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O presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, em sua prestação de contas anual ao parlamento uruguaio, em 2 de março de 2024.
No último sábado, o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, afirmou que Brasil e Argentina estão “trancando” seu país.| Foto: Gaston Britos/EFE

O Mercado Comum do Sul (Mercosul) foi criado em março de 1991, quando Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai se reuniram e os respectivos presidentes firmaram o Tratado de Assunção. O objetivo inicial divulgado foi o de estabelecer uma zona de livre comércio entre os quatro países, cujas regras resumidamente eram: a) a livre circulação entre os países de bens de consumo, bens de capital e serviços, extinguindo-se, portanto, os impedimentos tributários, alfandegários e burocráticos no comércio entre os membros do bloco; b) a aplicação, aos produtos originários de um país signatário, do mesmo tratamento concedido aos produtos nacionais; c) a harmonização da legislação nos quatro países e coordenação das políticas agrícola, industrial, fiscal, monetária, cambial, de comércio exterior e de capitais, a fim de equalizar as condições de concorrência entre os membros.

O Tratado de Assunção estabeleceu o dia 31 de dezembro de 1994 como data-limite para a formulação e aprovação das medidas requeridas para a conclusão do processo de integração e funcionamento do bloco. O Mercosul nascia a partir da ideia de que o bloco regional em forma de mercado comum atuaria como instrumento capaz de contribuir para elevar a taxa de crescimento econômico na região. Ficou decidido, também, que a entrada de algum novo país no Mercosul estaria condicionada a um conjunto de regras, entre as quais a exigência de que o novo membro vivesse sob o capitalismo de livre comércio e a democracia política.

O mercado comum é um tipo de bloco regional que, em uma escala de níveis de integração, está um grau acima da área de livre comércio entre os países-membros. O mercado comum inclui harmonização na tributação do comércio entre seus membros, bem como equalização das barreiras não tarifárias (fiscalização sanitária de produtos alimentícios, por exemplo), e estabelece o livre movimento de trabalhadores e políticas econômicas comuns. Nesse sentido, as intenções podem ter sido boas, mas o Mercosul nunca conseguiu funcionar como estabelecido no tratado inicial e nos acordos seguintes firmados por seus membros.

Como ideia de integração regional benéfica para os países-membros, o Mercosul é defensável e deveria ser levado adiante. O empecilho está nas enormes disparidades entre membros, atualmente agravadas por substanciais diferenças de ideologia política

Um dos episódios mais danosos ao projeto do Mercosul foi a aprovação do ingresso da Venezuela como país-membro, ato que somente foi possível devido a outro episódio igualmente lamentável: a suspensão temporária do Paraguai, justificada pela destituição do então presidente Fernando Lugo pelo parlamento paraguaio, em 2012. Naquele momento, Cristina Kirchner governava a Argentina e a dupla Hugo Chávez/Nicolás Maduro mandava na Venezuela; como também Lugo era de esquerda, nada mais normal que receber o apoio dos governantes argentinos e venezuelanos, que gritaram contra a destituição do presidente paraguaio, chamando-a de “ato antidemocrático”. Dilma Rousseff aproveitou-se desse quadro caótico e dedicou enorme esforço para oficializar a suspensão temporária do Paraguai, cujo Legislativo era contrário ao ingresso da Venezuela no bloco, o que já era suficiente para vetar o novo membro. A trama permitiu que, com o Paraguai suspenso temporariamente, o ingresso da Venezuela fosse aprovado, mesmo que esse país não preenchesse o requisito da democracia política – em 2017, a Venezuela acabaria suspensa por violação da cláusula democrática, situação que persiste até o momento.

Esses episódios formaram um conjunto de situações que funcionariam como estopim para a inviabilização quase completa do Mercosul em termos reais, ainda que o bloco continuasse a ter existência formal. Anteriormente, a viabilidade do Mercosul já vinha se mostrando difícil em razão das disparidades econômicas entre os países-membros, principalmente as diferenças quanto à política cambial, à estabilidade da moeda (pois as taxas de inflação sempre foram muito diferentes entre os membros), às políticas tributárias e às regras sobre investimentos estrangeiros. Adicionalmente, os integrantes do bloco protagonizaram confrontos que, ao contrário do que seria esperável, colocaram uns contra os outros, a exemplo da decisão argentina contra importações de produtos brasileiros.

Como ideia de integração regional benéfica para os países-membros, o Mercosul é defensável e deveria ser levado adiante. O empecilho está nos problemas já citados, atualmente agravados por substanciais diferenças de ideologia política. A rigor, parece estar claro que é praticamente impossível conciliar as relações entre o governo argentino do direitista libertário Javier Milei e o governo ditatorial venezuelano do extremista de esquerda Nicolás Maduro, ou mesmo o governo esquerdista de Lula.

Em regra, a lógica de um bloco regional deve pressupor que as negociações com o resto do mundo sejam feitas pelo bloco, de forma que nenhum integrante assuma acordos internacionais isoladamente. Entretanto, Milei já declarou aliança com os Estados Unidos e pretende fazer acordos diretamente com aquele país – que, por sua vez, impõe sanções econômicas contra a Venezuela, país que Lula gostaria de ver readmitido ao bloco. O presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, acaba de acusar Brasil e Argentina de “trancarem” seu país, impedindo que os uruguaios assinem um acordo bilateral com a China. Lula se recusou a participar da posse de Milei, que durante a campanha havia chamado o brasileiro de “comunista” e “corrupto”. E mesmo o grande sucesso recente do Mercosul, o acordo comercial com a União Europeia, está ameaçado por intransigências dos dois lados – especialmente graças à verborragia de Lula, à sabotagem do argentino Alberto Fernández e ao protecionismo do francês Emmanuel Macron.

Há outros aspectos e movimentos divergentes entre os membros do Mercosul que justificam as expectativas de que esse bloco regional, embora exista formalmente, continuará sendo pouco relevante em termos práticos, a não ser que os governos dos países-membros consigam, finalmente, avançar na direção da plena democracia, do respeito ao livre mercado e da integração aprofundada. Mas, ao menos neste momento, as perspectivas não parecem muito animadoras.

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