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Estátua da Justiça do STF
Estátua da Justiça em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF).| Foto: José Cruz/Agência Brasil

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, marcou para esta quinta-feira, dia 17, o julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) 43, 44 e 54, que tratam do momento a partir do qual fica autorizado o início do cumprimento da pena de prisão. O entendimento atual, que vigorou no país até 2009 e voltou a valer em 2016, é o de que a prisão pode ocorrer já com a condenação na segunda instância, ou seja, pelos colegiados nos Tribunais Regionais Federais (TRFs) ou nos Tribunais de Justiça (TJs) estaduais. Apenas no intervalo entre 2009 e 2016 vigorou o entendimento de que a pena só poderia começar a ser cumprida após o esgotamento de todos os recursos em todos os tribunais, inclusive os superiores (STJ e STF).

Este momento chegaria mais cedo ou mais tarde, já que havia grande pressão por parte do ministro Marco Aurélio Mello, relator das três ações, para que elas fossem colocadas em pauta. O ministro chegou a extrapolar os limites quando, em dezembro de 2018, decidiu sozinho pela soltura de todos os que estivessem presos após condenação na segunda instância, mas sem o trânsito em julgado, atropelando a jurisprudência da corte em um desvario logo corrigido por Toffoli. No entanto, com a condenação e o pedido de prisão do ex-presidente Lula, o julgamento ganhou uma carga política enorme que tornava desaconselhável a resolução da controvérsia naquele momento. Desde então, Lula já teve sua primeira condenação – a do tríplex do Guarujá – confirmada no STJ, e tem a perspectiva de passar em breve para o regime semiaberto, o que ameniza em parte o perigo de “personalização” da decisão, embora esse risco possa retornar caso o ex-presidente acumule novas condenações nos processos a que ainda responde – um deles, o do sítio de Atibaia, já teve condenação em primeira instância e aguarda o julgamento do recurso no TRF-4.

O marco da segunda instância é o mais adequado: ao mesmo tempo em que esgota a análise das provas, garante ao réu a possibilidade de dois julgamentos, resguardando o direito à ampla defesa

O que está em jogo é a interpretação do artigo 5.º, LVII, da Constituição, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, bem como o artigo 283 do Código de Processo Penal – “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. A questão é altamente controversa e, enquanto não se aprovar uma emenda constitucional deixando o texto constitucional mais claro, há bons argumentos de ambos os lados.

Uma das alas considera que, ao exigir o “trânsito em julgado de sentença penal condenatória” para que alguém seja considerado culpado, a Constituição estaria vedando também o início do cumprimento da pena de prisão (com exceção, é claro, das hipóteses de prisão em flagrante, preventiva ou provisória, todas previstas no CPP), enxergando a imputação de culpa e o cumprimento da pena como indissociáveis. No entanto, quem defende a aplicação da pena após a condenação na segunda instância – prática, aliás, adotada na maioria dos países democráticos onde não há ameaça alguma ao direito de defesa – argumenta que a análise dos elementos de culpabilidade termina ali, pois os tribunais superiores não analisam provas, mas apenas questões processuais. No caso recente dos julgamentos da Lava Jato anulados pelo STF, por exemplo, as decisões não inocentaram os acusados previamente considerados culpados; elas anularam os julgamentos, que deverão ser refeitos Em outras palavras, quando um TRF ou TJ condena alguém, a culpa já está estabelecida.

Foi este o entendimento do ministro do STF Néri da Silveira, a quem coube relatar a primeira ação sobre o tema após a promulgação da Constituição. Em 1991, ele escreveu que “mantida, por unanimidade, a sentença condenatória, contra a qual o réu apelara em liberdade, exauridas estão as instâncias ordinárias criminais, não sendo, assim, ilegal o mandado de prisão que órgão julgador de segundo grau determina se expeça contra o réu”, e foi seguido pela maioria dos colegas da corte. Este trecho foi citado pelo relator Teori Zavascki durante o julgamento de fevereiro de 2016 que retomou o entendimento original, que tinha sido revertido em 2009. Zavascki ainda acrescentou que “é nesse juízo de apelação [a segunda instância] que, de ordinário, fica definitivamente exaurido o exame sobre os fatos e provas da causa, com a fixação, se for o caso, da responsabilidade penal do acusado”, e que “tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária [os tribunais superiores], parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado”.

O marco da segunda instância nos parece o mais acertado justamente porque, ao mesmo tempo em que esgota a análise das provas que podem condenar ou inocentar o réu, garante-lhe a possibilidade de dois julgamentos, envolvendo um grupo de magistrados. O direito à ampla defesa fica resguardado, e não se nega a possibilidade de recursos nos tribunais superiores, mas ao mesmo tempo evita-se que esses recursos se transformem em mera ferramenta protelatória para impedir que uma pessoa pague pelos crimes cometidos e cuja responsabilidade está definida pelo duplo grau de jurisdição.

Como afirmamos, em uma questão dependente de interpretação como é esta, o Supremo não estará indo além de suas funções caso retome o entendimento de 2009 e volte a exigir o esgotamento de todos os recursos nos tribunais superiores para que alguém comece a cumprir uma pena de prisão. Mas é muito provável que, ao adotar essa definição, acabe contribuindo menos para fortalecer o direito à ampla defesa e mais para criar oportunidades de impunidade – como, aliás, ocorreu com o fazendeiro pivô da decisão de 2009, condenado em duas instâncias por balear um jovem, mas que jamais chegou a cumprir a pena a ele imposta por tentativa de homicídio, já que o crime teve sua prescrição declarada pelo STJ em 2014.

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