequente, Planned Parenthood vs. Casey, já que em ambos os casos o interesse do Estado em proteger a vida do nascituro foi reafirmado nas decisões. Embora nenhuma delas tenha especificamente identificado crianças no ventre como “pessoas”, ambas deram aos governos estaduais uma base jurisprudencial para a elaboração de leis baseadas em direitos fetais que estivessem em equilíbrio com os direitos das mães.

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Além disso, embora as leis de personalidade jurídica que protegem bebês ainda no ventre sejam bastante limitadas, o movimento abortista nega a personalidade às crianças ainda não nascidas, de modo a reduzir sua importância moral, desumanizá-las e defender o direito de abortá-las. (O editorial do Times está feliz em contribuir nesse sentido, referindo-se a elas como “aglomerados de células” e “óvulos fertilizados”, e usando as frases “vida por nascer” e “crianças por nascer” entre aspas.)

A opinião da maioria em Roe vs. Wade observava que, se o bebê ainda não nascido pudesse ser considerado “pessoa”, nos termos da Constituição, então a justificativa para a legalidade do aborto desmoronaria. Conscientes dessa ameaça, militantes abortistas fundamentam seu ativismo e sua argumentação em refutações repetitivas e ruidosas da personalidade do bebê em gestação.

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Essa tendência deve preocupar observadores atentos. Ao longo da história humana, negar a personalidade sempre foi a tática usada pelos mais poderosos para oprimir os mais fracos, para subjugar seres humanos que não conseguem se proteger. O exemplo mais proeminente de um uso tão injusto de (ausência de) “personalidade” na história americana nem sequer precisa ser citado.

2) Os americanos não eram pró-vida até as últimas décadas, e o movimento antiaborto, tal como representado pelo Partido Republicano, é baseado em ambição política, e não em princípios.

“Em virtude da preocupação com a liberdade individual, o Partido Republicano já tratou o aborto como um assunto privado”, afirma o artigo do Times, sugerindo que apenas extremistas defendam a limitação do aborto. As únicas evidências que podem ser usadas para fundamentar esse ponto são uma lei assinada por Ronald Reagan, quando governador da Califórnia, que permitia o aborto – uma decisão da qual ele se arrependeu profundamente mais tarde –, e uma pesquisa de opinião feita em 1972, mostrando que 68% dos republicanos acreditavam que a questão do aborto deveria ser tratada entre as mulheres e os seus médicos.

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Nenhuma delas é particularmente convincente. Além disso, o editorial do New York Times insinua que o partido só se reuniu em torno de uma plataforma antiaborto depois que estrategistas do Partido Republicano determinaram que o aborto era uma “questão emocional que poderia motivar eleitores evangélicos e dividir os democratas”, no início da década de 80.

Esse argumento ignora o efeito óbvio da decisão Roe vs. Wade sobre o debate político a respeito do aborto. Antes que sete juízes inventassem o direito ao aborto e forçassem sua argumentação incoerente sobre todo o país, cada estado tinha o poder de estabelecer as suas próprias leis sobre essa questão.

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Nesse cenário, a nação como um todo poderia reconciliar visões fortemente polarizadas sobre o aborto, a autonomia das mulheres e a vida fetal, ou pelo menos encontrar um meio-termo viável, com alguma variação de estado para estado à medida que os eleitores expressassem claramente suas preferências.

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Em vez disso, a Suprema Corte cancelou o debate e, assim, criou a necessidade de que um partido político representasse os pontos de vista dos americanos pró-vida. O movimento pró-vida e o Partido Republicano defendem projetos de lei a respeito dos direitos da personalidade justamente porque a decisão Roe vs. Wade insistiu no argumento de que os nascituros não têm personalidade e, portanto, não têm direitos.

3) Os direitos dos nascituros e os direitos das mães são um jogo de soma zero

“Ao defender o conceito jurídico de personalidade fetal, uma sociedade teria necessariamente de fazer concessões aos ideais existentes de liberdade individual”, afirma a série do Times. O subtítulo do artigo diz: “Os estados estão estendendo direitos aos fetos ao tirá-los das mulheres”.

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A introdução, entretanto, observa que “cada vez mais leis estão tratando fetos como pessoas e mulheres como menos que uma pessoa, quando mulheres grávidas são acusadas de crimes”.

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Essas afirmações são verdadeiras num sentido: todas as leis que regem o comportamento individual são, em certa medida, uma restrição de direitos. Contudo, o Times usa esse fato para confundir o debate sobre o aborto: como uma sociedade justa deveria equilibrar o direito do nascituro à vida e os direitos da mãe à autonomia corporal e autoridade sobre a criança dentro dela?

Em vez de admitir esse dilema, o New York Times supõe que qualquer esforço para proteger a vida fetal elimina injustamente toda personalidade e autonomia da mãe, como se não houvesse casos em que é adequado limitar os direitos de alguns indivíduos para proteger os direitos dos outros.

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Esta é, evidentemente, a afirmação fundamental do movimento pró-vida: cada feto é um ser humano distinto com direito à vida, um direito que supera o direito da mãe de dar fim à vida dentro dela. Ignorar esse ponto fundamental e, em vez disso, acusar o movimento antiaborto de usar a personalidade como arma, é perder o foco do debate sobre o aborto.

Mas é necessário apelar a esse tipo de omissão para poder justificar as afirmações absurdas do editorial do Times, tais como: “Se um feto tiver direitos iguais, mulheres que engravidam podem acabar sofrendo controle estatal quando forem tomar decisões extremamente pessoais”, e “Uma mulher grávida deixaria de ser considerada uma pessoa autônoma”.

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Isto é defesa de aborto, e não um argumento jurídico sério.

A questão da personalidade é uma consideração ética essencial no debate sobre o aborto, porém esse artigo do Times não só pouco contribui para o debate, como, na verdade, o dificulta, ao lançar mão de falsas premissas e casos extremos para solapar a defesa dos direitos de bebês em gestação.

Traduzido por Ana Peregrino

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