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Após o coronavírus: brasileiros em fila para medir a temperatura em shopping de Brasília, em fase de reabertura gradual
Brasileiros em fila para medir a temperatura num shopping de Brasília, que está em fase de reabertura gradual.| Foto: Evaristo Sá/AFP

Passaram-se três meses desde a confirmação do primeiro caso de coronavírus no Brasil e já são mais de 400 mil contaminados e 25 mil mortos pela doença. Autoridades de saúde se preparavam para um período de ao menos 20 semanas muito difíceis. Passado pouco mais da metade desse prazo, a curva de avanço da epidemia não dá sinais de arrefecimento. E, depois de tanto tempo em um modelo de distanciamento social sem muitos critérios para evitar o colapso do sistema de saúde, cidades e estados se veem na iminência da tomada de decisões para afrouxar ou restringir ainda mais essas medidas.

O Brasil não tem hoje diretrizes claras quanto a isso – na gestão de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, a proposta era de associar número de leitos vagos e incidência de casos, e o plano de Nelson Teich ficou na intenção. E, atualmente, há sinais de retomada gradual e fechamento mais restritivo em algumas regiões do país. Até que haja uma vacina ou um tratamento comprovadamente eficaz para a doença, a tendência é de que isso se torne parte da rotina.

Não existe uma receita pronta. No Brasil e no exterior, as ações de reabertura estão sendo feitas na base da tentativa e erro. Mas há critérios gerais que podem – e devem – nortear a tomada de decisão do poder público.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) já havia listado seis orientações que ajudam nesse processo e podem ser adaptáveis às realidades locais:

  • Transmissão do coronavírus deve estar controlada;
  • Sistemas de saúde capazes de detectar, isolar e tratar as pessoas com Covid-19, além de rastrear contatos próximos;
  • Riscos de surtos devem ser controlados em locais especiais, com instalações de saúdes específicas (hospitais, casas de repouso ou espaços que permitam ações de distanciamento físico);
  • Adoção de medidas preventivas em locais de trabalho, escolas e outros pontos em que as pessoas precisem ir;
  • Administração dos riscos da importação de casos;
  • Trabalhar na educação, engajamento e empoderamento das comunidades para que elas possam se ajustar às novas normas de convivência.

As orientações da OMS são pequenas ações que podem e devem ser monitoradas por cidades e estados de qualquer país. Mas, e para o Brasil? A Gazeta do Povo ouviu especialistas das áreas de saúde pública e economia para listar critérios que devem ser observados para as ações de distanciamento social e como organizar a retomada da economia.

Coronavírus: é hora de afrouxar ou endurecer o isolamento?

Há quanto tempo a sua cidade ou estado adotaram medidas de isolamento social mais rígidas, com restrições de atividades consideradas não essenciais? No Brasil, foi no meio de março que os primeiros prefeitos e governadores decidiram suspender aulas e fechar o comércio para tentar conter a disseminação do vírus. Apesar da escalada de casos nas últimas semanas, são vários os locais que estão afrouxando as medidas e permitindo que alguns setores da economia retomem as atividades.

Nem sempre essas decisões vêm acompanhadas de critérios que justifiquem-nas. Professor de economia no Insper, Fernando Ribeiro Leite lembra que o diagnóstico básico é que se trata de uma questão epidemiológica e de saúde pública, que está associada à capacidade de suporte dos sistemas de saúde. Por isso é essencial monitorar a ocupação de leitos de hospitais e UTIs.

“É evidente que as medidas têm que ser tomadas em relação a infecção”, resume Leite. Para isso, é preciso identificar quantas pessoas um infectado pela Covid-19 pode contaminar e fazer testes periodicamente para identificar o estoque de pessoas imunizadas e cruzá-los com a capacidade do setor de saúde. “A partir desses dados e do que eles mostrarem, você pode fazer aberturas graduais, em determinados setores, com muita regulação e distanciamento social.”

O professor Gonzalo Vecina Neto, do departamento de política, gestão e saúde da FSP-USP, lembra que não é possível segurar a epidemia: ela tem seu curso e vai continuar crescendo. A questão é que se isso ocorrer de forma desordenada, o número de mortes será muito elevado porque o sistema de saúde não vai comportar tantos atendimentos. O que precisa ser feito? Brecar a alimentação do vírus.

Vecina Neto lembra que são três fatores que alimentam e influenciam a disseminação do vírus: densidade populacional, mobilidade social e desigualdade. Enquanto é complexo modificar questões de densidade, há medidas a serem tomadas nos outros dois campos. “Posso diminuir a mobilidade social com distanciamento e lockdown, mas não posso fazer infinitamente porque as pessoas não aguentam. Para a desigualdade, o fundamental é criar colchão social e distribuir renda e comida para as populações mais pobres”, diz.

Essas medidas não são exclusivas da União: estados e municípios podem e devem tomar ações nesse sentido. Aí passa-se para outra etapa: os testes. A testagem em massa, que não deslanchou no país, é apontada por dois professores da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP como um dos fatores mais relevantes para decidir manter ou não as medidas de distanciamento físico.

Vecino Neto defende a testagem aliada ao isolamento social, com duração de pelo menos 14 dias para que números de casos e mortes caiam. “Um caso novo, sintomático, começou há dois ou três dias. O óbito de hoje é gestado há 14 dias. E o número de casos novos eu posso reduzir mais rapidamente”, defende. Só que, para isso, é preciso manter um acompanhamento de testes dos sintomáticos, ainda mais neste período, de março a julho, em que doenças do tipo síndrome respiratória agudas graves (SRAG) já são mais comuns.

“Precisa testar todos os casos sintomáticos e, em seguida, testar os contactantes de todos os casos sintomáticos que tiveram resultado positivo. Se der positivo, tem que testar todos os contactantes desse outro positivo. Você constrói uma cadeia de testagem e, pelo menos, contatos de 1.º e 2.º graus tem que ser testados. E se positivo, tem que ser isolado”, aponta.

A redução sustentável dos casos por ao menos 14 dias também é apontada por Ivan França Júnior, do departamento de saúde, ciclos de vida e sociedade da FSP-USP, como fundamental para afrouxar as medidas de distanciamento físico. “Estamos muito passivos na testagem. O Brasil foi o país mais lento na implementação de checagem e até agora testa muito pouco. Precisamos de uma política clara de testagem”, defende. E isso implica em testar o caso suspeito, rastrear os contatos e isolar aqueles que derem positivo. “Pode ser domiciliar ou em instituições. Na Europa, foi em casa. Na China, em instituições. E não precisa ser hospital: podemos montar centros de acolhimento”, defende.

Para ele, ainda passaremos por muitos períodos de abertura e fechamento e medidas de distanciamento físico e testagem coordenada vieram para ficar e precisam ser bem pensadas para que o país consiga atingir a imunidade de rebanho. Até onde as pesquisas sobre o Sars-Cov-2 avançaram, o vírus confere imunidade. O que já se sabe sobre outros coronavírus é que é imunidade transitória, de 12 a 24 meses, e é possível se reinfectar depois desse período.

A imunidade de rebanho ideal é conferida quando pelo menos 70% da população está imune ao vírus, o que diminui sua transmissibilidade. Só que há um longo caminho até lá. No país, Manaus é a cidade em que há maior prevalência do Sars-Cov-2, de quase 11% – e o sistema de saúde já colapsou por lá. A estimativa para o Brasil é de 3,5% da população imunizada. “Ainda não existem vacinas para nenhum coronavírus até o momento. A vacina não é política, é um sonho. E a gente não faz política de saúde com o sonho”, aponta.

França Júnior ainda aponta outro fator que pode colaborar, mas que exige uma discussão ampla – que não acontece no Brasil: vigilância digital em cima de contatos e suspeitos, aos moldes do que a Coreia do Sul vem fazendo. Ele lembra que hoje temos uma estimativa anônima de movimentação, feita com base nos dados de triangulação de antenas de celulares. Ele mesmo lembra que há soluções de vigilância digital das mais loucas: “As pessoas vão topar, por exemplo, instalar app no celular para esse monitoramento? Ou usar o bluetooth para saber que outros aparelhos estiveram perto? São tecnologicamente factíveis, mas são propostas que exigem debate sobre privacidade e segurança de dados”.

Retomada: como ordenar o que deve reabrir

Quando cidades e estados têm segurança para afrouxar as medidas de isolamento, vem a nova etapa de planejamento: como coordenar o que deve reabrir. Para Gonzalo Vecina Neto, da FSP-USP, é preciso mapear as coisas mais essenciais a triviais e estabelecer regras – uso de máscara, álcool em gel, lavagem das mãos, controle do número de pessoas e distanciamento. “Essa reabertura só deve ser feita após queda consistente do número de casos novos. E de olho na testagem: aumentou o número de casos, volta a fechar”, aponta.

O professor de economia do Insper Fernando Ribeiro Leite defende que é preciso mensurar o impacto do vírus nos setores da economia – no meio urbano, sibretudo no comércio e serviço. “Comércio e serviço têm duas coisas importantes: são intensivos em trabalho [muita mão de obra] e a realização da produção deles depende, em alguma medida, da interação com outras pessoas. Isso é um dilema absolutamente novo.”

Para Ribeiro Leite, a rigor não há uma ordem lógica de que tipo de serviço pode abrir antes ou depois. “Acima de remédio e comida, não dá para julgar muito o que é essencial ou não. É na minúcia do negócio”, analisa. E aí vem outra questão para cidades e estados, que podem estabelecer regras criteriosas para a reabertura de determinadas atividades: quem vai fiscalizar?

A reabertura gradual, de olho na situação epidemiológica, é o caminho. “As pessoas vão pegar o coronavírus, é inevitável. Mas, dado que vão pegar, como eu disponibilizo o suporte para que, a medida em que elas peguem, fechem o caso de forma exitosa?”, questiona.

O professor da FGV EMAp Flavio Codeço Coelho defende que haja larga produção de dados, para que estados e cidades não reabram às cegas. “É muito forte o lobby para grandes cidades industrializadas se abrirem, porque estão perdendo mais dinheiro. Essa é a decisão errada”, afirma.

Para ele, o processo de reabertura precisa passar pela compreensão da atividade econômica daquela localidade e da elaboração específica de planos de ação para cada uma. Nesse caso, caberia ao Ministério da Saúde apontamentos gerais sobre a capacidade do sistema de saúde – a interiorização do coronavírus é realidade e doentes de cidades menores sobrecarregam as redes dos municípios maiores. A cooperação entre cidades de uma mesma região também é fundamental para mitigar os riscos de contágio.

Um ponto levantado pelo professor é a situação das escolas: assim como cinemas, são locais que trazem pessoas em proximidade muito forte e, portanto, são atividades mais arriscadas. “Escola é pré-requisito para muitas famílias, para os pais voltarem ao trabalho. Mas escola é um ponto de alto risco, porque funciona como um distribuidor: uma criança doente pode contaminar outra e espalhar o vírus para as famílias que estão espalhadas na cidade.”

Ainda assim, ele aponta que invariavelmente as escolas vão reabrir antes que outros negócios e precisarão adaptar a situação, com medidas de distanciamento e checagem de temperatura, por exemplo. A partir daí, é preciso monitorar com procedimento rigoroso de casos infectados e seus contatos, para aí discutir outros critérios para planejar a reabertura de outros setores.

Coelho pondera que dificilmente um estádio – para jogos ou shows – será reaberto ao público tão cedo, porque permite a aglomeração de milhares de pessoas. “Negócios locais podem reabrir com muito menos riscos do que atividades econômicas que atraem trabalhadores de vários municípios. O comércio pequeno, em que o trabalhador e os clientes são da vizinhança, trazem menos risco porque não requerem que as pessoas se mobilizem muito ou gerem aglomeração”, avalia.

Na sequência, a avaliação é dos tipos de atividades que exigem mais agregação de pessoas. “Os restaurantes vão ter que mudar as formas de operar. Muitos já trabalham com entregas. Em centros urbanos, em que as pessoas têm hábito de se reunir no almoço, isso pode virar uma opção para que elas peguem a quentinha no restaurante e voltem para o ambiente de trabalho, onde já mantêm contato com aquele grupo”, explica.

E para tudo isso sair do papel, é preciso trazer a sociedade para a discussão: engajar as pessoas nesse processo, para que elas reflitam sobre quais atividades são importantes e, de alguma forma, participem da tomada de decisão conscientes do quadro epidemiológico do coronavírus e da disponibilidade de leitos na região.

Veja a incidência do coronavírus no Brasil

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